Pelo Direito a vida segura: um estudo sobre a mobilizacao negra pela aprovacao do Estatuto da Juventude no Congresso Nacional/The Right to a Safe Life: a study on the black mobilization for the Youth Statute approval in the National Congress.

AutorFreitas, Felipe da Silva

Introducao

O campo das ciencias sociais foi palco, nos ultimos 30 anos, de intensos debates sobre a juventude enquanto categoria social e sobre a emergencia dos jovens e dos seus coletivos como atores politicos na luta por direitos. Com destaque para os processos de institucionalizacao das politicas publicas de juventude (PPJ's), proliferaram-se a partir dos anos 1990 estudos sobre "jovens e participacao politica" (1), "jovens e politicas publicas" (2) ou ainda sobre "jovens e demandas por direitos" (3) colaborando para elucidar os sentidos da experiencia juvenil na contemporaneidade e compreender as relacoes construidas em torno da ideia de participacao, lideranca e protagonismo.

Tais estudos, no entanto, permaneceram concentrados no campo das ciencias sociais e nao foram acompanhados por investigacoes semelhantes no ambito do direito que, por sua propria tradicao enquanto disciplina dogmatica, foi pouco impactada pela ebulicao de debates sobre o pulsante tema dos/as jovens e das juventudes que ocorrera em outras areas do conhecimento.

Ainda que toda a cena da participacao juvenil nos ultimos 30 anos estivesse bastante conectada com uma questao eminentemente juridica - "Como construir, formalizar e garantir direitos para um determinado grupo?"--os estudos desenvolvidos por profissionais da area do direito persistiram pouco interessados a compreensao da emergencia e movimentacao destes atores. Este quadro provocou o afastamento entre o debate juridico e as investigacoes sobre juventude enquanto categoria social--que permaneceu insulada nas areas das ciencias sociais.

Deste modo, multiplicaram-se no meio juridico analises que replicaram a versao reducionista de jovens como continuacoes das criancas e adolescentes e descartaram-se as peculiaridades dos jovens como portadores de trajetorias, desafios e abordagens proprias. O principal resultado desta lacuna no debate juridico tem sido a superficialidade com que os operadores do direito tratam as conquistas legislativas dos/as jovens e como ha dificuldade por parte destes em "fazer cumprir" as leis que garantem direitos proprios as juventudes.

A superacao destas lacunas exige dos atores engajados no mundo juridico uma revisao de praticas para destacar: Como (e porque) as questoes dos/as jovens emergem no campo legislativo?; Como "fazer valer" a lei que reconhece direitos a diferentes grupos num grande contingente de pessoas jovens que vivem no Brasil?; Como analisar, por exemplo, as diferencas entre o tratamento as demandas juridicas de jovens negros e nao negros dentro de uma sociedade racista e que discrimina tao acintosamente pessoas oriundas de grupos sociais historicamente excluidos?

Para refletir sobre algumas destas questoes pretendemos nesse trabalho analisar as articulacoes juvenis pela aprovacao de um marco legal--o Estatuto da juventude--destacando o modo de tratamento da demanda politica dos jovens negros pelo direito a seguranca publica, com vistas a sublinhar a incidencia da acao publica dos(as) jovens negros(as).

A partir de pesquisa documental, pretendemos nesse estudo analisar a mobilizacao dos atores politicos da juventude negra no processo de tramitacao do Estatuto da Juventude, Lei n. 12.852, de agosto de 2013 destacando as narrativas construidas acerca da nocao de direitos e buscando compreender as demandas relativas a vida segura no ambito da disputa e do trabalho parlamentar.

Na primeira parte do texto apresentaremos o debate sobre a institucionalizacao das politicas de juventude e sobre o papel da juventude negra na negociacao destes arranjos institucionais. Na segunda parte, discutiremos a colocacao do tema da seguranca dentro do Estatuto da Juventude e as ameacas que se apresentam a implementacao deste marco normativo ressaltando quais as responsabilidades do Estado em relacao a este grupo social e como manejar os instrumentos juridicos na efetivacao do eixo central destas garantias.

A institucionalizacao das politicas de juventude no Brasil: SNJ, CONJUVE e Estatuto da Juventude

A historia da institucionalizacao das politicas de juventude no Brasil e formada por marcos relacionados a participacao social (o conselho e as Conferencias nacionais de juventude), a criacao de uma rede de gestao (os orgaos estaduais e municipais de politicas publicas de juventude) e a consolidacao de um marco legal referente ao tema (Emenda Constitucional da Juventude, Estatuto da Juventude e Sistema Nacional de Juventude). Estas tres dimensoes (participacao social, gestao e marco legal) formam a base sobre a qual se assentam os principais avancos das politicas publicas de juventude no periodo recente da historia brasileira e constituem a principal fonte de analise sobre o tema para pesquisadores/as e ativistas sociais.

Neste topico, analisaremos o processo de consolidacao das PPJ's com vistas a debater os temas da participacao politica, formacao de atores sociais e do reconhecimento publico de demandas politicas com enfase na questao da juventude negra e nas suas questoes especificas. O proposito desta secao e ressaltar o contexto no qual o Estatuto da Juventude foi construido e o papel da juventude negra na sua consolidacao enfatizando as disputas, tensoes e ambivalencias verificadas no periodo.

A SNJ e o CONJUVE como resultado das lutas juvenis

A criacao da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) e do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) em 2005 representou um importante passo na constituicao de uma agenda publica nacional referente aos direitos da juventude. A criacao de uma estrutura federal responsavel pela gestao das politicas publicas voltadas ao segmento juvenil induziu uma serie de acoes nos estados e municipios sobre o tema e, ao mesmo tempo, abriu novos horizontes para discussao sobre politicas publicas mediante o incremento de espacos--formais e informais--de reflexao e de trabalho sobre juventude, sobre seus desafios e perspectivas.

A SNJ e o CONJUVE oportunizaram a agregacao e o encontro de atores da sociedade civil que, em face da atuacao politica nos espacos de participacao das politicas publicas de juventude, passaram a se articular reciprocamente e a relacionar-se no ambito desta nova esfera de disputa politica. A acao desenvolvida pela SNJ e pelo CONJUVE proporcionou a diferentes grupos e segmentos juvenis o estabelecimento de conexoes e instancias de negociacao que resultaram, nos anos seguintes, em interessantes mobilizacoes politicas, em especial em torno da construcao de redes, foruns e coletivos focados na incidencia neste ambito das politicas publicas.

Neste sentido, as Conferencias de Juventude ocorridas nos anos de 2008, 2011 e 2015 caracterizam-se como importantes pontos de inflexao na construcao das politicas de juventude na medida em que caracteriza-se como um espaco classico de participacao e controle social, mas tambem constituiram-se como oportunidade de auto-organizacao dos proprios grupos juvenis e, porque nao dizer, de formacao e militancia destes jovens na luta pelos proprios direitos.

Para os jovens representantes de determinados segmentos sociais, como ciganos, indigenas, quilombolas, jovens oriundos de favelas e que vivem no meio rural, a participacao na Conferencia significou um importante avanco para sua organizacao politica enquanto grupo, bem como para a uma maior visibilidade de suas demandas especificas e realidades particulares. (...) A ampla participacao de jovens representantes dos mais diferentes segmentos sociais foi considerado um dos pontos altos da Conferencia, condicao essencial para que esses diferentes grupos tivessem a oportunidade de se conhecer, interagir, trocar experiencias, saber das dificuldades dos outros. (...) [De modo que] a Conferencia teria possibilitado debates entre pessoas do mesmo movimento, de entidades com posicoes diferenciadas e entre organizacoes possibilitando marcar posicoes e construir frente comuns de luta quanto a bandeiras o que resultou em significativo incremento em termos de repertorio politico e insercao sociocultural dos delegados e delegadas (4). A experiencia nos conselhos e nas conferencias de juventude de certo modo colaborou para formar jovens ativistas que apos a participacao nestas instancias seguiram atuando (em muitos casos profissionalmente) na area de politicas publicas, de garantia de direitos ou de advocacy e controle social. O encontro com outros atores da mesma geracao e a experiencia de disputa entre estes multiplos sujeitos e grupos sociais constituiu-se entao como uma especie de locus pratico para o exercicio da cidadania ativa com experiencias de expressao publica, de formulacao teorica e de analise praticas de politicas sociais.

A partir da analise da trajetoria recente da participacao dos jovens nos espacos de controle social podemos afirmar que se criou no periodo entre 2005 e 2015--entre a primeira e a terceira conferencia nacional de juventude - uma arena propria de disputas sobre a nocao de direitos da juventude que teve como principal resultado politico a estabilizacao da ideia de jovens como sujeito de direitos e disseminacao de valores e conteudos politicos relacionados a nocao de igualdade, cidadania, direitos e participacao. Formou-se em torno deste conjunto diverso de atores sociais um ambiente propicio a generalizacao da expressao "jovens como sujeitos de direitos", tendo como principal denominador comum do grupo o reconhecimento da propria diversidade como um dado constitutivo destes colegiados, e, ao mesmo tempo, o consenso de que e do Estado o papel de executar as acoes e politicas que devem atender aos/as jovens enquanto grupo social e dentro das suas inumeras singularidades:

Sem duvida, nao ha grandes definicoes teoricas ou consensos explicitos sobre o alcance e o conteudo da consigna jovens como sujeitos de direitos. No entanto, cunhada na ultima decada, a expressao--imprecisa, como todo recurso retorico--evidencia com nitidez uma area de intersecao na qual se conjugam direitos de cidadania e direitos humanos. E...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT