O meio ambiente do trabalho nas prisões sob custódia. O olhar sobre os agentes penitenciários: encarcerados sem penas pelo estado infrator

AutorAlessandro Santos de Miranda
CargoProcurador da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região ? Brasília/DF, aprovado no VIII Concurso (1999). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha, Espanha
Páginas13-35

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I) Inserção dos agentes penitenciários no sistema social carcerário e vice-versa

O presente estudo tem como objetivos identificar e analisar os dados que podem ser destacados como de maior relevância com relação às condições de segurança, higidez e saúde — física e mental — e aos processos vivenciais de inserção e assimilação dos Agentes Penitenciários na estrutura institucional e organizacional carcerária. Inicialmente, assume-se o compromisso crítico e filosófico de atuar na cognição das realidades sociais específicas destes profissionais para, com base nos conhecimentos empíricos e jurídicos, promover a melhoria das condições de trabalho dessa importante categoria profissional.

A denominação Agente Penitenciário aplica-se ao trabalhador que desempenha funções diretamente relacionadas à segurança (vigilância e escolta), disciplina, atendimento e orientação, além de atividades que objetivam a reinserção social das pessoas custodiadas em estabelecimentos prisionais. Como exigências para admissão à função, o candidato deve ter ensino médio completo e submeter-se: a concurso público de provas

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objetivas; à avaliação de aptidão física; à sindicância da vida pregressa e investigação social; à avaliação psicológica; e, por último, à aprovação no curso de formação profissional (com aulas teóricas e atividades práticas a serem desenvolvidas no complexo carcerário)1.

Ao descrever o conteúdo de suas próprias tarefas, o Agente Penitenciário vê-se como o intermediário entre o detento e todas as atividades a ele ligadas. Assim, a alimentação, a condução ao advogado, ao médico e ao fórum ou qualquer outro contato do preso com o mundo exterior é realizado com intervenção daquele profissional. Embora seja descrito como um trabalho com tarefas preestabelecidas, o cárcere oculta uma violência própria que a qualquer momento transforma a rotina de todos os que nela trabalham ou estão custodiados. Neste sentido, a violência transforma-se no fundamento de toda atividade ligada à segurança nas prisões2.

Desta forma, a consciência aguçada do risco da atividade faz com que os Agentes Penitenciários nunca abandonem precauções individuais e coletivas, visando garantir sua sobrevivência em meio a um mundo onde a violência é endêmica e estrutural. Em nenhum momento, no exercício de suas atividades, aqueles podem se descuidar do estado permanente de vigilância e agressividade, e estas se revelam como processo natural e necessário ao controle institucional, pois, no ambiente carcerário, a violência explode em ciclos e, além de manter a disciplina, o Agente precisa antever quaisquer problemas que possam surgir3.

Assim, é tarefa primordial dos Agentes Penitenciários neutralizar o contrapoder oriundo das conjunções horizontais dos reclusos4. Desse modo, devem evitar os contágios maléficos de grupos; decompor as resistências coletivas (agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios e tramas); analisar as pluralidades fugidias; estabelecer as presenças e as ausências; saber onde e como encontrar os custodiados; instaurar as comunicações úteis e interromper as demais. Enfim, cabe-lhes vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo e sancioná-lo, o que o faz exercendo seu poder disciplinar5.

Essa não é outra que a ideia do panoptismo6, constituindo a prisão um espaço fechado, vigiado em todos os seus pontos, onde cada indivíduo

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(detentos e Agentes — “vigias”) é constantemente localizado, examinado e controlado7. Nas penitenciárias, os menores movimentos são observados e todos os acontecimentos são registrados.

O poder disciplinar dos Agentes Penitenciários se exerce tornando-se invisíveis, pois os reclusos é que devem ser vistos. O indivíduo disciplinar8 está submetido a um campo de visibilidade obrigatória, e sabe disso, submetendo-se às limitações impostas pelo poder carcerário, fazendo-as funcionar espontaneamente sobre si mesmo9. Daí decorre o efeito mais importante do modelo panóptico: induzir no detento um estado consciente e duradouro de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder disciplinar. O essencial, pois, é que ele se saiba vigiado10.

A este respeito, ganha importância a questão que se refere ao equilíbrio entre confinamento e repressão. Pela própria natureza da instituição penal, concentrando pessoas cujas carências mais emergentes se colocam no campo da perda de direitos, é atribuído ao Agente Penitenciário o pleno exercício do controle, da vigilância e da punição, mesmo que conseguidas por meio de procedimentos repressivos, incompatíveis com as relações de cidadania. A rigor, a presença do Agente vem concretizar a estratégia institucional imposta às prisões: manter indivíduos confinados — em situação desumana — o mais dóceis possível. Os procedimentos utilizados para obter referido intento acabam sendo justificados naturalmente como parte imprescindível da armadura institucional.

Com efeito, pretende-se vislumbrar o cotidiano carcerário com enfoque na saúde, higidez e segurança dos Agentes Penitenciários — neste estudo
,considerados como categoria de segurança pública —, em contraposição à tendência clássica de identificar, no referido ambiente, somente os detentos em cumprimento de penas, priorizando um dos grupos desse sistema

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organizacional quando, de fato, não é o único que o constitui. Assim, a bibliografia recorrente revela um olhar, via de regra, em direção única aos reclusos, em detrimento dos demais grupos sociais que se vinculam, direta ou indiretamente, ao ambiente penitenciário, esquecendo-se, sobretudo, daqueles que possuem relação de trabalho direta com o drama da privação da liberdade.

Não será possível melhorar o nefasto ambiente carcerário sem que se compreenda a complexidade e totalidade de suas estruturas, processos e dinâmicas enquanto elementos de um sistema social peculiar: o sistema prisional. Neste, os Agentes Penitenciários, entre outros trabalhadores que desenvolvem suas atividades nos presídios11, compõem um grupo social que aguarda e exige a atenção de um olhar técnico-jurídico-filosófico sobre seus vínculos com o sistema carcerário, mesmo que se admita, em comparação com a sociedade livre, que existam importantes correspondências entre suas realidades, em especial no que concerne às relações de poder.

Sob aludido enfoque, percebe-se que o estabelecimento prisional não é uma miniatura da sociedade em liberdade, mas um sistema particular, cuja característica principal é a relação de poder disciplinar e hierárquico pertinente à política criminal, na medida em que serve para “adestrar” os indivíduos ao status quo vigente12. Este poder utiliza formas sutis de inserção social, como a normalidade da sanção. Assim, nesta sociedade específica, com fins próprios e cultura particular, emerge a interação de duas realidades, a oficial (prescrita) e a interno-informal (real), o que, naturalmente, enseja o surgimento de conflitos, os quais são gerenciados por meio de processos de acomodação e resignação por parte de cada integrante (trabalhadores e detentos) do sistema13.

Ao se propor analisar a inserção dos Agentes Penitenciários na estrutura prisional, e vice-versa, a fundamentação empírico-teórica do presente estudo originou-se das inspeções realizadas pelo autor em oito estabelecimentos prisionais do Distrito Federal14 em julho de 2013 com o objetivo

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de investigar, com maiores detalhes, o processo de trabalho e a dinâmica própria da categoria em comento no intuito de promover melhorias no meio ambiente laboral, com repercussão direta na qualidade de suas vidas — profissional e pessoal —, bem como, consequentemente, no grupo recluso (presos provisórios e condenados).

Como postulados básicos para a análise e solução das condições laborais dos Agentes Penitenciários, assume-se que15:

  1. os Agentes são parcela integrante do sistema carcerário16, sendo este seu ambiente de trabalho;

  2. o ambiente penitenciário deve ser reconhecido como uma instituição estruturada no modelo típico de organização pelo exercício do poder (vigilância hierárquica e agressividade);

  3. às penitenciárias, pelo ordenamento jurídico atual17, são atribuídos basicamente três objetivos organizacionais quanto ao grupo apenado que a ela se encontra vinculado: punir, recuperar e prevenir novos delitos18;

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  4. o papel do Agente Penitenciário está intimamente ligado à sua conduta, pois o ser humano deve ser considerado em sua totalidade e não numa visão fragmentada19;

  5. os Agentes Penitenciários assimilam e incorporam, em razão da exposição significativa ao ambiente prisional, um processo especial de socialização, com hábitos de conduta, padrões de comportamento, vocabulários, códigos e valores peculiares àquela estrutura social, vez que o presídio se constitui em um ambiente diferenciado daquele existente fora dos limites da instituição.

    Asim, decorre da admissão da complexidade e perversão do sistema penitenciário o reconhecimento de que todos os seus aspectos e dimensões deverão ser objeto de enfrentamento, não mais sendo possível que o enfoque dado àquele limite-se a privilegiar apenas um de seus grupos sociais, qual seja, o dos apenados, em detrimento das condições dignas de trabalho que devem ser conferidas pelo Estado20 aos Agentes Penitenciários para propiciar o bom funcionamento de toda a organização prisional.

    O presente estudo focaliza, também, a problemática ocupacional referente aos agravos à saúde sofridos pelos Agentes Penitenciários no exercício da atividade...

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