A persecução e a condenação criminal de animais: o processo judicial como meio de conferir integridade às narrativas sociais em conflito
Autor | Daniel Braga Lourenço |
Cargo | Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá |
Páginas | 85-123 |
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RBDA, SALVADOR, V.12, N. 02, PP. 85 - 123, M A 2017 |
às
Daniel Braga Lourenço
Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Direito
pela Universidade Gama Filho (UGF). Professor Adjunto de Biomedicina e de
Direito Ambiental da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e de Direito Ambiental do Instituto Brasileiro de Mercado
de Capitais (IBMEC). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Direito Mestrado da Faculdade de Guanambi FG Laes hplaescnpq
br Emaildaniellourencoadvbr
RecebidoAceito
Esteartigopretendeabordarcriticamenteaquestãodos
julgamentos criminais de animais à luz do papel estabilizador
queoprocessoconfere àsrelaçõessociaisO processoconstrói
umanarrativauma forma de espetáculo do qual participaa
sociedadeequeseprestanocasodosjulgamentosenvolvendo
animais, a domesticar as forças da natureza por meio do
sistema jurídico. Tais julgamentos, muito comuns no período
medieval são importantes instrumentos para que possamos
compreender tanto as barreiras ontológicas que se rmaram
nosentidodeseparareestraticarohomemdanaturezacomo
também o próprio papel do Direito de criar narrativas próprias
quepassamaconferir sentidopróprioàrealidadeOprocesso
penalpode representar umapontecomunicativa entre visões
demundo diversas e com istounicar a sociedade em torno
de eventos inexplicáveis e traumáticos. A necessidade de
imposição de sanção penal aos animais revela um mecanismo
depacicaçãosocialede reestabelecimentoda ordemnatural
violada.
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Julgamento criminal de animais. Processo
Penal. Teoria Geral do Direito. Tutela jurídica dos animais.
This article aims to critically address the criminal
prosecution of animals highlighting the stabilizing role that the
process confers on social relations. Judicial process constructs
a narrative, a form of spectacle in which society participates
and which lends itself, in the case of animal prosecutions, to
domesticating the forces of nature through the legal system.
Such judgments, very common in the medieval period, are
important tools for us to understand both the ontological
barriers that have been established in order to separate and
stratify man from nature, as well as the proper role of Law in
the sense of creating its own narratives that confer proper sense
to reality. Criminal proceedings can represent a communicative
bridge between diverse worldviews and thereby unify society
around inexplicable and traumatic events. The need to impose
penal sanctions on animals reveals a mechanism of social
pacication and the need to reestablish the violated natural
order.
Criminal prosecution of animals. Criminal Law.
Theory of Justice. Legal protection of animals.
Introdução - Competência para processar e
julgar animais - Procedimentodas cortesseculares animais
equiparadosahumanosJusticativaspara ojulgamento e
condenação dos animais - Consideraçõesnais Referências
bibliográcas
Em O grande massacre dos gatos e outros relatos da
história cultural francesa”, de Robert Darton, narra-se um
episódiointitulado Os trabalhadores se revoltam o grande
massacre dos gatos na rua SaintSéverin acontecido no m
da década de em Paris relativo a uma insurreição de
umgrupodeaprendizesdeumagrácaIncomodadoscomos
insultoseasprecáriascondições detrabalho, os funcionários,
liderados por Jerome e Léveillé, resolvem matar os gatosque
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viviamnolocalmuitosdosquaiseramespecialmentequeridos
pelaesposadopatrão
Armados com cabos de vassoura, barras de impressora
e outros instrumentos de seu ofício, foram atrás de todos
osgatos queconseguiram encontrara começarpela grise
Léveillé partiu-lhe a espinha com uma barra de ferro e
Jerome acabou de matála Depois enaramna numa
sarjetaenquantoosassalariadosperseguiamosoutrosgatos
pelostelhados dandocacetadas em todosos queestavam
ao alcance deles e prendendo, em sacos estrategicamente
colocadososquetentavamescaparAtiraramsacoscheios
de gatos semimortos no pátio. Depois, com todo o pessoal
da ocina reunido em torno encenaram um ngido
julgamento, com guardas, um confessor e um executor
público. Depois de considerarem os animais culpados e
ministrar-lhes os últimos ritos, penduraram-nos em forcas
improvisadas.
Este relato provavelmente causa repulsa moral no leitor
moderno pois a maior parte das pessoas concorda que não
hájusticativa minimamenterazoávelpara que umgrupode
homens adultos mate animais indefesos. Apesar das barreiras
epistemológicas que dicultam e por vezes nos impedem de
compreender as práticas sociais de outros períodos históricos
aindaquepossamoscontinuaranãoconcordarcom elas o
massacredosgatosseprestaaumasériedereexões
Gostaríamos de, a partir dele, recuperar a tradição cultural
dos julgamentos de animais, não para serem repetidos ou
enaltecidos, evidentemente, mas para servirem como um meio
paraquepossamoscompreendertantoasbarreirasontológicas
quesermaramnosentidodeseparareestraticarohomemda
natureza como também o próprio papel do Direito no sentido
de criar narrativas próprias que passam a conferir sentido
próprio à realidade.
Oprocessonocaso o processo penal poderia construir
uma ponte comunicativa entre visões de mundo diversas e
comistounicaremalgum sentido a sociedade em torno de
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