A persistência da cultura escravocrata nas relações de trabalho no Brasil

AutorKátia Magalhães Arruda
Páginas23-32

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1. Introdução

Após extensos debates na década de 1990, ressurge no Brasil, mais forte do que antes, a velha discussão sobre o que deve prevalecer nas relações entre empregados e empregadores: o negociado ou o legislado, ou seja, em que medida a liberdade de contratar prevalece sobre a lei? Em que hipótese seria possível essa prevalência se na base de tais negociações não houver igualdade?

Esse tema, é de profunda complexidade doutrinária e que envolve não apenas a concepção sobre o que é justiça como também o alcance dos direitos fundamentais, e o papel da legislação e do Estado tem sido apresentado de forma superficial e maniqueísta, movido muito mais por interesses econômicos do que por interesses de renovação ou modernização do direito do trabalho, e, muitas vezes, sem amparo na realidade social em que estão inseridos os milhares de trabalhadores, motivo pelo qual este texto procura contribuir com uma análise sobre quem é o trabalhador brasileiro e qual a ética do trabalho existente no país.

Sabe-se que o tema da proteção ao trabalho humano é antiga, encontrada inclusive em relatos bíblicos, portanto, está presente historicamente há pelo menos sete mil anos, mas o direito do trabalho, enquanto conjunto de normas e regulações teve sua origem a partir da revolução industrial, calcado no que hoje seria considerado como tema intrinsecamente vinculado aos direitos humanos, ou seja, a exploração e morte de crianças nas fábricas da Inglaterra. As Factory Acts foram constituídas por cinco leis aprovadas pelo parlamento inglês, de 1802 a 18331, com o objetivo de regular as condições dos empregados nas fábricas, principalmente relacionadas às extensas horas de trabalho de crianças na indústria têxtil.

A natureza jurídica do direito do trabalho, exaustivamente analisada pelos doutrinadores, foi durante muito tempo polarizada entre os defensores de sua natureza pública e, em oposição, os defensores de sua natureza privada. Hoje, admite-se com mais tranquili-dade a existência de uma terceira natureza, ou tertium genus, inaugurando o direito do trabalho, uma construção jurídica que foge ao dualismo ou bipolarização, introduzindo, desde o debate sobre sua natureza, essa característica que lhe é tão peculiar: a de apresentar posições mais plurais ao conciliar aspectos antagônicos na busca de soluções mais efetivas.

A temática da natureza do direito do trabalho sempre merece destaque nas discussões acadêmicas, principalmente devido à coexistência de normas cogentes (de ordem pública), e normas dispositivas. A própria CLT expressa essa concepção quando subordina o contrato de trabalho individual às disposições de proteção ao tra-

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balho (art. 444), de maneira que nenhum interesse privado prevaleça sobre o interesse público (art. 8º), sendo o direito do trabalho precursor ao admitir o tratamento desigual das partes envolvidas em decorrência da desigual-dade econômica real –, perspectiva também existente no direito dos consumidores. (ARAÚJO; COIMBRA, 2014)

Entre os vários recortes possíveis à análise do tema, o enfoque ora utilizado terá duas abordagens centrais: a primeira, referente à concepção da ética do trabalho prevalecente no Brasil e à persistência de uma cultura de exploração do trabalho humano, advinda do período escravocrata; e a segunda (a partir de dados oficiais), analisar quem é o trabalhador brasileiro e em que condições ele é chamado, individual ou coletivamente, a entabular negociações de direitos que, ao final, serão definidores da sua sobrevivência.

2. As marcas da escravidão na construção da ética do trabalho

São muitos os historiadores que tratam do lastro negativo que a escravidão deixou na construção da sociedade brasileira, mas poucos têm analisado em profundidade sua repercussão sobre a construção (ou desconstrução) da ética do trabalho no país.

Os primeiros trabalhadores brasileiros foram os escravos. Essa realidade durou da “descoberta” do Brasil pelos portugueses, em 1500, até 1888, época oficial da abolição da escravidão, ou seja, 388 anos de trabalho escravo legalizado. Dos 516 anos de história oficial, apenas 118 registram trabalho livre em sua concepção formal.

Os dados fáticos registram, ainda, que após a abolição, os ex-escravos não foram inseridos na sociedade2·.

Também não tiveram voz ou voto, assim como não se adotou no país uma política de valorização do trabalho, que continuou a ser visto como “coisa de escravo, negro e pobre”3. A concepção de trabalho no Brasil é, portanto, bem diferente da examinada no consagrado estudo de Max Weber, intitulado “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, em que o trabalho é apresentado como ”vocação”, “meio de obter graça”, “virtude a ser seguida por todos”, pois “mesmo o rico não deve comer sem trabalhar, mesmo que não precise disso para sustentar suas próprias necessidades”. Para Weber, além de ser um valor intrínseco, o trabalho estaria no espírito do capitalismo, sendo um dever para todos e um mandamento de Deus a ser obedecido. (WEBER, 2004, p. 133).

Como afirma Jesse Souza, a escravidão brasileira foi determinante no modo de vida desenvolvido pelo homem livre, em especial, para a naturalização da desigualdade, estendendo suas raízes em diversos aspectos da sociedade, principalmente na relação entre patrão e trabalhador ou, para bem usar a linguagem do direito do trabalho: empregado – empregador.

É apenas a partir da percepção da existência dessa dominação simbólica subpolítica, que traz de forma articulada uma concepção acerca do valor diferencial dos seres humanos e cujo ancoramento institucional, no cerne de instituições fundamentais como mercado e Estado, permite por meio dos prêmios e castigos empíricos associados ao funcionamento destas instituições – sob a forma de salários, lucro, emprego, repressão policial, imposto – a imposição objetiva, independentemente de qualquer intencionalidade individual, toda uma concepção de mundo e de vida contingente e historicamente produzida sob a máscara da neutrali-dade e da objetividade inexorável. Essa hierarquia valorativa implícita e ancorada institucionalmente de forma invisível enquanto tal é que define quem é ou não é “gente”, sempre segundo seus critérios contingentes e culturalmente determinados e, por consequência, quem é ou não é cidadão. (SOUZA, 2012, p. 181).

Poder-se-ia afirmar que a ideia da valorização do trabalho está bem distante da realidade e corresponde muito mais à desvalorização do trabalho – “coisa de negro e pobre”4. Séculos de escravidão, de domínio absoluto do proprietário sobre a vida de seus escravos, com “direito” a cegar seus olhos, estuprar mulheres na mais tenra idade, mutilar os membros dos trabalhadores ou chicoteá-los até à morte, como provam inúmeros relatos históricos5, construiu uma ideia de trabalho servil, subjugado, maltratado e, por fim, bem apartado de uma relação de igualdade. A lenta transição para o trabalho livre entrou em descompasso com a construção do capitalismo e a passagem do Brasil velho para o “novo Brasil, aquele em que as leis de mercado regeriam livre-

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mente e em igualdade de condições (jurídicas), as relações entre patrões e empregados” (AZEVEDO, 1987,
p. 60), com graves consequências para o desenvolvimento do país.

Para amparar a escravidão foi construído um aparato repressivo do Estado e toda uma representação legislativa feita por senhores de engenho, com características muito expressivas, tais como, patrimonialismo, coronelismo e clientelismo, fortíssimos até o final do século XIX e que estenderam sua influência para os dias atuais.

O fim da escravidão não rendeu ao Brasil homens livres! O melhor conceito é de homens e mulheres que antes eram escravizados e que, unindo-se aos demais agregados, e, posteriormente, aos imigrantes, passaram a ter em comum a pobreza extrema e o estado de necessidade contínuo. Ressalte-se que os imigrantes que chegaram ao país, principalmente em São Paulo (aqui é bom destacar que os trabalhadores estrangeiros tinham preferência sobre os nacionais), foram vítimas de uma visão semifeudal, bem diferente da visão liberal defendida em outros países do mundo; por esse motivo, prevaleceu a ótica da degradação do trabalho manual e do não reconhecimento dos trabalhadores como cidadãos. A cidadania em “negativo”, como descreve Carvalho (2013), já que o povo não tinha lugar no sistema político, seja no Império, seja na República, o que perdurou imutável até 1930.

Mesmo no Brasil republicano, os ideais liberais só sopraram para um lado: a elite agrária. O liberalismo econômico era compreendido como “total liberdade para gerir os negócios”, inclusive na relação com seus trabalhadores, daí porque foram mantidas por muitas décadas as relações coronelistas e autoritárias, isentando o mundo agrário de qualquer intervenção do Estado, a despeito de abrigar, à época da primeira República, cerca de 70% dos brasileiros.

A partir de 1930, na Era Vargas, foi acentuada a preocupação com a questão social, particularmente voltada para o trabalho urbano. Construiu-se o que Cardoso (2010) denominou de “utopia da proteção estatal representada pela legislação social e trabalhista”, plantada no fértil ambiente de vulnerabilidade social, mas que ajudou a mudar a relação do Estado brasileiro com sua população, ao incorporar os trabalhadores e, principalmente, seus sindicatos, no processo de construção e manutenção do Estado Novo.

O direito do trabalho foi apresentado como um instrumento de promoção da cidadania e um modo de, nas palavras de Oliveira Viana...

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