Perspectivas para a disciplina da companhia aberta: principais desafios no direito societário brasileiro

AutorJoão Pedro Scalzilli - Laura Amaral Patella - Luís André N. de Moura Azevedo - Luis Felipe Spinelli - Rodrigo Tellechea
Páginas211-241

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Ver Nota1

Introdução

Em regra, quando se analisa o fenômeno da globalização, refere-se a um fato genérico, de natureza multidisciplinar, cujos significados e efeitos têm natureza diversa e, muitas vezes, difíceis de mensurar. Desse evento de âmbito global já se ocuparam e ainda se ocupam filósofos, sociólogos, economistas, juristas e pensadores de muitas outras ciências, cada qual na sua esfera própria de referência. Raras foram as oportunidades em que esse fenômeno foi examinado e sistematizado a partir

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de um enfoque jurídico,2 particularmente sob as lentes do direito societário.

Nesse contexto, a realidade presente, vista sob as coordenadas do tempo e do espaço, parece ser oposta à que se tinha até então. Nos dias de hoje, o aspecto dinâmico da realidade está acelerado, sendo cada vez mais intensas as mutações no tempo e no espaço, enquanto outrora seus eventos eram praticamente imutáveis no tempo e cambiantes no espaço.3

Numa perspectiva jurídica, em outros momentos, a lei posta pelo Estado era tida como a única fonte jurídico-normativa, que se distinguia territorialmente de um país para outro, sendo, no entanto, capaz de garantir a estabilidade e a segurança jurídica às sociedades nacionais. Diante da internacionalização dos mercados, esse quadro foi alterado. A globalização refletiu na esfera jurídica uma nova forma de manifestação do direito, com alcance universal, na qual o Estado cede maior espaço à autonomia contratual no papel de regulador das transações econômicas realizadas no mercado.4

A partir dessas premissas multifacetá-rias, far-se-á o exame de algumas mudanças estruturais ocorridas no sistema normativo de direito societário e do mercado de capitais no Brasil, com enfoque especial nas sociedades anônimas abertas, reconhecido instrumento jurídico de captação da poupança popular e catalisador do desenvolvimento econômico e de operações mercantis.

No final do século XX, particularmente no início dos anos 1970, em um ciclo de conferências organizado para exa-minar os principais problemas jurídicos relacionados às sociedades anônimas,5 o Prof. espanhol Joaquín Garrigues, ex-Ca-tedrático da Universidade de Madri, manifestou opinião no sentido de que sobre esse tipo societário já se disse, para o bem ou para o mal, tudo o que se poderia dizer.6

A opinião do respeitado Catedrático espanhol evidencia um fato sobre as sociedades anônimas que pouco se discute no direito das sociedades: sua grandiosidade, higidez e pujança exerceram (e ainda exercem) tamanho fascínio sobre os juristas a tal ponto que muito se escreveu sobre elas, mas pouco se alterou na sua modelagem jurídica desde o surgimento da Companhia das Índias Orientais em 1602.7

Evidente que transformações ocorreram. Porém, os inúmeros retoques e refor-

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mas realizados desde então foram, na sua grande maioria, de caráter parcial, pontual, ortopédico, como se receosos estivessem os legisladores de alterar a maestria das suas fundações, buscando sempre modificar minimamente o estado da arte, com a finalidade de conseguir que o modelo jurídico da sociedade anônima funcione de forma perene, com a mesma engrenagem, cada dia de forma mais primorosa.8

Talvez em razão desse deslumbramento em torno do tema os estudiosos tenham demorado a perceber que a sociedade anônima tem natureza híbrida, isto é, é econômica na sua substância e jurídica na sua forma.9 O balanceamento e o equilíbrio final dessa equação requerem atenção especial, pois suas variáveis são vastas e suas alterações, contínuas, de modo que uma pequena desconexão entre a forma jurídica e a substância econômica determina um distanciamento fatal, uma linha cinzenta com a qual o direito não sabe lidar de forma satisfatória.

Aproveitamo-nos das reflexões acima para resgatar a crise dogmática que perpassa os modelos jurídicos que sustentam o sistema societário. A doutrina especializada já apontou a inadequação do modelo societário clássico (alicerçado na sociedade empresária isolada, dotada de responsabilidade limitada e com um acionista controlador predefinido) como solução para os problemas demandados pelas formas contemporâneas de organização empresarial, caracterizadas, na grande maioria das vezes, por grupos de sociedades unificados pelo poder de controle de fato, alocado em diferentes graus de concentração e estabilidade aos sócios, administradores, credores, entre outros.10

Sabe-se, da mesma forma, que a titu-laridade do poder de controle, o poder atribuído às minorias, as operações em torno da sua transferência e a formação de grupos de sociedade emergem como fatores jurídicos centrais no exame da empresa contemporânea. A construção de uma adequada disciplina jurídica para esses pilares de sustentação da estrutura societária é uma tentativa de reduzir a crise do atual sistema societário, caracterizada e deflagrada a partir de uma enorme distância entre a ordem jurídica posta e a realidade econômica a ela subjacente.11

Ainda que em dimensão distinta, em razão do estágio tardio de desenvolvimento do seu mercado, o Brasil continua enfrentando os reflexos dessa crise. Numa perspectiva eminentemente histórica, somos caracterizados como um país cujo sistema de direito societário é caracterizado como concentrado, no qual um acionista controlador ou grupo de acionistas controladores (coligados, geralmente, por acor-

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dos de voto) detém a titularidade do poder de controle.

Em sentido oposto do que ocorre nos Estados Unidos da América e na Inglaterra - onde os sistemas de direito societário são do tipo disperso, nos quais existe uma efe-tiva separação entre a propriedade das ações e o exercício do controle12 -, no direito brasileiro a figura do acionista controlador é um dos vértices da estrutura da sociedade anônima e do funcionamento do mercado de capitais, senão o principal.

Nessa toada, vale lembrar que, durante muitos anos, no Brasil, a separação entre propriedade e controle, típica característica do sistema societário de controle disperso, ficou restrita aos meios acadêmicos,13 não se verificando na realidade prática do mercado de capitais.14 Esse cenário começou a mudar a partir de 2004, com o fortalecimento dos segmentos especiais de governança corporativa criados pela Bovespa (hoje BM&F Bovespa), nos quais as regras de governança, de proteção aos acionistas minoritários15 e do público investidor são bem mais rigorosas do que aquelas previs-tas pelas Leis ns. 6.404/1976 e 6.385/ 1976.

A concepção do Novo Mercado, como solução contratual capaz de vencer as barreiras políticas, econômicas e culturais16 que impediam o desenvolvimento de um mercado de capitais forte, se mostrou um caso de sucesso,17 a ponto de, a partir da sua criação, raros serem os exemplos em que as aberturas de capital ocorrem em outro segmento que não este.18

Verdade seja dita: após alguns anos de inércia e apatia, o direito societário brasileiro vive um momento de ebulição. Depois de aproximadamente 35 anos da promulgação das Leis ns. 6.404/1976 e 6.385/1976 pode-se afirmar que a sociedade anônima aberta, historicamente reconhecida como estrutura jurídica projetada para empreendimentos de grande envergadura econômica, parece ter atingido seu ápice, justificando, numa perspectiva nacional, as alcunhas

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a ela atribuídas por doutrinadores estrangeiros, como, por exemplo, máquina jurídica e maravilhoso instrumento jurídico do capitalismo moderno.19

Nessa lógica, o mercado de capitais tem desempenhado um papel relevante no desenvolvimento econômico nacional, viabilizando o processo de capitalização das empresas, de captação da poupança popular e de alocação desses recursos no setor produtivo, impulsionando, ao fim e ao cabo, o crescimento econômico.

Não se pode ignorar, no entanto, que essa transformação do mercado e a sedimentação da sociedade anônima aberta como veículo jurídico destinado à exploração de grandes negócios expuseram muitas das fragilidades da nossa legislação societária. Em adição aos problemas já existentes (ainda não resolvidos de forma satisfatória), surgiram inúmeros outros, para os quais a legislação, as regras do Novo Mercado e os precedentes regu-latórios e jurisprudenciais (administrativos e judiciais) parecem não endereçar soluções adequadas.

O objetivo primordial do presente ensaio é propor reflexões acerca dos novos desafios que perpassam o direito societário brasileiro. A ideia que circunscreve o estudo é propositiva e não conclusiva. Busca--se, com o trabalho, identificar os conflitos que permeiam o direito societário e o mercado de capitais nessa nova fase e, a partir disso...

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