Perícias judiciais multiprofissionais e a lei do ato médico ? por uma interpretação que leve em conta a unidade do sistema e a efetividade da prestação jurisdicional

AutorJosé Antônio Ribeiro de Oliveira Silva/Sandro Sardá
CargoJuiz Titular da 2a Vara do Trabalho de Araraquara (SP)/Procurador do Trabalho em Santa Catarina
Páginas111-136

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1. Introdução

Desde o ano de 2009, temos nos preocupado com a questão das perícias judiciais nos processos em que se formulam pedidos de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho1.

De lá até esta parte, temos acompanhado a evolução doutrinária e jurisprudencial a respeito da matéria, que envolve a questão dos honorários periciais prévios e ?nais, da insu?ciência de peritos, da ausência de um quadro o?cial de peritos, da falta de capacitação dos louvados judiciais para a temática — análise da árvore de causas e boa de?nição sobre nexo causal ou de concausalidade, os graus de incapacidade funcional etc. —, além da questão afeta a quais pro?ssionais podem auxiliar o juízo nessa árdua missão de conferir a efetiva tutela aos bens jurídicos do trabalhador, após a perda de sua saúde, seu bem mais importante no âmbito da relação de trabalho.

Num tempo mais recente, em face da complexidade da matéria e do bem jurídico em debate, temos nos preocupado também com a análise da possibilidade de perícias multipro?ssionais, a ?m de se diagnosticar as incapacidades laborativas e o nexo de causalidade delas com o trabalho, pois a grande maioria dos juízes não dispõe de pro?ssionais médicos – principalmente de médicos do trabalho – para a solução dos casos que lhes são apresentados. Daí que se construía a passos largos uma jurisprudência proativa no sentido de admitir a confecção de laudos periciais por vários pro?ssionais da área da saúde, como

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?sioterapeutas do trabalho, psicólogos, fonoaudiólogos, dentre outros pro?ssionais, em processos dessa natureza.

Contudo, recentemente foi publicada a Lei
n. 12.842, de 10.7.2013, para regulamentar o exercício da Medicina — por isso, chamada de Lei do Ato Médico —, na qual se de?niram atividades relacionadas à saúde que seriam de competência privativa dos médicos. Renova-se, então, a celeuma sobre a intrincada questão, diante da inovação legislativa. De modo que se faz necessário, portanto, um estudo do tema à luz da referida lei, não sem antes recorrer a apontamentos prévios para a boa compreensão do problema. É o que pretendemos nas linhas que seguem.

2. A necessidade de perícia nos casos de acidentes e doenças do trabalho

É voz corrente a de que nos processos que envolvem acidente do trabalho ou doença ocupacional há necessidade imperiosa de designação de perícia judicial para a averiguação das consequências do acidente típico ou para a constatação da própria doença, conforme o caso, do nexo de causalidade e das incapacidades funcionais advindas.

Não se discute essa premissa, pois o exame das questões implicadas quase sempre demanda conhecimento técnico, justamente o fator a autorizar a designação de perícia, nos moldes do art. 420, parágrafo único, do CPC, aplicável subsidiariamente no processo do trabalho por força do art. 769 Consolidado.

Entrementes, antes mesmo de se veri?car a questão afeta ao direito material — incapacidade e nexo causal — há de se ter presente que a questão primária é de natureza eminentemente processual. É dizer, por lógica e bom-senso, somente necessitam de dilação probatória os fatos controvertidos, pertinentes à causa, determinados no tempo e no espaço e relevantes, ou seja, que tenham o condão de in?uir no convencimento judicial. É essa a dicção do art. 334 do CPC, segundo o qual não admitem produção de prova os fatos notórios, confessados, admitidos pela parte contrária ou mesmo presumidos.

Com efeito, se o acidente do trabalho é incontroverso — diante de uma CAT emitida pelo próprio empregador ou da falta de impugnação especi?cada (art. 302 do CPC) —, não há razão alguma para a produção de prova sobre esse fato. Restaria espaço para a prova judicial em caso de dúvida objetiva acerca da incapacidade laborativa e da relação de causalidade desta com o acidente, se — de se frisar — devidamente contestadas as a?rmações correspondentes.

Por que seria diferente com a doença ocupacional? Não há motivação lógica a exigir designação de perícia para a constatação da doença quando esta não foi sequer impugnada, o que ocorre em boa parte dos casos. Se o trabalhador a?rma ter adquirido uma doença no trabalho, narrando-a de modo preciso, por vezes, juntando documentos elucidativos da sua existência — exames detalhados, laudos médicos, prescrições do médico que acompanha seu tratamento etc. — e não há negativa expressa, cabal, por parte do empregador, não há qualquer cabimento para a designação de perícia a ?m de se constatar a doença, simplesmente porque já admitida. Nessa hipótese, como já mencionado, em havendo impugnação especí?ca sobre o grau de incapacitação e principalmente sobre o nexo causal ou concausal é que surgirá a necessidade de perícia judicial.

Pois justamente aqui se encontra a questão crucial da possibilidade de que essa perícia seja feita por outros pro?ssionais que não o médico, porquanto ?sioterapeutas do trabalho, fonoaudiólogos, psicólogos e outros poderão aferir incapacidade funcional e o tal nexo, tendo su?cientes competências para o exame quando a questão estiver afeta a sua área de atuação.

Vale dizer, o médico — nem mesmo o médico do trabalho — não tem assegurada por lei — e nem poderia ter — a privatividade de realização de perícia judicial em casos de acidente

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do trabalho ou doença ocupacional. E a Lei do Ato Médico não mudou nada a esse respeito, com a devida vênia aos que pensam em sentido contrário.

Ora, nesse ponto a lei pretendeu efetuar uma ampla reserva de mercado e por isso mesmo teve alguns de seus dispositivos duramente criticados quando do trâmite legislativo e também após sua publicação, resultando na aposição de veto até mesmo ao primeiro inciso que identi?cava a primeira atividade privativa – veto ao inciso I do art. 4º da referida lei –, o que será objeto de análise no tópico seguinte.

3. A lei do Ato Médico

Como mencionado anteriormente, foi publicada em julho de 2013 a Lei n. 12.842, para regulamentar o exercício da atividade de médico, de?nindo-se as ações que seriam de competência privativa dos médicos.

Em conformidade com o art. 4º da lei, seriam de competência privativa dos médicos, dentre outras: a) a formulação do diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica (inciso I); b) a determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico (inciso X); e
c) a realização de perícia médica e de exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular. O § 1º deste dispositivo legal explica que, por diagnóstico nosológico, entende-se “a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui de?nida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios: I – agente etiológico reconhecido; II – grupo identi?cável de sinais ou sintomas; III – alterações anatômicas ou psicopatológicas”. Assim, numa interpretação sistemática destas regras, ter-se-ia a privatividade do médico, sobretudo do médico do trabalho, para a realização de perícia nos casos de acidente e doença do trabalho, a ?m de diagnosticar a doença e/ou a incapacidade laborativa do trabalhador.

Entrementes, o § 2º do referido art. 4º já excepcionava diversas atividades de formulação de diagnóstico de doença — ou de aspectos importantes a ela relacionados —, para não invadir a seara própria de outras pro?ssões. Eis a dicção desta norma: “Não são privativos do médico os diagnósticos funcional, cinesiofuncional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.” Há, portanto, uma zona grise, quando se procura de?nir atividades privativas dos pro?ssionais relacionados à área da saúde.

É bem verdade que este dispositivo foi vetado. No entanto, o veto se deu por uma questão lógica, pois o inciso I, que de?nia a privatividade do médico para as ações de diagnosticar as doenças, também foi vetado, de modo que não havia sentido em manter uma norma de exceção quando a regra-matriz não prevaleceria.

De outra banda, a regra do § 2º — vetada — deixa evidenciado que há outros diagnósticos inter-relacionados que não podem, em absoluto, ser de competência privativa do médico. Daí por que o diagnóstico funcional, tão caro à perícia judicial em casos de acidente do trabalho ou doença ocupacional, não pode, jamais, ser atribuição privativa de pro?ssionais da área médica, muito menos de médico com especialização em Medicina do Trabalho. Dito de outro modo: a de?nição de qual o melhor pro?ssional da área da saúde a efetuar o exame das funcionalidades do organismo depende de quais órgãos foram afetados pelo acidente ou doença que acomete o trabalhador, em seu aspecto ?siológico, porquanto somente haverá necessidade de perícia judicial quando se alegar alguma incapacidade laborativa.

De se recordar que a saúde é o mais completo bem-estar físico e funcional da pessoa, sendo que, dentre as diversas funções do organismo, encontram-se as do encéfalo, ou do cérebro – função mental ou psíquica. A anatomia do corpo humano diz respeito ao seu aspecto físico: cabeça, tronco, membros (superiores e

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inferiores), órgãos (olhos, ouvidos, nariz, boca, coração, cérebro etc.), aparelhos (digestivo, respiratório, circulatório...

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