Combinação peculiar: estabilidade econômica, violência política e crime organizado na Colômbia

AutorNatália Pollachi/Tatiane Fernandes Tavares/Carlos Eduardo Carvalho
CargoGraduada em Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e foi bolsista do PIBIC/CNPq/Graduada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Professor do Departamento de Economia e do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas150-167

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1. Introdução

A Colômbia poderia ser considerada um Estado falido ou, ao menos, um Estado fragilizado, em diversos aspectos: perda prolongada de controle sobre partes do território e da população, ação persistente do crime organizado transnacional, violência política continuada, favorecida em parte pelas instituições políticas. Contudo, o país apresenta estabilidade econômica surpreendente, diante da presença desses problemas, e o Estado mantém suas capacidades fiscais, de modo a sustentar programas destinados a equacionar os conflitos e recuperar sua autoridade. Essas capacidades foram essenciais para viabilizar o desenvolvimento da política de “segurança democrática” do governo Álvaro Uribe nos anos recentes, baseada na elevação dos gastos militares a níveis muito elevados sem que isso causasse problemas de natureza fiscal.

Com exceção do Haiti, não há de fato estados falidos na América Latina. Existem vários casos de Estados enfraquecidos em certo número de funções e capacidades, ou de Estados que enfrentam situações temporárias de falência virtual, como ocorreu na Argentina em 2001-2002, no auge da crise econômica do final da conversibilidade, ou no Equador em 1998-2000, com a crise bancária e a forte desconfiança na moeda. Estas situações de colapso virtual tendem a ser curtas e muito intensas, ligadas à ocorrência de crises cambiais e financeiras agudas, mas, em geral, dão lugar ao restabelecimento do quadro anterior ou a uma recuperação econômica acelerada.

O caso da Colômbia se destaca nitidamente pela ausência de crises agudas desse tipo, com exceção do episódio curto de 1999-2000. Esse desempenho singular deve-se muito às exportações de café e de petróleo, em especial na segunda metade dos anos 1970, ao lado de maior solidez fiscal e de indicadores externos favoráveis, dois campos em que a presença de debilidades expressivas contribuiu decisivamente para os casos mais agudos de desestabilização econômica em outros países. Esse bom desempenho no manejo da política econômica amplia os questionamentos a fazer, já que sugere haver certo isolamento entre os problemas da economia e a condução da política econômica, de um lado, e a violência política e a ação do crime organizado, de outro.

Outra hipótese é que a renda do narcotráfico teve efeitos estabilizadores relevantes em diversos momentos, já que a parcela da renda da droga que retorna ao país é muito grande, em relação ao tamanho da economia, e representa uma fonte de divisas expressiva, inclusive em momentos de retração do financiamento externo de curto prazo, sujeito às flutuações de expectativas nos países centrais. Há evidências de que o estado colombiano estimulou a internalização desses recursos em diversos momentos, por meio de operações de “branqueamento” facilitadas por medidas como anistias tributárias, destinadas a estimular investimentos e a equilibrar as contas externas do país. Essa seria uma explicação para o fato de a Colômbia ter sido o único país latino-americano, dentre os de porte médio e grande, a não ter sofrido recessão e restrições cambiais agudas na crise dos anos 1980.

A relação próxima com os Estados Unidos é outro elemento a considerar. A Colômbia se destaca pela singularidade de ter sofrido acusações fortes de conivência com o narcotráfico em níveis elevados do Estado e de ter mantido negociação com grupos considerados terroristas em nível internacional, e ainda assim não ter sido afastada da convivência internacional,

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ao contrário dos Estados considerados “párias”. Esta posição externa foi muito favorecida pelo tradicional alinhamento com os Estados Unidos, que procuraram aproveitar a instabilidade política da Colômbia para aumentar sua influência e sua presença militar na América do Sul.

O artigo oferece um painel de questões envolvidas nesse quadro complexo e original, na perspectiva de que a análise dessas questões possa favorecer a compreensão da interação entre elas nesse conjunto complexo. Além dessa seção introdutória, o artigo está dividido em quatro outras partes. A segunda discute as relações entre a persistência da violência política e o modelo institucional adotado. A terceira apresenta alguns elementos para a análise da chamada economia da droga, com estimativas de seu possível efeito em termos de ingresso de recursos externos no país. A quarta analisa a política de pacificação e fortalecimento do Estado do governo do ex-presidente Álvaro Uribe, chamada de “segurança democrática”, com foco nas implicações fiscais dos gastos recordes com o setor de segurança. A quinta oferece um quadro sobre as consequências da violência e da “segurança democrática” no período recente. Seguem-se algumas notas finais.

2. Violência política e fragilização do estado

A classificação da efetividade dos Estados pode ser feita por diversos critérios. A definição clássica e minimalista permite compará-los independentemente dos direitos historicamente adquiridos por seus cidadãos, como educação e saúde pública: um estado eficiente é o que tem domínio sobre um território definido e sobre sua população e detém o monopólio do uso legítimo da força. Por essa definição, a Colômbia poderia ser considerada um Estado fragilizado, por não ter controle sobre todo o território, parte do qual está sob o domínio de grupos civis armados e de traficantes, cidadãos que o Estado não controla e que disputam ou exercem de fato o monopólio da violência nessas áreas.

A classificação da Colômbia tende a melhorar com os recentes resultados anunciados pelo governo nas políticas de combate ao conflito armado e ao tráfico de drogas. Desde 1998, a postura adotada foi de enfrentamento direto e sem tolerância, com maior uso de operações militares e policiais e, de fumigamento aéreo de plantações de drogas, mudanças que fazem parte do fortalecimento da aliança com os Estados Unidos pelo Plano Colômbia. Uma política muito polêmica, cujos resultados, apesar de obtidos por meios e dados questionáveis, indicam o fortalecimento do Estado. Inegavelmente há uma melhora em comparação com as estimativas de um terço do território fora do controle nas décadas de 1980 e 1990.

Embora nessa época fosse possível defender a falência do Estado colombiano baseando-se nas falhas de segurança, esta pesquisa chama atenção para o fato de que em nenhum momento o Estado perdeu suas capacidades econômicas. Apesar de momentos de descontrole do câmbio paralelo, nunca houve perda de capacidade de desenvolver políticas econômicas nem perda de capacidade fiscal, como será detalhado na última seção.

O conflito armado interno tem raízes profundas na história colombiana, marcada pela desigualdade social e por uma política centralizada e oligopolista, controlada pelas elites descendentes dos colonizadores. O poder esteve por mais de um século, desde a independência em 1819 nas mãos de dois partidos políticos, o Liberal e o Conservador,

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que se alternavam no governo e chegaram a se enfrentar num confronto direto, conhecido como Guerra dos Mil Dias entre 1899 e 1902. É um tipo de regime que se encaixa na teoria dos custos de DAHL: quanto maiores os custos de aceitar a derrota, de se tornar oposição (altos em um regime centralizado e exclusivista), menores as chances de ser mantido um regime efetivamente competitivo e de serem respeitadas as regras do jogo democrático. Os altos custos de derrota fariam os perdedores partirem para o “tudo ou nada” político ou buscarem outras vias, extraoficiais, para manter o poder ou para tomá-lo para si. Pode também ser comparado com uma versão do chamado “jogo de soma zero”, da teoria dos jogos, em que um ganho para um lado significa obrigatoriamente uma perda para seu oponente. É isso que se observa na história colombiana: conflitos diretos, fraudes eleitorais e o estabelecimento de milícias pelos latifundiários para manter o poder local e o controle sobre os camponeses.

Em 1948, o assassinato de um popular candidato à presidência que prometia mudanças sociais profundas, como direitos trabalhistas, marcou uma mudança no tom dessa relação política. A morte de Jorge Eliécer Gaitán, candidato dissidente do Partido Liberal, nunca teve mandante confirmado, mas a condenação generalizada do partido de maior oposição, o Partido Conservador, gerou um levante popular espontâneo e desorganizado que revolveu o país, conhecido como “El Bogotazo”.

Esse levante espontâneo é apontado como o momento de diferenciação da história política colombiana em relação a outros países de regimes igualmente oligopolistas e centralizados. As eleições tiveram que ser adiantadas, a União Soviética foi apontada como instigadora, mas o prosseguimento da desordem e o surgimento das primeiras guerrilhas, foram as justificativas para a instalação de uma ditadura em 1953, que durou quatro anos. A ditadura foi substituída por um acordo entre os partidos tradicionais, Conservador e Liberal. Chamado de Frente Nacional, o acordo estabelecia a realização de eleições diretas, mas, independentemente dos resultados, eles se alternariam no governo do país.

Essa confirmação do desprezo à democracia incentivou ainda mais a busca por outras vias, já estimulada pelo modelo político, pela herança do passado e pela realidade da Guerra Fria, logo acompanhada pelo sucesso da Revolução Cubana. As guerrilhas se multiplicaram em várias regiões do país, com diferenças nos meios empregados e nas bases de apoio — camponeses, estudantes, religiosos e sacerdotes influenciados pela Teologia da Libertação. Na década de 1960, vieram as reações às guerrilhas — milícias de latifundiários, grupos em disputa pelo...

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