Pensamento Critico Latino-americano, pesquisa militante e perspectivas subversivas do(s) direito(s): introducao ao dossie: Re(encontros) entre o pensamento latino-americano e a pesquisa militante.

AutorBringel, Breno

As fronteiras do "pensamento latino-americano" sao tenues. Foram--e continuam sendo--redefinidas ao longo do tempo por sucessivas correntes politico-intelectuais e autores que buscam ampliar ou restringir seu escopo. Embora suas raizes historicas sejam seculares e possamos reconhecer biografias e aportes previos, e somente a partir do XIX, o longo seculo das independencias politicas que se inicia no Haiti e acaba em Cuba, quando uma serie de nomes proprios como Francisco Bilbao, Joaquin Pablo Posada, Simon Bolivar, Jose Ingenieros, Jose Marti, entre muitos outros, comecam a gerar um acumulo mais sistematico de reflexao que passa a ser denominado a posteriori como pensamento social e/ou politico latino-americano.

Muito influenciado inicialmente pelo liberalismo, o pensamento latinoamericano representa uma reflexao situada e identitaria. A despeito de suas diversas raizes e matrizes politico-ideologicas, busca-se sempre pensar a especificidade e o lugar da regiao no mundo a partir de uma reflexao de carater geo-cultural. No entanto, o fato de pensar a regiao em sua especificidade nao significou necessariamente uma aproximacao questionadora e rupturista, mas sim, muitas vezes, reflexoes que acabaram justificando novas formas de dominacao interna.

Nas disputas acerca do futuro das sociedades da regiao, os sujeitos se enfrentaram fortemente no campo das ideias. Movimentos sociais e movimentos intelectuais se confundiram em dinamicas continuas de retroalimentacao. Produziu-se, assim, no embate com visoes elitistas e positivistas, uma rica tradicao critica interessada em compreender profundamente as raizes dos problemas enfrentados. Neste percurso, buscouse construir formas de conhecer a realidade para conseguir transforma-la por meio da praxis, rejeitando, com isso, aplicacoes mecanicistas de interpretacoes e marcos analiticos foraneos de vies conservador e imperialista.

O adjetivo critico, estendido no inicio do seculo XX e consolidado decadas depois, serviu, deste modo, para pensar o conhecimento situado nao somente a partir de um lugar geografico, mas tambem a partir de um lugar epistemologico. A luta contra os diferentes tipos de colonialismo e de imperialismo e pela libertacao dos povos foram germens seminais na construcao de um olhar alternativo que conectasse a reflexao intelectual com a atuacao politica transformadora. As criticas mais radicais a modernidade, ao capitalismo, ao colonialismo e ao lugar da America "Latina" nesta geopolitica global foram sendo forjadas como eixos fundantes do pensamento critico latino-americano.

Passamos a estar diante nao somente de um pensamento sobre o social e/ou o politico com capacidade de intervencao publica e de reformas progressistas, mas de um pensamento comprometido com a mudanca social radical e com lutas e movimentos sociais concretos; com o fim de todas as formas de dependencia, exploracao e subalternidade; e/ou com o dialogo com diversas formas e espacos de saber.

Uma caracteristica do pensamento critico na regiao tem sido a disposicao a uma interacao com as teorias ocidentais (marxismo, teoria critica da Escola de Frankfurt, existencialismo heiddegeriano e sartreano, etc.), buscando, no entanto, um dialogo critico e uma recepcao criativa das mesmas. Em meados do seculo XX, com a institucionalizacao das Ciencias Sociais, houve uma renovada busca de interpretacao autonoma que, para alem do plano da denuncia moderno-colonial, conseguiu avancar de forma substantiva em aspectos teoricos e metodologicos.

De fato, entre as decadas de 1950 e 1970 foram elaboradas categorias, nocoes e conceitos que permitiram captar a "especificidade global" da regiao, bem como formas de superacao de seus principais problemas historicos e sociais. Somavam-se as discussoes previas sobre o anti-imperialismo, o socialismo indo/latino-americano e o nacionalismo periferico, novas teorizacoes sobre a modernizacao, a matriz nacional-popular, a marginalidade, o colonialismo interno, o desenvolvimento e a dependencia.

Estas formulacoes conceituais contribuiram enormemente ao questionamento do eurocentrismo, da colonialidade e da dependencia academica, estimulando outras formas e praticas de producao do conhecimento e da juridicidade gestionadas a partir dos diferentes processos de organizacao e contestacao social na regiao. Nesse aspecto, torna-se central a articulacao dessas experiencias com reflexoes teoricas e empiricas que visavam tanto a compreensao da nossa realidade concreta, quanto atuacoes transformadoras da realidade e dos direitos.

Diante disso, a pesquisa militante emerge, em um novo patamar, como uma possibilidade teorico-metodologica de construir investigacoes comprometidas com a transformacao social, ancoradas na pratica e na dimensao da acao, bem como de estimular perspectivas subversivas dos direitos. Por um lado, o compromisso com a mudanca social conduzia a uma maior ligacao e conexao com movimentos sociais, coletividades e organizacoes populares. Por outro, uma serie de dispositivos metodologicos afins as teorias e sensiveis ao contexto intelectual e politico foram forjados, tais como a insercao, o compromisso-acao, a sistematizacao de experiencias, as formas e praticas da educacao popular, a recuperacao critica da historia e das lutas populares, a devolucao sistematica dos conhecimentos, a investigacao coletiva, os diagnosticos e as tecnicas participativas, dentre outros, que foram sendo criados e reinventados de maneira criativa.

Muitos foram os termos, as formas e as consignas utilizadas para expressar esse compromisso e essas praticas de pesquisadores, professores, profissionais e integrantes de movimentos sociais e organizacoes politicas em contribuir efetivamente para a transformacao de uma realidade social marcadamente desigual. Com a nocao de pesquisa militante, adotada neste dossie, pretende-se abarcar todo esse espaco amplo de producao de conhecimento orientado para a acao transformadora, que articula ativamente pesquisadores, comunidades organizadas, movimentos sociais e organizacoes politicas, em espacos formais ou nao de ensino, de pesquisa e de extensao (1).

Diante desta concepcao, a militancia seria o compromisso etico e politico com a mudanca social e que, por isso, envolve posicionamentos e atuacoes pro-ativas em varias areas da vida, como a profissional e a academica, envolvendo a insercao em espacos coletivos de discussao, articulacao e mobilizacao com objetivo de viabilizar e potencializar lutas politicas que representem a construcao de uma sociedade justa e igualitaria. Recoloca-se assim, em um patamar digno e legitimo, tanto as pesquisas que envolvam a producao de conhecimento e a mudanca da realidade social como as militancias engajadas em questionar os sentidos de como transformar o mundo de hoje.

Os vinculos entre o pensamento critico, a pesquisa militante e os usos subversivos do(s) direito(s)

O pensamento critico teve nomes e sobrenomes, mas em sua producao nao vejo escola nem discipulos, somente vontade subversiva (...) A forca subversiva se reconhece por sua capacidade de alterar, mudar, desorganizar. Nao e o elogio do caos, mas a desordem que antecede uma nova ordem. Desta forma se expressava o sociologo guatemalteco Edelberto Torres Rivas quando indagado pelo Conselho Latino-americano de Ciencias Sociais (CLACSO) (2) sobre a existencia de uma tradicao de pensamento critico latino-americano. Assim como Rivas, o sociologo Fals Borda utilizou a nocao de "subversao" com um sentido de transicao, ou seja, de destituicao do velho e de instituicao do novo. O pensamento critico latino-americano durante varias decadas combinou este duplo movimento: por um lado, critica...

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