Personae ? res ? actiones: direito romano e tradição romanística na construção do 'sistema do direito civil' de augusto Teixeira de Freitas

AutorEdson Kiyoshi Nacata Junior
Páginas54-103
54 • TEIXEIRA DE FREITAS E O DIREITO CIVIL
PERSONAE – RES – ACTIONES
DIREITO ROMANO E TRADIÇÃO ROMANÍSTICA
NA CONSTRUÇÃO DO “SISTEMA DO DIREITO
CIVIL” DE AUGUSTO TEIXEIRA DE FREITAS
Edson Kiyoshi Nacata Junior
1. INTRODUÇÃO
A obra de Teixeira de Freitas, em um paiz de alta cultura, te-
ria provocado uma biblioteca de estudos e commentarios”.1 O acerto
do juízo, lido numa obra da primeira metade do século XX, parece,
alvissareiramente, atenuado pela revalorização, a que se assiste nas
últimas décadas, do legado intelectual desse jurista que ocupa po-
sição de primeira grandeza no cenário jurídico do Brasil imperial.
A produção doutrinária e sistemática do “jurisconsulto do
Império” tomou a forma não de tratado, mas de diploma legislativo:
a Consolidação das Leis Civis e o Código Civil – Esboço, seus prin-
cipais trabalhos,2 apresentam-se como reunião de artigos acompa-
nhados de escólios nos quais guram as fontes compulsadas, as dis-
1
Cf. CONTINENTINO, Múcio. Direitos reais – Direitos Pessoaes (direitos
absolutos – direitos relativos): eorias e ensaio sobre noções fundamentaes
de direito civil. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, p. 4.
2
Distingue-se sua produção jurídica em (a) obras compilatórias e codica-
doras (Consolidação das Leis Civis, Esboço, Aditamentos à Consolidação
e o Código de Comércio); (b) obras advocatícias e doutrinárias (notas e
comentários ao Direito das Ações de Corrêa Telles, ao Tratado dos Testa-
mentos e Sucessões, de Gouvêa Pinto, e às Primeiras Linhas sobre o Proces-
so Civil, de Pereira Pinto), e (c) obras didáticas (Prontuário das Leis Civis,
Regras de Direito e Vocabulário Jurídico). Cf. MEIRA, Sílvio. O juriscon-
sulto brasileiro Augusto Teixeira de Freitas em face do direito universal. In
SCHIPANI, Sandro (org.). Teixeira de Freitas e il diritto latino-americano.
Padova: Cedam, 1988, p. 74-76.
EDSON KIYOSHI NACATA JUNIOR • 55
cussões dessas e as justicativas das escolhas feitas.3 Trata-se, com
efeito, de obras resultantes de esforços de organização, depuração
e sistematização cientíca da matéria ingente e dispersa do direito
civil brasileiro no século XIX.
Nesses empreendimentos, manifestam-se, na síntese de
Lafayette Rodrigues Pereira, a profundidade de investigações, a au-
dácia de pensamento e a riqueza de erudição.4 Por outros termos,
suas obras revelariam as interações do “romanista”, conhecedor das
matrizes do direito luso-brasileiro no campo do direito privado e
também da literatura europeia, e da percepção do jurista prático,5
atuante nos foros da Corte, do engenho e arte de um “Papiniano de
sciência (não) guardada”.6 Nessa ambivalência, porém, não faltaram
ao autor contradições, vericáveis nas polêmicas em que tomou par-
te,7 reconhecimento que torna mais articulada e complexa a análise
de seu pensamento.
A propósito, continuava a referida monograa: “salvante
memorias historicas e vulgarizações incompletas, não conhecemos
uma produção crítico-jurídica sobre a obra grandiosa de Teixeira
3
No que concerne ao Esboço, nota-se uma distribuição desigual dessas
anotações que, conquanto sejam numerosas no início da obra, escasseiam e
praticamente e desaparecem nas últimas partes do trabalho. Cf. CARNEI-
RO, Levi. Estudo crítico-biográco. In TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto.
Código Civil: Esboço. Brasília: Ministério da Justiça, 1983, v. 1, p. IX-XXX-
VII.
4
Cf. RODRIGUES PEREIRA, Lafayette. Direitos de família. Rio de Janeiro:
Maia, p. 18, nt. 1.
5
Cf. SALDANHA, Nelson. História e sistema em Teixeira de Freitas. In
SCHIPANI, Sandro (org.). Teixeira de Freitas e il diritto latino-americano.
Padova: Cedam, 1988, p. 59.
6
Cf. TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Nova apostila à censura do Senhor
Alberto de Moraes Carvalho sobre o Projecto do Codigo Civil Portuguez. Rio
de Janeiro: Laemmert, 1859, p. 215. É provável que a investida se dirigisse a
Crispiniano Soares, professor de Direito Romano da Faculdade de Direito
de São Paulo, por se comparar a Papiniano e ter deixado, entretanto, pe-
quena obra escrita. Cf., nesse sentido, VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das
arcadas ao bacharelismo. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 168, nt. 14.
7
Cf. CARVALHO, Orlando de. Teixeira de Freitas e a unicação do direito
privado. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra, v. 60, 1984,
p. 68-69.
56 • TEIXEIRA DE FREITAS E O DIREITO CIVIL
de Freitas”.8 A partir, principalmente, da década de 80,9 as inves-
tigações e encontros cientícos têm demonstrado a mudança desse
panorama e, nessa senda, a louvável iniciativa das Universidades mi-
neiras, de realização de um congresso dedicado ao jurista.
Pretende-se, nos limites dessa exposição, analisar as vicissi-
tudes no pensamento de Augusto Teixeira de Freitas - da Consolida-
ção ao Esboço - na construção de seu sistema expositivo do direito
civil, com vistas a emulsionar, nesse tema central na obra do jurista,
a relação que entretinha com o patrimônio jurídico romano herdado
das fontes ibéricas e com a sua tradição interpretativa na consecução
da tarefa de reconstrução sistemática do direito civil brasileiro.
Na primeira parte, considera-se o cenário normativo do
Brasil oitocentista em matéria civil, no qual o direito romano assume
marcante presença, bem como a posição, e suas possíveis condicio-
nantes, do jurista perante esse elemento da tradição jurídica pátria.
Verica-se, na segunda parte, a concretização dessa perspectiva nas
escolhas feitas pelo jurista, com vistas ao aprontamento da obra da
codicação civil, no que concerne ao plano expositivo da matéria
civil.
2. PANORAMA DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO OITOCENTISTA
2.1 Ordenações Filipinas e aplicação subsidiária do direito
romano
Pela lei de 20 de outubro de 1823, decretada pela Assem-
bleia Geral Constituinte e Legislativa do jovem Império do Brasil,10
8
Cf. CONTINENTINO, Múcio. Direitos reais – Direitos Pessoaes (direitos
absolutos – direitos relativos): eorias e ensaio sobre noções fundamentaes
de direito civil. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, p. 4-5.
9
A crítica feita por Nelson Saldanha, em contribuição ao Congresso
Internacional do Centenário de Augusto Teixeira de Freitas, realizado em
1983 (Roma), à literatura brasileira tem, ainda, o mesmo teor (“sobre Freitas,
a bibliograa brasileira deveria ser mais extensa, mas peca principalmente
pela escassez de análises sistemáticas”). Cf. SALDANHA, Nelson. História
e sistema em Teixeira de Freitas. In SCHIPANI, Sandro (org.). Teixeira de
Freitas e il diritto latino-americano. Padova: Cedam, 1988, p. 59, nt. 31.
10
Por se tratar do primeiro ato legislativo proveniente dos representantes da
nação independente, atribui-se a tal lei o papel de iniciadora da formação

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