Pena e trabalho - referências para um exercício de reflexão crítica sobre o trabalho como elemento do discurso moderno de ressocialização do preso

AutorBeatriz Vargas
Páginas426-431

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"Se todos nós ficássemos na prisão duas ou três gerações, no final, o mundo inteiro se tornaria melhor." (J. B. Finley, Memorial sof Prison Life,

Cincinnati, 1851, p. 41).

A relação entre pena e trabalho, ou seja, a correspondência entre o sistema punitivo e o modo de produção engendrado pelo modelo econômico nas diversas fases do capitalismo é fato verificável historicamente. Falando de tempos e lugares distintos, George Rusche, Dario Melossi e Massimo Pavarini se dedicaram a demonstrar essa relação.

Rusche foi o pioneiro. Desenvolveu sua tese seminal a partir de um artigo datado de 1931, antes de deixar a Alemanha, fugindo da perseguição nazista. O trabalho de Rusche foi finalizado por Otto Kirchheimer que acrescentou os capítulos finais e fez algumas modificações no manuscrito entregue pelo autor, mantendo, contudo, seus "conceitos fundamentais" - para usar da expressão de Max Horkheimer no prefácio à primeira edição de língua inglesa. No mesmo prefácio uma frase enigmática,a título de explicação para a conclusão da obra por Kirchheimer: "o fato de que o Dr. Rusche não estava disponível para a reelaboração de seu trabalho"... Intitulado Punishment and Social Structure, o livro foi publicado em 1938, nos Estados Unidos, pela Universidade de Columbia, Nova Iorque, para onde o Instituto Internacional de Pesquisa Social de Frankfurt havia sido transferido depois de um ano de seu fechamento pelo governo de Hitler.

Em 1977, Melossi e Pavarini, trabalhando com a mesma hipótese de Rusche, examinam as origens do sistema penitenciário entre os séculos XVI-XIX e publicam Carcere e Fabbrica. Melossi se detém, primeiramente, nas instituições carcerárias da Inglaterra e da Europa continental, para depois investigar especialmente a gênese da penitenciária em seu país, a Itália. Pavarini analisa a origem da penitenciária nos Estados Unidos e a experiência norte-americana da prisão no contexto que vai de uma sociedade agrícola até uma sociedade industrial, como também a política do trabalho carcerário, apresentando, ao final, a ideia do cárcere como "fábrica de homens" e o proletariado como produto da máquina penitenciária.

Os quatro autores mencionados integram a grande escola que em criminologia é conhecida como "crítica", assim chamada por haver instaurado, por dentro do mesmo campo de conhecimento, a crítica da criminologia tradicional, positivista e etiológica. O pensamento crítico em criminologia se caracteriza pela problematização da questão criminal no contexto macrossociológico e, nessa linha, pela inclusão do sistema penal como objeto da investigação criminológica. A análise estrutural, própria da tradição marxista, não exclui, para os efeitos dessa crítica, a contribuição da microssociologia e, para tanto, é suficiente lembrar a recepção, pelo criticismo, do labeling approach - teoria do etiquetamento ou rotulacionismo, com sua irreversível contribuição ao entendimento dos processos de seletividade e de criminalização. Os quatro autores falavam de um lugar determinado, a Europa, e três deles tinham como objeto de pesquisa o sistema penal europeu, à exceção de Pavarini, que se concentrou nos Estados Unidos. Todos eles tinham em mira formas concretas de aplicação do castigo penal pelo Estado, em datas e locais determinados.

Uma das obras mais importantes sobre a história do nascimento da prisão, na França, entre os séculos XVIII e XIX, é de Michel Foucault, Surveiller et Punir, publicada em 1975, ou seja, dois anos antes que o livro de Melossi e Pavarini. Esse registro é feito em último lugar, apenas, porque Foucault não segue exatamente a mesma linha de investigação dos demais autores citados. A relação entre pena e trabalho não constituiu um problema para o autor francês que, antes, incorpora esse elemento em sua análise, para, contudo, voltar sua atenção aos registros e documentos relacionados aos

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rituais, às repetições, aos fatos quotidianos dos quartéis, dos colégios, dos orfanatos, recolhendo as rotinas em seus detalhes, à maneira da micro-história.

Acontece que Rusche está lá no texto de Foucault. Não somente como referência expressa, mas presente na ideia essencial, comum a ambosos textos, de que a prisão, ao contrário do que informa o senso comum, não é isolada do contexto social. Foucault, diferentemente dos outros autores mencionados, não está especialmente preocupado com as conexões macrossociológicas entre a punição e a estrutura econômica. Ele se interessa pela rede de poder disciplinar e sua função na constituição de operários "dóceis e úteis", aqueles que vão formar a mão de obra para o trabalho da fábrica. A origem da prisão está nesse poder aperfeiçoado pela demanda de controle da sociedade burguesa. A disciplina, elaborada e experimentada antes que a prisão fosse legalmente definida como pena e se convertesse na principal sanção penal da moderni-dade, é uma "tecnologia de poder sobre o corpo", sobre os que devem ser educados, "vigiados, treinados e corrigidos". Assim, a disciplina surge antes da prisão e é "enxertada" no sistema penal juntamente com a privação da liberdade. A prisão nasce da e como disciplina e não o contrário, demarcando o surgimento do delinquente, isto é, do homem como objeto de saber para produção de um discurso com status de ciência e, por isso, um discurso que se afirma como verdade. Por isso mesmo, a prisão - aparelho disciplinar "exaustivo, completo e austero" - é a instituição cuja análise Foucault reserva para o final do seu trabalho. Ele não trilha o mesmo caminho de Rusche, mas ratifica suas principais conclusões. Ninguém melhor do que o próprio Foucault para apresentá-las1:

Do grande livro de Rusche e Kirchheimer podemos guardar algumas referências essenciais. Abandonar em primeiro lugar a ilusão de que a penalidade é antes de tudo (se não exclusivamente) uma maneira de reprimir os delitos (...). Analisar antes os ‘sistemas punitivos concretos’, estudá-los como fenômenos sociais que não podem ser explicados unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas fundamentais; recolocá-los em seu campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento; mostrar que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar (e nesse sentido, se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções).

Segundo Gabriel Anitua2, "parece" que a tese de Rusche - do manuscrito original - foi considerada "excessivamente crítica" para os moldes norte-americanos, o que motivou "algumas sugestões moderadoras" de Sellin e Sutherland, responsáveis também por apontarem alguns equívocos "estatísticos". Ainda, conforme Anitua, as contribuições de Kirchheimer, "um frankfurtiano discípulo de Carl Schmitt", cientista político e constitucionalista, garantiram aos últimos capítulos do livro uma feição menos economicista, além de evitarem a crítica ao capitalismo estadunidense e empreenderem uma censura da "marca repressiva do regime nazista". Foucault sintetizou a tese de Rusche - aquela relação entre o regime punitivo e o concreto sistema de produção em que está inserido determinado sistema penal - da seguinte maneira3:

(...) numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão de obra suplementar - e constituir uma escravidão ‘civil’ ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio; com o feudalismo, e numa época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais - sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível; a casa de correção - o Hospital Geral, o Spinhuis ou Rasphuis - o trabalho obrigatório, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio. Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mão de obra livre, a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição, e seria substituída por uma detenção com fim corretivo.

Se, por um lado, a hipótese analítica de Rusche/Kirchheimer, seguida por Melossi e Pavarini, é perfeitamente aplicável ao estudo de qualquer sistema penal em um dado contexto histórico-econômico, por outro lado, suas conclusões - assim como as conclusões de Foucault - não podem ser simplesmente trasladadas como explicação para a experiência punitiva brasileira nos mesmos períodos. Essa afirmação é um tanto óbvia, diante do fato simples de que ordem feudal, mercantilismo, industrialização e a passagem entre uma e outra dessas fases são fenômenos europeus. No...

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