A Prova Pericial relativa aos Danos decorrentes de Acidentes de Trabalho e Doenças Ocupacionais no Cenário Pós-Emenda Constitucional n. 45/2005: a Importância da Atividade do Magistrado em Face do Interesse Público que Permeia a Prestação Jurisdicional Afeta aos Direitos Fundamentais

AutorViviane Colucci
Páginas252-267

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1. Introdução: o processo judicial e a efetividade dos direitos humanos

A concepção teórica que suscitou a vinculação entre o processo e a efetividade dos direitos fundamentais, que tomamos como referência para o fim de, neste estudo, ponderar a dimensão teleológica da prova pericial relativa aos danos decorrentes de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, constitui o ápice do percurso que a história do direito processual percorreu.

A partir das profundas mudanças sociais desencadeadas no século XX, motivadas pelo poder reivindicatório da mão de obra que se deslocou para os centros urbanos e, especialmente ao final da Segunda Guerra, pela derrocada dos regimes totalitários, impôs-se aos juristas a missão de repensar a teoria do direito, visando a que os direitos enunciados contassem com mecanismos que possibilitassem a sua concretização. A normatividade social, como alude Paulo Bonavides, torna-se, então, elemento substantivo, e sua fonte é o princípio, que, enxertado na Constituição, "cria, ordena, qualifica e ilumina a hierarquia do sistema"1.

Como enfatiza Luiz Guilherme Marinoni, o processo civil, em decorrência desse movimento, constitui hoje inegável mecanismo de proteção dos direitos fundamentais, "seja para evitar a violação ou o dano ao direito fundamental, seja para conferir-lhe o devido ressarcimento"2.

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A par da instrumentalidade do processo, a teoria jurídica contemporânea, que, conforme enfatiza Fredie Didier, "vê nos princípios eficácia normativa, pondo-os ao lado das regras jurídicas como exemplos de enunciados normativos com conteúdo aberto", vêm dando lugar a um redimensionamento e mesmo a uma intensificação da atividade do magistrado, inclusive no tocante ao seu poder instrutório, sendo dele exigida uma criatividade ainda maior na identificação da norma jurídica ao caso concreto3. A realização da prova, o proferimento da sentença, bem como o seu cumprimento não interessam apenas às partes, mas ao Estado, à medida que o interesse público de efetividade da prestação jurisdicional permeia todos esses atos judiciais.

Neste cenário, a prova pericial desponta como mecanismo de dimensão reparatória e preventiva a viabilizar uma prestação jurisdicional efetiva, na dicção do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, para fins de tutela de valores essenciais à vida, referentes à incolumidade física, mental e psíquica do trabalhador, à sua saúde e ao meio ambiente do trabalho saudável, exigindo a atuação vívida do magistrado na sua realização e avaliação.

2. A prova pericial como desdobramento instrumental do binômio justiça e saúde

Ao longo da singular trajetória do processo do trabalho, há um marco definitivo, a partir do qual a prova pericial tornou-se um elemento de proeminência: o elastecimento da competência da Justiça do Trabalho, por meio da Emenda Constitucional n. 45/2005, para julgar os pedidos decorrentes de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.

A complexidade da produção da prova pericial de que tratamos, decorrente de sua conotação científica e multidisciplinar, vem, desde então, formulando aos operadores do direito do trabalho uma séria provocação, consistente na tentativa de que a aplicação de todo o requintado e extenso arcabouço técnico-normativo referente à sua realização ocorra em sintonia com a natureza humanitária dos direitos cuja reparação, por seu intermédio, pode ser reconhecida. A empreitada torna-se ainda mais desafiadora porque a prova pericial não pode se apartar da base principiológica do processo do trabalho, ramo do direito adjetivo marcado pela sua índole notadamente instrumental e pela simplicidade das formas.

Constituindo-se, pois, como meio de prova que conduz à efetivação de direitos de grandeza constitucional, na medida que, como já referido, propicia a reparação de uma gama de danos concernentes à violação de direitos fundamentais do trabalhador, deve a prova pericial relativa a danos decorrentes de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais ser concebida como desdobramento instrumental do binômio Justiça e Saúde.

Ainda, a efetividade tanto dos direitos sociais, dentre eles a do direito à saúde, na forma preconizada pelo art. 6º da Constituição Federal, como a dos direitos de solidariedade, em que destacamos o direito ao meio ambiente saudável, na forma preconizada pelo art. 225 da Constituição Federal, impõe ao Estado o dever de utilizar os mecanismos que lhe são próprios para o fim de coibir a nocividade à saúde daquele que depende de sua força de trabalho para o seu sustento. A prova pericial, no contexto da jurisdição como atividade essencial do Poder Judiciário, configura ato estatal de dimensão preventiva - a par da reparatória -, de danos à saúde, porquanto é apta a indicar a existência dos agentes que contribuíram para a ocorrência do acidente ou para a eclosão da doença e, desta forma, apontar medidas para a readaptação isenta de riscos e para a readequação do meio ambiente onde também operam outros trabalhadores suscetíveis aos

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mesmos gravames. A realização da prova pericial, portanto, pode também irradiar uma proteção de caráter metaindividual.

3. A utilidade das normas de caráter multidisciplinar na realização da perícia

De acordo com Sheila Abed Zavala, presidente da Comissão Mundial de Direito Ambiental da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), a mais antiga organização mundial dedicada ao trabalho de conservação ambiental, o Poder Judiciário deve assegurar-se de que se aplique rigorosamente a legislação ambiental e, também por meio de decisões judiciais, garantir o não retrocesso em matéria de proteção ambiental, sendo que o grande desafio para o avanço das medidas de preservação diz respeito à "capacitação do Poder Judiciário para fazer cumprir a legislação ambiental"4.

No tocante às questões afetas especificamente ao meio ambiente de trabalho, o desafio não é diferente em relação ao magistrado trabalhista, que, ao promover nos autos a prova pericial, deve lidar com um amplo conjunto de normas multidisciplinares, que, ademais, afigura-se bastante esparso, porque expedido por diferentes órgãos, e também muito complexo, por envolver conceitos técnicos e científicos em relação aos quais não recebeu a devida formação.

Embora não seja a prova pericial obrigatória em se tratando de ações que visam ao pagamento de indenização por danos decorrentes de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, constitui ela elemento de importância irrefutável na instrução processual para o fim de, nos termos do art. 145 do CPC, fornecer dados técnicos e científicos que poderão ser fundamentais para, no escólio de Sebastião Geraldo de Oliveira, possibilitar ao juiz avaliar "a extensão dos danos, a capacidade residual de trabalho, a possibilidade de readaptação ou reabilitação profissional, o percentual de invalidez parcial ou reconhecimento da invalidez total, as lesões estéticas e seus reflexos na imagem da vítima, os membros, segmentos ou funções atingidas, os pressupostos da responsabilidade civil, etc..."5.

A realização da prova pericial, tendo em vista o relevante fim a que se presta, é qualificada, como referido, pela incorporação de modernos e científicos conceitos e procedimentos que são ditados por normas expedidas pelo Ministério da Saúde - MS, pelo Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, pelo Instituto Nacional de Serviço Social - INSS, pelos Conselhos Profissionais e também pela Organização Mundial da Saúde - OMS. Esse conglomerado normativo, quando aplicado em conjunto, permite que o trabalhador seja avaliado sob o espectro multidimensional, como pessoa humana dotada de singularidade e parte do meio ambiente em que vive. Este pressuposto guarda relação com um importante aspecto dos direitos fundamentais: o caráter sistêmico que lhes empresta a qualidade de interdependência. No tocante ao meio ambiente do trabalho, também embute a noção de sua indivisibilidade e sua relação com o meio ambiente em geral.

Assim, o direito do trabalhador à saúde deve ser concebido da forma mais ampla possível, não apenas como elemento que integra a cadeia produtiva, mas, uma vez fulcrado no valor da dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico da Constituição Federal, deve relacionar-se a outros direitos de grandeza constitucional, como o direito à assistência social, à reabilitação profissional, à educação profissionalizante e à reabilitação psicossocial, levando-se em consideração

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a capacidade residual para o desenvolvimento de outras possibilidades, o que pode provocar o desencadeamento de ações interssetoriais nas três esferas políticas e também na própria empresa em que ocorreu o acidente ou o...

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