Sobre a paz e o estatuto do desarmamento

AutorCamila Cardoso de Mello Prando
Páginas137-143

Sobre a paz e o estatuto do desarmamento1

Camila Cardoso de Mello Prando2

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"A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego, pois paz sem voz, não é paz, é medo... não me deixe sentar na poltrona num dia de domingo procurando novas drogas de aluguel neste vídeo coagido pela paz que eu não quero seguir admitindo".

(O Rappa)

1 Introdução

A partir da década de 1990, no Brasil, o fenômeno da violência urbana tornou-se pauta importante de discussão por parte de vários atores: as instituições políticas, especialmente através das secretarias estaduais de segurança pública e da produção legislativa; os acadêmicos, através dePage 138 trabalhos e pesquisas que buscassem traduzir esta demanda; a mídia, por meio de noticiários muitas vezes sensacionalistas; e a população dos centros urbanos. Todos se voltavam a entender e buscar respostas aos atos de violência física e individual produzidos nas cidades.

O conhecimento produzido a respeito desses atos de violência urbana, inicialmente, estiveram estritamente vinculados à (re)produção tendenciosa de eventos pela mídia. Logo se tornavam fatos de produção de políticas públicas de extermínio, como as políticas de segurança pública que instrumentalizavam a formação e o fortalecimento da polícia de combate que atuava fora da legalidade.

Essa resposta à violência urbana, formulada de forma casuista e sensacionalista, constitui, até o momento, a faceta da política do espetáculo do Estado atual. Uma política de pressupostos equivocados, fundada na "sensação de insegurança", sem formulações racionalizadas de propostas que contemplem o contexto urbano atual.

Uma política que objetiva provocar uma sensação de segurança de cunho simbólico, conquistado através da promoção da polícia nas ruas e das legislações penais duras.

Uma política que promove a eleição de candidatos com discursos de endurecimento do aparelho repressivo do Estado, diante da promessa de exterminar os males que aterrorizam a população dos centros urbanos.

Uma política vinculada a um Estado que, enfraquecido em suas esferas de políticas públicas, sociais e econômicas, ignora a realização de violências institucionais (produzidas pela própria atuação repressiva estatal) e violências estruturais (produzidas pela reprodução de desigualdade social, traduzida atualmente nos índices de desemprego e instabilidade)3 , e elege como bode expiatório do processo de insegurança a sua faceta visível: os bandidos que ocupam as ruas das cidades, ameaçando os cidadãos de bem (ou bens), que produzem e consomem, e que têm o direito (eles sim) de desejar uma sociedade "segura".

Embora se deva assumir que as populações moradoras das áreas de periferia vêm efetivamente convivendo com uma violência real produzida pelas áreas dominadas pelo tráfico e pela polícia atuante no local4 , as respostas estatais encontram-se dirigidas a produzir a "sensação de segurança" às classes médias.

Através das políticas de tolerância zero5 , as políticas de segurança pública concentram a atuação policial na "limpeza e higienização" das ruas dos centros das cidades e dirigem-se à atuação violenta contra os personagens que são a representação do medo (população da periferia), e que são sistematicamente levados para longe dos centros produtivos e de consumo urbanos.

Para a população da periferia, por outro lado, são destinadas políticas repressivas, uma vez que ali todo o morador é um potencial traficante, homicida e bandido. E, assim, ao invés de oferecer a "sensação de segurança" para essa parcela da população, o que se oferece, em grande parte, são novos personagens para a composição do cenário da violência cotidiana.

Os grupos de classe média e alta, atingidos pela violência urbana ou, ao menos, pelas cenas de violência urbana reproduzidas pela imprensa, iniciaram a formação de organizações não-governamentais que buscam declaradamente afirmar o seu "desejo pela paz". Apoiados por emissoras importantes no País, por intelectuais quase tecnocratas da violência e por uma divulgação considerável, passaram a promover atos públicos em "defesa da paz".

O primeiro ato mais conhecido no país ocorreu em 17 de dezembro de 1993, no Rio de Janeiro, em resposta às freqüentes ondas de seqüestro e, também, à chacina da Candelária. Deste ato surgiu o grupo atualmente mais articulado no cenário nacional, conhecido como Viva-Rio, o qual apoiou a formulação e o referendo pela proibição do comércio de armas proposto pelo Estatuto do Desarmamento (lei nº10.826/03)6 . pelas organizações não governamentais e pelas instituições políticas, como uma bandeira pela paz e contra a violência7 .

O Estatuto, apoiado pelas organizações não governamentais e pelas instituições políticas8 . representa, no discurso atual, a arma contra a violência na sociedade contemporânea. Todavia, a política criminal que prepondera no âmbito da legislação nacional e que, sob seus auspícios, informa paradoxalmente a Lei do Desarmamento, tem feições bem menos pacificistas.

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2 Política Criminal de Defesa Social

A política criminal9 mais presente na organização do Estado, nas respostas ao crime tem sua formação já no século XIX, com o desenvolvimento da Criminologia Positivista. O objetivo principal destas políticas é realizar a defesa da sociedade, especialmente entendida como defesa dos cidadãos de bem contra os delinqüentes10 . Elas têm como pressuposto uma divisão maniqueísta da sociedade, de modo que, aos rotulados como maus, o destino dado deve ser a sanção penal que, em grande parte dos Estados, significa quanto mais sanção, melhor. O que também quer dizer, quanto menos limitado o poder do Estado, mais repressão se produz e mais garantias individuais são violadas em nome da defesa da sociedade de bem.

Quando se fala da proteção da sociedade contra atos violentos está-se dando um entendimento semântico muito próprio a essa palavra, reduzindo a violência aos atos de violência física e patrimonial realizadas diretamente contra os indivíduos. Ou seja, deixa-se de atribuir a compreensão da violência às violências institucionais e estruturais, como antes afirmadas. O que significa que quando se fala em defesa da sociedade, não se está falando em realização e afirmação de direitos dos indivíduos ou de proteção em relação a poderes institucionais.

E, embora essas políticas sejam reformuladas desde o século XIX11 , na formação atual dos Estados contemporâneos elas ganham feição bastante expressiva. O pensamento liberal se manifesta ao naturalizar a compreensão de que aqueles que não estão incluídos na ordem econômica e social vigente, não o estão por falta de merecimento, por falta de esforço. Ou seja, estar excluído do processo produtivo e de consumo é um indicativo, também, de ordem moral de falta de competência. São compreendidos como indivíduos moralmente ruins e violentos, que terão como políticas do Estado a formulação de políticas repressivas, que se preocupam pouco com as garantias individuais, em nome da defesa da ordem social. Neste viés, o Estado exime-se da responsabilidade sobre as condições sociais de vida da população, e atribui à criminalidade urbana um fator de moralidade, dividindo o pobre bom honesto e trabalhador, do pobre bandido.

Paralelamente a esse processo de expansão penal do Estado12 , desenvolve-se o aumento das organizações não governamentais que, em grande medida, ocupam o espaço estatal de desenvolvimento de políticas sociais13 . Essas políticas, normalmente, complementam e legitimam o estatuto repressivo do Estado, uma vez que se dirigem aos denominados "grupos de risco", àqueles indivíduos que podem oferecer risco de segurança às pessoas de bem (de bens). Ou seja...

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