Períodos de descanso: férias anuais remuneradas

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1080-1116

Page 1080

I Introdução

O conjunto dos descansos trabalhistas completa-se com a figura das férias. Elas definem-se como o lapso temporal remunerado, de frequência anual, constituído de diversos dias sequenciais, em que o empregado pode sustar a prestação de serviços e sua disponibilidade perante o empregador, com o objetivo de recuperação e implementação de suas energias e de sua inserção familiar, comunitária e política.

1. Objetivos das Férias

As férias atendem, inquestionavelmente, a todos os objetivos justificadores dos demais intervalos e descansos trabalhistas, quais sejam, metas de saúde e segurança laborativas e de reinserção familiar, comunitária e política do trabalhador.

De fato, elas fazem parte de uma estratégia concertada de enfrentamento dos problemas relativos à saúde e segurança no trabalho, à medida que favorecem a ampla recuperação das energias físicas e mentais do empregado após longo período de prestação de serviços. São, ainda, instrumento de realização da plena cidadania do indivíduo, uma vez que propiciam sua maior integração familiar, social e, até mesmo, no âmbito político mais amplo.

Além disso tudo, as férias têm ganhado, no mundo contemporâneo, importância econômica destacada e crescente. É que elas têm se mostrado eficaz mecanismo de política de desenvolvimento econômico e social, uma vez que induzem à realização de intenso fluxo de pessoas e riquezas nas distintas regiões do país e do próprio globo terrestre.

Registre-se que, embora permitam as férias significativa intensificação do lazer do trabalhador e sua família, elas não têm natureza de prêmio trabalhista. Desse modo, não se vinculam à conduta obreira mais ou menos positiva em face do interesse do empregador. Não são, portanto, parcela adquirida pelo empregado em função de conduta contratual especialmente favorável ao empregador. Têm, pois, as férias efetivo caráter de direito trabalhista, inerente ao contrato de trabalho — direito a que corresponde uma obrigação empresarial.

Page 1081

As férias, entretanto, são direito laboral que se constrói em derivação não somente de exclusivo interesse do próprio trabalhador. Elas, como visto, indubitavelmente também têm fundamento em considerações e metas relacionadas à política de saúde pública, bem-estar coletivo e respeito à própria construção da cidadania. Se os demais descansos trabalhistas (principalmente os intervalos interjornadas e os dias de repouso) são instrumentos essenciais à reinserção familiar, social e política do trabalhador, as férias surgem como mecanismo complementar de grande relevância nesse processo de reinserção da pessoa do empregado, resgatando-o da noção estrita de ser produtivo em favor de uma mais larga noção de ser familial, ser social e ser político. Tais fundamentos — que se somam ao interesse obreiro na estruturação do direito às férias — é que conduzem o legislador a determinar que o empregado não tenha apenas o direito de gozar as férias mas também, concomitantemente, o dever de as fruir, abstendo-se de “... prestar serviços a outro empregador, salvo se estiver obrigado a fazê-lo em virtude de contrato de trabalho regularmente mantido com aquele” (art. 138, CLT; art. 13, Convenção 132, OIT)1.

2. Normatização Aplicável

A partir de 23.9.1999, a Convenção 132 da OIT, regulatória das férias, entrou em vigor no país, ensejando o debate sobre conflito de normas jurídicas em face do próprio texto da Consolidação (arts. 129 a 153 da CLT).

Na verdade, contudo, o referido diploma internacional, concluído pela OIT em 1970, já havia inspirado a redação do novo capítulo celetista de férias, que passou a vigorar no Brasil em 1977 (arts. 129 a 153, CLT). Em decorrência, não despontaram disparidades significativas entre os dois diplomas. Ao invés, no cômputo estrito entre essas diferenças, a Convenção chega a apresentar maior número de regras menos favoráveis, o que cria a dúvida sobre se sua recente adoção não terá vindo essencialmente somarse ao caminho flexibilizatório de normas justrabalhistas perfilado oficialmente na década de 1990 no país.

De fato, ilustrativamente, seu prazo mínimo de férias é inferior (3 semanas, e não 30 dias), enquanto seu prazo para gozo da parcela é mais

Page 1082

tolerante (18 meses, e não 12). Mais grave do que isso: a Convenção, em diversos momentos, adota conduta normativa francamente oscilante, flexível, valorizando, sobremaneira, até mesmo a mera pactuação bilateral em contraponto a suas próprias regras, atenuando a imperatividade já classicamente acolhida no país quanto aos dispositivos regulatórios de férias.

Nesse quadro, as poucas regras efetivamente favoráveis que contém (exclusão dos feriados do cômputo do prazo de férias e pagamento da parcela proporcional em qualquer situação rescisória) não lhe deferem o status de diploma normativo superior, se adotado o critério do conglobamento para exame da hierarquia normativa no presente caso. Apenas se adotado o critério da acumulação, cientificamente menos consistente, conforme se sabe, é que se poderia coletar, de maneira tópica e localizada, os poucos dispositivos mais favoráveis, fazendo-os prevalecer na ordem jurídica pátria. Não é o que sugere, porém, a teoria de hierarquia de normas jurídicas, que vigora no Direito do Trabalho2.

II Caracterização

Alguns caracteres destacam-se na estrutura e dinâmica do instituto das férias. Trata-se de seu caráter imperativo (do que deriva sua indisponibilidade), sua composição temporal complexa (conjunto unitário de dias sequenciais, proporcionalmente estipulados), a anualidade de ocorrência das férias, a composição obrigacional múltipla do instituto e, por fim, sua natureza de período de interrupção.

O caráter imperativo das férias, instituto atado ao segmento da saúde e segurança laborais, faz com que não possa ser objeto de renúncia ou transação lesiva e, até mesmo, transação prejudicial coletivamente negociada. É, pois, indisponível referido direito.

Não há, desse modo, possibilidade, na ordem jurídica, de se substituírem as férias por parcela em dinheiro durante o cumprimento do contrato (é claro que, se o contrato se extingue, o direito converte-se em indenização, por ser inviável, na prática, seu efetivo gozo). Não há, portanto, qualquer valia à prática censurável de venda de férias, eventualmente ocorrida no contexto do contrato (empregado deixa de gozar as férias, recebendo a parcela dobrada). As férias não fruídas no correto período contratual devem, a teor da ordem

Page 1083

jurídica, ser gozadas, de imediato, pelo empregado, sendo ainda devido a ele o pagamento dobrado do valor da respectiva remuneração — conforme estudar-se-á neste Capítulo.

É bem verdade que a CLT atenuou parte dos efeitos dessa imperatividade (e indisponibilidade consequente), ao permitir a conversão pecuniária de 1/3 das férias obreiras (o chamado abono celetista de férias). Contudo, a vontade bilateral das partes e mesmo a coletiva negociada não podem ir além dessa exceção aberta pela ordem jurídica heterônoma estatal.

A segunda característica diz respeito à composição temporal complexa das férias. Estas, efetivamente, são compostas por um conjunto unitário de dias sequenciais — dias que se acoplam, formando uma unidade, um todo complexo. As férias-padrão, no Brasil, são de 30 dias (ou 20 dias úteis, anteriormente, no caso do empregado doméstico, ou módulo menor, no caso de contratos em regime de tempo parcial)3. Ainda que haja conversão de 1/3 de tais férias, permanece um bloco unitário de dias integrando a parcela trabalhista em exame. Isso significa que as férias não podem ser pulverizadas ao longo do ano, através do gozo intercalado de pequenos grupos de poucos dias a cada vez — tal prática frustraria, inteiramente, o instituto, mantendo o empregador em mora a seu respeito. A lei trabalhista brasileira autoriza, no máximo, o parcelamento das férias em duas frações não inferiores a 10 dias (no caso de regime de labor em tempo parcial, com duração do trabalho semanal igual ou inferior a cinco horas, passou-se a admitir módulo unitário integral de apenas 8 dias de férias anuais — art. 130-A, VI, CLT).

Registre-se que a Convenção 132 da OIT, vigorante no país desde 23.9.1999, estipula que “uma das frações do respectivo período deverá corresponder pelo menos a duas semanas de trabalho ininterruptos” (art. 8º.2; grifos acrescidos). O preceito poderia ter revogado a CLT, uma vez que esta autoriza fração menor (10 dias) — logo, a Convenção seria norma mais favorável, se adotado o critério estrito de acumulação de normas, é claro, e não a diretriz do conglobamento, como visto. Contudo, o dispositivo internacional é, curiosamente, flácido em seu comando, já que ressalva “estipulação em contrário contida em acordo que vincule o empregador e a pessoa empregada em questão”...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT