Pensando sobre tradição, religião e política no Egito contemporâneo

AutorTalal Asad
CargoDistinguished Professor no Centro de Pós Graduação da City University of New York
Páginas347-402
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n36p347
347347 – 402
Pensando sobre tradição, religião e
política no Egito contemporâneo1
Talal Asad2
Resumo
Neste trabalho, Talal Asad ref‌lete sobre a política no Egito contemporâneo e sua relação com
a tradição islâmica. Tendo como pano de fundo a revolução egípcia de janeiro de 2011 e seus
acontecimentos ulteriores, nomeadamente a hostilidade contra a Irmandade Muçulmana e seus
apoiantes, o antropólogo olha não só para as imbricações entre a perspectiva secular moderna e
o islã, mas essencialmente para os aspectos dessa tradição religiosa que, segundo os secularistas,
são incompatíveis com o Estado soberano moderno. Assumindo uma posição crítica no que
concerne à prática e ao discurso modernos – que visam enfraquecer a tradição islâmica –, Asad
explora as possibilidades de reintegração dessa tradição no caminho democrático egípcio pós-
2011, mas usando-o apenas como modelo de como os Estados liberais podem benef‌iciar de um
tipo de corporização de costumes e princípios éticos oferecidos pela tradição.
Palavras-chave: Tradição. Religião. Política. Egito.
1 Sobre o conceito de tradição
Usei o termo tradição em meus escritos de duas maneiras: primeiramen-
te, como um espaço teórico para levantar questões sobre a autoridade, o tem-
po, o uso da linguagem e a corporização; e, em segundo lugar, como um
arranjo empírico no qual a materialidade e a discursividade estão conectadas
por meio das particularidades da vida quotidiana. O aspecto discursivo da
tradição é, acima de tudo, uma questão de atos linguísticos transmitidos pelas
gerações como parte de uma forma de vida, um processo no qual se aprende
1 Tradução de Jorge Botelho Moniz. Documento publicado originalmente em: ASAD, T. Thinking About Tradi-
tion, Religion, and Politics in Egypt Today. Critical Inquiry, v. 42, n. 1, p. 166-214, 2005 (© Copyright 2015
pela University of Chicago. Todos os direitos reservados. Termo de outorga: 109949. Número de referência
00495310434). Resumo/abstract, palavras-chave/keywords, epígrafes das seções e bibliograf‌ia do artigo fo-
ram organizadas pelo tradutor.
2 Distinguished Professor no Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY).
Pensando sobre tradição, religião e política no Egito contemporâneo | Talal Asad
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e reaprende, reetida ou irreetidamente, a operar com palavras, a adaptar o
próprio corpo e a sentir em contextos particulares. Pela repetição, as práticas
incorporadas ajudam na aquisição de aptidões, sensibilidades e propensões de
tal modo que a prática guiadora da linguagem se torna redundante. E, por
meio dessas práticas, o indivíduo pode autotransformar-se – mudando seu
ser físico, suas emoções, sua linguagem, suas predisposições, bem como seu
ambiente. A tradição opõe-se tanto às teorias empiristas do conhecimento,
quanto às teorias relativistas da justiça. Com isso, quero armar, sobretudo,
que a tradição enfatiza a aprendizagem crítica corporizada, ao invés da teori-
zação abstrata. As teorias empiristas do conhecimento armam a centralidade
da experiência sensorial e da prova, mas, ao fazê-lo, ignoram a conceptuali-
zação anterior da tradição. A minha experiência sensorial é incomensurável
com a sua. É apenas através da linguagem (integrada em uma forma de vida
compartilhada) e da conceptualização que se torna possível desenvolver o ar-
gumento e o conhecimento como processos coletivos. A crítica é central para
uma tradição viva; é essencial para o modo como seus seguidores entendem
a relevância do passado para o presente e do presente para o futuro. Também
é essencial para a compreensão da natureza da circunstância e, desse modo,
para a possibilidade de alterar elementos circunstanciais mutáveis. As teorias
relativistas da justiça asseveram que a justiça é simplesmente o nome das nor-
mas que regulam e guiam a forma de vida das pessoas. E, no entanto, o que
as outras pessoas consideram como justiça é parte da circunstância que os
seguidores de qualquer tradição viva enfrentam. Assim, o convite para mudar
seus aspectos tradicionais contingentes e/ou as circunstâncias nas quais estão
embebidos, constituem um desao para qualquer tradição crítica. Esse não é
um desao composto por teorias abstratas, mas por modos de vida incorpora-
dos (e, porém, criticáveis).
As tradições discursivas e corporizadas não se referem a dois tipos de tra-
dição separados, dois princípios de organização social mutuamente exclusivos
(como, por exemplo, Gesellschaft and Gemeinschaft). Por norma, uso o concei-
to de tradição para falar tanto do uso de linguagem herdada quanto da aqui-
sição de capacidades incorporadas pela repetição. O próprio discurso pode se
encontrar separado da corporização, de modo a iniciar, regular e completar
suas capacidades ou a reetir sobre eventos da vida real. Contudo, o discur-
so também pode ser desprendido da vida, não tendo ligação com qualquer
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 36 - Maio./Ago. de 2017
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realidade. Existem diferentes formas de estar articulado à e desarticulado da
tradição.
Poder-se-ia sugerir que ter uma tradição é expressão de um desejo para a
conclusão de um presente que é simplesmente um tempo inacabado. Ludwig
Wittgenstein (1980, p. 76) escreveu: “A tradição não é algo que um homem
pode aprender; não é uma direção que pode seguir sempre que quiser; não
mais do que um homem pode escolher seus antepassados. Alguém que não
tenha uma tradição, mas que queira, é como um homem tristemente apai-
xonado”. Em outras palavras, para Wittgenstein, a tradição representa, para
alguém que não a tem, o objeto de um desejo inalcançável – a condição
de pertencer a outro, de ser aceito como tal por ele ou ela, esperando, por
intermédio da amizade, aprender (e construir) a conhecer-se. Obviamente,
a linguagem e a prática da tradição podem e devem ser aprendidas (as pes-
soas entram em tradições que não herdaram), mas a ênfase de Wittgenstein
está no fato de que o que é aprendido não é uma doutrina (regras), mas
um modo de ser; não é uma direção que se pode ou não seguir sempre que
quiser, mas uma capacidade para experimentar o outro de uma maneira que
não pode ser renunciada.
Dessa forma, utilizo o conceito de corporização para abordar questões de
início, crescimento e conclusão, nitude, esperança e fracasso; no mesmo con-
texto, uso a ideia de discurso para explorar como os cidadãos, em momentos
de mudança temporal, falam sobre e se envolvem com o poder e a autoridade.
Diferentes gerações e idades, assim como classes e gêneros, habitam em dife-
rentes trajetórias do tempo, visto que sua capacidade para se manterem unidos
e para se inspirarem em outras tradições varia em consonância3. Acredito que a
tradição é algo dado e não inventado. Mesmo quando se propõe uma reforma,
existe uma suposição, implícita ou explícita, de que a essência da tradição – o
que é entendido como essencial para ela – não deve ser alterada, mas defen-
dida através da puricação e do processo de separação entre o contingente e
o essencial. Por isso, contrariamente àqueles que veem uma oposição irrecon-
ciliável entre tradição e genealogia, sugiro que o próprio ato de puricação
da religião se baseie em argumentos genealógicos. A crítica genealógica não é
3 Para uma notável exploração da temporalidade relativamente à política – com especial referência para a
revolução falhada de Granada –, ver: David Scott, 2014.

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