Paul F. Lazarsfeld: fundador de uma multinacional científica

AutorMichael Pollak
Páginas94-134
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p94/
94 94 – 134
Paul F. Lazarsfeld: fundador
de uma multinacional científ‌ica12
Michael Pollak3
Resumo
Este artigo examina os condicionantes sociais da carreira de Paul F. Lazarsfeld, buscando determi-
nar os fatores de ruptura e de continuidade que a caracterizam. Na primeira parte, analisa a juven-
tude de Paul F. Lazarsfeld a partir de sua relação com os meios socialistas e judeus de Viena. Na
segunda parte, estuda as reações diferenciais à emigração, apoiando-se particularmente na com-
paração entre as atitudes opostas de Theodor Adorno e de Paul Lazarsfeld. Em seguida, analisa as
capacidades específ‌icas que permitiram a Lazarsfeld fundar uma nova forma de empreendimento
intelectual, assentado sobre uma divisão racional do trabalho e uma organização quase industrial
da produção intelectual, o que foi possível graças ao uso de uma metodologia positivista que
segmentava e mecanizava as diferentes operações intelectuais. Por f‌im, o trabalho examina as
estratégias por meio das quais, apoiando-se sobre a política das fundações privadas, Lazarsfeld
contribuiu para exportar para a Europa do Leste e do Oeste a sociologia empirista americana e, ao
mesmo tempo, o modelo de relações que associa a pesquisa social a agentes econômicos e po-
líticos, tal como se constituiu nos Estados Unidos durante os anos 1920 e 1930. Uma estratégia
de conquista de novos mercados intelectuais que coincidiu com as estratégias de modernização
e de reconquista ideológica que ocorriam na Europa nesse mesmo período.
Palavras-chave: Sociologia da sociologia. Paul F. Lazarsfeld. Internacionalização da sociologia
norte-americana. Ciência social e engajamento. Fundações privadas. Financiamento à pesquisa.
1 Publicado originalmente em: POLLAK, Michael. Paul F. Lazarsfeld, fondateur d’une multinationale scientif‌ique.
Actes de la recherche en sciences sociales. n° 25, janvier, 1979, p. 45–59. [Le pouvoir des mots]. Tradução
de Camila Gui Rosatti e Revisão de Marcia Consolim.
2 Este trabalho não teria sido possível sem as entrevistas que amigos e colegas de Paul Lazarsfeld me con-
cederam. Gostaria de agradecer particularmente a Freda Meissner Blau e a Paul Blau, que me ajudaram a
conhecer o clima intelectual austríaco e o meio em que Lazarsfeld passou sua juventude, e a Rose K. Goldsen,
colaboradora de Lazarsfeld durante longos anos na Universidade de Newark e no Bureau of Applied Social
Research, atualmente professora de sociologia na Universidade de Cornell. Também agradeço a V. Karady e a
D. Merllié pelas críticas e pela releitura minuciosa que ambos f‌izeram deste texto. G. Stourzh teve a gentileza
de me comunicar a lista não publicada de intelectuais austríacos emigrados aos Estados Unidos.
3 Michel Pollak foi directeur de recherche no Centre National de la Recherche Scientif‌ique (CNRS).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
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À primeira vista, é difícil compreender que Paul Lazarsfeld4, símbolo
de um empirismo apolítico, para não dizer “anti-político”, projetara cons-
truir uma psicologia social compatível com o marxismo no início de sua
carreira, no nal dos anos 1920, e fora um militante muito ativo nas orga-
nizações de juventude socialistas na Áustria. Neste artigo, a reconstrução
de sua biograa intelectual e política visa analisar a continuidade de seu
projeto intelectual em meio às rupturas associadas à imigração, mas tam-
bém as descontinuidades evidentes que caracterizam tal projeto.
O engajamento político
Lazarsfeld nunca negou a inuência de sua militância no partido so-
cialdemocrata em sua decisão de se aventurar na pesquisa social, mas raros
são os testemunhos do pós-guerra que revelam seu passado como militante
e líder político ativo5. O pai de Paul F. Lazarsfeld era um advogado que
militava no partido socialdemocrata e dava assessoria jurídica gratuita para
militantes acusados de delitos políticos. Ele foi amigo próximo de quase
todos os teóricos do austro marxismo do início do século XX. É por isso
que, em 1916, os lhos de Lazarsfeld passaram suas férias num hospital
dirigido por Rudolf Hilferding6. A mãe de Lazarsfeld, Sophie, transformou
sua casa em um centro de encontro de intelectuais, militantes ou não, pró-
ximos ao partido. Assim como a revista Der Kampf, que agrupava os mais
importantes teóricos “austro-marxistas” (Otto Bauer, Karl Renner, Rudolf
Hilferding, Max Adler), esse salão era um dos locais mais importantes de
encontro de intelectuais socialistas. No entanto, o engajamento socialis-
ta não era a única razão da coesão desse grupo de intelectuais. É preciso
mencionar também a origem judaica da maior parte deles. A associação
entre os intelectuais judeus e a socialdemocracia na Áustria resulta, em
4 Paul Felix Lazarsfeld (1901–1976) nasceu em Viena e morreu em Nova Iorque. Emigrou para os Estados Uni-
dos em 1933 (N.T.).
5 À exceção do prefácio do livro de Yvon Bourdet, no qual Lazarsfeld conta as ligações of‌iciosas que ele tinha
com a 5ª Seção da SFIO e com Léo Lagrange, durante sua temporada de estudos em Paris, entre 1922 e 1923
(BOURDET, 1968, p.7-8)).
6 Trata-se de um médico e economista, autor do livro Finanzkapital, teórico austro-marxista que publicava com
frequência na revista Der Kampf antes de se instalar na Alemanha, onde foi um dos ministros das f‌inanças
da República de Weimar. Para esse período da vida de Lazarsfeld, ver: Maitron e HaupT (1971, p. 182–194).
Essas informações foram complementadas com entrevistas realizadas com amigos austríacos de Lazarsfeld.
Paul F. Lazarsfeld: fundador de uma multinacional científ‌ica| Michael Pollak
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grande parte, da evolução especíca do movimento liberal austríaco no
século XIX.7
Em 1867, quando o partido liberal chegou pela primeira vez ao poder,
reformistas os mais diversos se uniram em prol de um regime constitu-
cional para a monarquia austro-húngara a m de limitar o poder impe-
rial, reduzir a inuência da Igreja Católica, estabelecer uma representação
parlamentar e garantir os direitos individuais. Para a comunidade judai-
ca, essa política dava esperança de nalmente escapar da discriminação.
Desde meados do século XIX, assistia-se a um movimento migratório de
judeus oriundos de meios populares e de regiões orientais do Império em
direção às cidades da Áustria e sobretudo a Viena. Em Viena, o número
de judeus passou de 19.600, em 1856, para 175.318, em 1910. Muitos
desses recém-chegados conseguiam se engajar em carreiras intelectuais (le-
tras, medicina, direito), uma ascensão social acompanhada da assimilação
à cultura alemã dominante. As reformas que um movimento liberal de
predominância alemã podia introduzir estavam limitadas por uma políti-
ca centralista, que visava a preservação da unidade da monarquia, e pelo
etnocentrismo cultural alemão, que considerava o desenvolvimento dos
diferentes povos da monarquia como uma ascensão progressiva à “elevada
civilização alemã”. Incapaz de encontrar uma solução para o problema das
nacionalidades face à contestação húngara e eslava, a burguesia de língua
alemã, que havia favorecido a ascensão ao poder do movimento liberal, foi
progressivamente tomada por um nacionalismo pangermânico com forte
coloração antissemita. De início, essa evolução se manifestou nos grupos
de estudantes8. Outra grande força política do país, o movimento social-
cristão, que exprimia os interesses da pequena burguesia artesanal e comer-
cial e do campesinato, estava marcado pelo antissemitismo religioso ligado
ao catolicismo militante.
Em relação ao problema das nacionalidades (e, portanto, indiretamen-
te, da comunidade judaica) o partido socialdemocrata, cujo número de
7 Para uma história dos judeus da Áustria e da relação entre judeus e austríacos, ver: Institut fur Judaistik der
Universität (1974) e GOLD (1966).
8 É no grupo “Akademische Lesehalle Wien” que surgiu, a partir de 1880, a ideologia pangermanista com forte
coloração antissemita. Para saber mais, ver: Testenoire (1975). É interessante notar que por volta de 1875
participavam desse grupo liberal-radical os estudantes Sigmund Freud, Victor Adler, fundador do partido
socialdemocrata, o escritor Arthur Schnitzler e Theodor Herzl (fundador do movimento sionista).

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