A liberdade no ser como dimensão da personalidade e fundamento da culpa penal – sobre a doutrina da culpa de Jorge de Figueiredo Dias

AutorKai Ambos
CargoProfessor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de Göttingen. Juiz do Tribunal Estadual de Göttingen
Páginas176-207

    Tradução de Pedro Caeiro e Susana Aires de Sousa (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), revista pelo autor. O trabalho foi originalmente publicado no livro homenagem ao Prof. Dr. Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2010.

    Agradeço a minha Mulher o auxílio na leitura das fontes de língua portuguesa. Agradeço também aos meus colegas de Göttingen, Profs. Drs. Fritz Loos e Uwe Murmann, pela leitura do manuscrito e pelos seus valiosos conselhos. Para outros agradecimentos, v. infra, nota 120.

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1. Liberdade no Ser e culpa jurídico-penal

Jorge de Figueiredo Dias defendeu sempre um direito penal da culpa próprio de um Estado-de-direito1 e concebeu a culpa em termos normativos, como censurabilidade2. Porém, logo em 1972, recusou inequivocamente ver o seu fundamento no comum postulado do livrearbítrio, por este ser insusceptível de prova3. A culpa jurídico-penal não poderia fundar-se na base da teoria da culpa da vontade4 – nem como decisão consciente da vontade pelo ilícito5 , nem como capacidade de motivação pela norma6, nem, enfim, como culpa da vontade referida ao carácter7. Contra estas concepções pronunciar-se-ia também uma perspectiva político-criminalmente orientada, uma vez que elas privilegiariam os agentes particularmente perigosos, a quem seria possível alegar, em regra com êxito, não terem podido agir de outra maneira, ou não terem tido capacidade de se motivar pelo preceito; o que conduziria a uma insuportável contradição entre o poder individual e o dever ser social desejado8. Deste modo, a culpa – superando a estéril querela entre determinismo e indeterminismo – teria de ser construída sobre o fundamento jurídico-filosófico e pré-penal de um conceito “éticoexistencial” da liberdade pessoal9 como “característica irrenunciável do ser-humano ou do ser-pessoa”10.

1.1. Ser, liberdade, personalidade

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Figueiredo Dias desenvolve o seu conceito de liberdade a partir do milenar dualismo entre a realidade sensível (empirismo) e o plano do (verdadeiro) Ser (racionalismo) que ela encobre ou que lhe subjaz. Para tal, socorre-se da filosofia de Platão, Kant, Schopenhauer e Bergson11. Da doutrina de Platão decorreria a autonomia do homem e a capacidade de decisão ou de escolha sobre a própria existência. Ainda que Platão, na sua teoria, não haja construído a culpa por referência ao mundo concreto (natural-sensível), dela poderia depreender-se que a liberdade de escolha se encontra na matriz de toda a culpa12. Em linguagem platónica: porque o homem possui na sua alma os arquétipos do Ser (as ideias), e, entre outros, o arquétipo da justiça13, ele possui também, necessariamente, o conhecimento destes arquétipos e a possibilidade de decidir autonomamente. No contexto do pensamento de Kant, a contraposição entre empirismo e racionalismo torna-se em contraposição entre o carácter empírico e o carácter inteligível, entre mundo do sentido e mundo da compreensão, entre as leis causais naturalísticas e a razão pura independente da experiência que (em vão) procura fundar por si própria a essência do Ser, a coisa-em-si14. Esta razão pura transmuta-se em razão prática como “vontade” ou faculdade de querer; enquanto pura razão prática, também ela é totalmente independente de determinações empíricas (sensíveis) e é nesta independência que reside a liberdade15: “liberdade no sentido mais radical, isto é, transcendental”16. O carácter inteligível é, por conseguinte, o fundamento da liberdade; porém, ele é – no sentido do referido dualismo – independente do mundo empírico e, portanto, insusceptível de valoração jurídica. Ora, pode falar-se “da possibilidade ontológica da liberdade transcendental, fundada no carácter inteligível”17, mas esta possibilidade – ao arrepio das premissas kantianas – apenas se torna utilizável no mundo real, empírico, caso se supere o referido dualismo e não mais se compreenda o homem como um cidadão de dois mundos. Deste modo, Figueiredo Dias postula um “efeito” do carácter inteligível (e da liberdade por ele representada) noPage 179 carácter empírico, no mundo real, de maneira que o primeiro se torna em fundamento do segundo; assim, o carácter empírico é impregnado pelo inteligível e a liberdade (transcendental), possível aqui, também ali (no mundo empírico) se torna realizável18. Figueiredo Dias entende que pode encontrar este desenvolvimento da teoria kantiana no apelo de Schopenhauer à fórmula escolástica “operari sequitur esse”, ou seja, ao pensamento do Ser como motivo da acção19. Assim, o Ser corresponderia ao carácter inteligível enquanto “própria essência” da coisa e a acção à sua exteriorização no carácter empírico: “assim como tu és, assim serão os teus actos”20. Deste modo, também a responsabilidade moral versa sobre o Ser expresso nas acções concretas; ela refere-se “primeira e ostensivamente Àquilo que o homem faz, mas fundamentalmente Àquilo que ele É”21. Na verdade, Figueiredo Dias não ignora que também Schopenhauer aceitava a contraposição entre o âmbito – completamente determinado – do sensível (carácter empírico) e o âmbito do Ser metafísico (carácter inteligível), independente da experiência, e somente reconhecia a liberdade neste estádio pré-individual22. Assim, com esta doutrina também não se conseguiria ancorar a liberdade, enquanto fundamento da culpa, no mundo real (empírico), antes se continuaria a mostrar que a liberdade se encontra no “ser ético” do homem23. O homem não é livre na sua existência empírica, mas é “livre na raiz do seu ser”24. Nesta perspectiva, flui de Schopenhauer um conceito de liberdade “enquanto característica do ‘esse’ metafísico, de onde deriva a necessidade de um ‘operari’ empírico”25 e, nesta medida, não será injusto qualificá-lo como um “clássico” da teoria da “culpa da personalidade”26. Figueiredo Dias avança mais um passo decisivo em direcção ao homem concreto e empírico com Bergson, que procurou – na base de um princípio empírico – alcançar “indutivamente uma nova metafísica a partir dos resultadosPage 180 da investigação das ciências naturais”27. Assim, Bergson entendeu a liberdade – para lá do determinismo e do indeterminismo – como fenómeno da personalidade global, da “alma toda inteira”28, e encontrou a origem das acções – muito aristotelicamente – em “nós”29: “somos livres quando os nossos actos dimanam da nossa personalidade global, quando eles a exprimem”30. A liberdade considera-se assim como expressão das acções, “que procedem do ‘Eu’ e só nele se fundamentam”31. Embora esta teoria pudesse também conduzir a uma compreensão da culpa demasiado ampla, pois abrange todos os actos autênticos da personalidade, inclusive os puros actos de consciência, Figueiredo Dias pretende, porém, fixar-se no seu núcleo, isto é, na ideia de “correspondência do facto com a personalidade”, enquanto critério da liberdade e da culpa.

Figueiredo Dias retira destas reflexões jurídico-filosóficas duas conclusões. Em primeiro lugar, a liberdade fundamentar-se-ia no “Eu”, na personalidade, e os actos concretos seriam expressão desse “Eu” e da personalidade. Em segundo lugar, uma liberdade racionalmente compreendida, puramente inteligível, não poderia resolver o problema da liberdade real como fundamento da culpa da pessoa concreta; bem diversamente, seria necessário estabelecer uma conexão com a “realidade empírica”32 -33. Paradoxalmente, a liberdade do homem concreto deveria, por um lado, participar da realidade, sem todavia, e por outro lado, apontar para qualquer determinismo34 (pois isso significaria a capitulação da liberdade). Deste modo, a liberdade teria de existir originariamente, como tudo o que é determinável, no mundo real e, ao mesmo tempo, nesse seu carácter originário-real, fundamentar ela própria a possibilidade da determinação35. O “lugar” de uma liberdade assim compreendida – em rigor, uma liberdade para a auto-determinação – encontrar-se-ia na mais radical e originária das realidades: o existir humano36. Com o que se abrem duas novas perspectivas sobre a liberdade: ou a sua essência se cobre “com a peculiaridade irredutível doPage 181 ser-homem”; ou constitui, afinal, “a originalidade de um modo de ser próprio que, como fundamento oculto, se exprime no homem e na sua obra”37. A compreensão da relação entre ser e liberdade que lhes é inerente implica, por sua vez, vias diversas para fundamentar a essência do homem: de um lado, uma concepção material-social (ou seja, anti-idealística) do Homem como sujeito realmente existente no devir histórico, onde o espírito e a alma se compreendem apenas como meros auxiliares da realização de processos orgânicos, ficando assim por responder a pergunta última sobre o sentido da vida ou da existência38; de outro lado, uma nova compreensão do “eu da consciência” que, mais do que a uma existência geral do Homem, se refere àquele homem na situação concreta, concebido como pessoa actuante e consciente, como “essência que se cumpre nos seus actos”39. Daqui decorreria a determinação da essência do homem como ente de espécie particular, ou seja, a “determinação simultânea da sua possibilidade interna e da sua necessidade”40 e “daquilo que faz com que ele seja verdadeiramente o que é”41. E, deste modo, destrói-se para sempre o conceito de uma liberdade inteligível do homem como “sujeito abstracto”, e, portanto, “indivíduo isolado”, uma vez que o homem real não poderia ser apreendido de forma abstracta, mas somente em concreto, como ser social42. Além disso, a essência do homem não residiria em algo que tivesse sido previamente dado, a priori, à sua natureza, antes teria de...

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