Pena de morte: violência institucionalizada

AutorClayton Reis
CargoJuiz de Direito aposentado no Paraná. Professor Adjunto da Universidade Estadual de Maringá. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Docente da Universidade Paranaense (UNIPAR). Docente da Escola da Magistratura do Paraná. Docente da Faculdade de Direito de Curitiba. Membro da Academia Paranaense de Letr
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"Porque, enquanto um homem permanece entre os vivos, há esperança". (Eclesiastes, IX, 4)

Considerações Preliminares sobre o Tema

A proposta de plebiscito para a adoção da pena de morte no Brasil suscita inúmeros debates na ordem jurídico-social. O tema envolve o estudo de questões na esfera penal, filosófica, religiosa, política penitenciária e sociológica. Uma das causas, com toda certeza, do acirramento dessas discussões deve ser tributada aos atuais delitos de sequestros com requintes de perversidades, bem como em razão de crimes violentos contra a pessoa, amplamente divulgados pela imprensa, que constituem causas de enormes comoções na esfera emocional da sociedade.

A Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 5o, inciso XLVII, inseriu em seu texto a proibição da adoção da pena de morte, ressalvada a hipótese prevista no artigo 84, XIX, ou seja, em caso de guerra externa. No mesmo sentido, a nossa Carta Magna, no caput do artigo 5°, assegurou a todos os brasileiros o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, requisitos que constituem os direitos e garantias fundamentais da pessoa. Ao proceder dessa forma, a nossa Constituição absorveu os princípios basilares que norteiam a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948. Essa mesma ordem de ideias se encontra igualmente consagrada no artigo 4° do Código Civil Brasileiro, que assegura ao nascituro desde a concepção o direito à vida. Da mesma forma, o artigo 3° do Projeto do Código Civil Brasileiro consagra esse princípio. No mesmo sentido pautou o artigo 7o do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) ao prescrever que a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde. O nosso sistema jurídico, dessa forma, insculpiu em seus textos uma norma pétrea consolidada na ideia de proteção à vida, ratificando a nossa postura histórica e sociológica contrária à pena de morte.

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Todavia, em que pesem essas considerações, é inegável que discussões em torno do tema são acirradas, isto porque possuem fortes componentes de ordem psíquica, "...além de constituir um debate estéril (emuitas vezes demagógico)," segundopielecionaLuizFlávioGomes(1993,p.315) e, "significa querer ressuscitar um assunto que, juridicamente está definitivamente morto entre nós a partir de 1988".

No entanto, a punição do delinquente, mediante a subtração da sua vida, é questão relevante perante a opinião pública leiga, que não atenta para suas consequências, bem como pelo inevitável desvio de caminho de política criminal que a adoção do instituto inevitavelmente acarretará. Para uma melhor elucidação desse palpitante e atual tema, é imprescindíveLque efe seja abordado nos seus múltiplo aspectos, a começar no plano jurídico e histórico1.

E preciso eliminar esse atavismo que se encontra impregnado nas sensações de nosso espírito que, em muitas ocasiões, afastam-nos das rotas de nossos destinos superiores. Como já dizia Rush em 1787, citado por Michel Foucault (1989, p. 15), "só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forcas, o pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão considerados, na história dos suplícios, como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito."

Na realidade, somos, na maioria das vezes, espectadores dos quadros e dramas dantescos da história da vida que se desenrolam à nossa frente. Assistimos passivamente à passagem dos fatos humanos, sem a necessária consciência do que eles possam representar ou contribuir para a nossa compreensão, bem como para a melhoria do nosso ambiente familiar e social. Segundo Erich Fromm (1979, p. 92), "o fato de que, embora superficialmente, o drama grego ou os quadros de Rembrandt sejam altamente apreciados, seus substitutos reais são o crime, o assassinato e a violência, diretamente visíveis na televisão ou nas reportagens dos jornais."

Definição Jurídica do Tema

De acordo com a opinião de De Plácido e Silva (1993, p. 212), a morte, do latim mors, mortis, de mori (morrer), exprime, geralmente, a cessação da vida do animal ou do vegetal. Pela morte, em seu grande efeito jurídico, tudo se resolve e se soluciona: mors omnia solvi, é a regra afirmada. Mors ultima liena rerum est, conforme dizia Horácio. A morte é o tempo final de todas as coisas.

Sob o ponto de vista jurídico a pena de morte é a eliminação física do delinquente, autorizada pela legislação institucionalizada do Estado, com o objetivo de estabelecer uma política criminal de caráter nitidamente punitiva e repressiva, quando se tratar da prática de crimes enquadrados pelo dispositivo normativo como crimes hediondos. Assim, segundo a ótica legal que se pretende institucionalizar, todo e qualquer ato atentatório contra a pessoa humana, capaz de subtrair ou comprometer sua integridade física, em face da prática de violência desmedida, será capitulado pela norma penal como delito de grande expressão cuja pena seria a execução do delinquente.

Do ponto de vista médico, segundo esclarece Orlando Soares (1989, p. 275), "a morte representa a ruptura do equilíbrio biológico e físico-químico, indispensável à manutenção da vida. Quer dizer, o corpo inerte sofre ações de natureza física, química e microbiana, que determinam os fenómenos

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cadavéricos ou abióticos. "A execução da pena de morte constitui uma forma violenta de extermínio da vida", acentua o autor adiante, "ou ocisão, de qualquer que seja o meio utilizado."

Para o leigo a pena de morte representa a grande solução para o problema dos crimes hediondos. Todavia é necessário analisar os diversos componentes integrantes desse tema, através de imprescindível reflexão. O que se observa nos países que a adotaram, no entanto, é que a pena de morte não contribuiu para a dissuasão da criminalidade.

Conceitos Históricos

A eliminação física do infrator tem expressivos exemplos na história da civilização. O Código de Hamurabi, segundo apontamento realizado por Jair Lot Vieira (1994, p. 13) no texto do seu artigo 1°, prescreve que "se um homem acusou outro homem e lançou sobre ele suspeita de morte, mas não pode comprovar, seu acusador será morto". No mesmo sentido, o artigo 376 do Código de Manu pontifica: "uma tonsura ignominiosa é imposta em lugar da pena capital a um Brâmane adúltero, nos casos em que a punição das outras classes seria a morte."

A morte é assim um preceito normalizado entre os povos da antiguidade e a única forma de eliminar quem cometesse delitos considerados atentatórios à dignidade da ordem social ou do soberano.

"Entre os romanos", ensina Ailton Stropa Garcia (1993, p. 49), "após o julgamento do pater famílias, surgiu a Lei da XII Tábuas, com as seguintes penas: morte, talião, açoites, prisão, desterro, escravidão, privação da cidadania, infâmia, confiscação e multa. Para os Germânicos concedia-se, até a faculdade de grupos familiares, de vingarem os crimes cometidos contra seus parentes." Na Grécia antiga, a pena capital era procedimento comum, sendo suficiente a título de argumento, rememorar que Sócrates foi condenado à morte, mediante a ingestão de cicuta, acusado por corromper a juventude e desrespeitar as tradições religiosas.

"O uso da pena de morte é universal", segundo Orlando Soares (1989, p. 288), "constituindo costume em todas as épocas e entre todos os povos, desde a mais remota antiguidade: egípcios, judeus, babilónios, gregos, romanos e outros: seu abolicionismo é que constitui ideia recente, sob forma organizada, a partir do século XVIII"

No período medieval, entre os séculos XIV e XVIII, em que medrou a intolerância religiosa e o excessivo arbítrio do poder monárquico e religioso, a eliminação física das pessoas que se opuseram aos dogmas religiosos, bem como aos regimes tirânicos foi institucionalizada - como se a morte física das pessoas, especialmente das notórias e célebres, fosse capaz de eliminar suas ideias2.

No mesmo sentido, poder-se-á afirmar que a eliminação física do delinquente não elimina o crime, que permanece insolúvel e presente nas pessoas de outros delinquentes.

A pena de morte se encontrava presente nas Ordenações Portuguesas, e todos os súditos da Coroa Portuguesa estavam sujeitos a ela. Após a proclamação da independência, em 1822, a pena de morte passou a figurar no Código Penal do Império, em 1830. Com a proclamação da República em 1889 e a promulgação do novo Código Penal em 1890, a pena de morte no Brasil foi abolida. Excepcionalmente, ela figurou na Lei de Segurança Nacional de 1969, para delitos especiais contidos

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em seu texto. Posteriormente, as Leis de Segurança Nacional de 1978 e 1983 a revogaram, quando, então, foi substituindo pela pena de reclusão.

"Contemporaneamente", aponta Orlando Soares (1989, p. 276), "o regime militar implantado no Brasil, pós 1964, aplicou largamente o instituto da morte civil, com a adoção de instrumentos legais de força, suspendendo os direitos civis e políticos por dez anos, irrecorrivelmente, dos antagonistas àquele regime."

A história da aplicação da pena de morte retraía, dessa forma, os diferentes momentos do processo civilizatório dos povos. Ela foi utilizada para reprimir os delitos, mas, especialmente, para eliminar os opositores aos regimes autocráticos nos diferentes períodos da existência humana. Na realidade, a pena de morte possui um elevado significado na sucessão de caos que é a marca do processo civilizatório, em que o homem procura aprender o valor e a perspectiva das coisas transitórias...

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