Patriotismo constitucional contra fraudes à constituição

AutorMarcelo Andrade Cattoni De Oliveira
CargoMestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG), Professor de Filosofia do Direito e de Hermenêutica e Teoria da Argumentação Jurídica (PUC-Minas), Professor de Teoria da Constituição e de Direito Constitucional (UFMG).
Páginas1-11

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Patriotismo Constitucional1 é um conceito originalmente cunhado pelo jurista e cientista político alemão Dolf Sternberger, à época do trigésimo aniversário da Lei Page 2 Fundamental de Bonn. Com esse conceito, Sternberger procurou sintetizar o que representava a construção de uma nova identidade coletiva alemã que tomava por referência o conteúdo normativo universalista da Lei Fundamental de 1949, algo extremamente novo na história da Alemanha. Nesse sentido, uma república de cidadãos, formada após a derrota na Segunda Guerra Mundial e a derrocada do nazi-fascismo, já não mais podia se deixar reconhecer numa suposta identidade étnico-cultural particularista ou no ufanismo nacionalista em face de um passado nacional idealizado. Para Sternberger, que se remete explicitamente à tradição do republicanismo cívico, a República Federal de Bonn se constituiu, no arco do tempo, sobre a práxis e o exercício dos direitos fundamentais de participação política, constitucional e democraticamente garantidos.

Foi no contexto da polêmica conhecida como a "disputa dos historiadores", poucos anos antes da queda do muro de Berlim, que Habermas passa a empregar, pela primeira vez, a expressão patriotismo constitucional. O que, para Habermas, em face dessa disputa, estava em questão era dar uma resposta consistente ao grave problema de identidade política acerca de como os alemães, após a experiência totalitária do nazismo, do holocausto e dos campos de concentração, poderiam reconciliar-se com sua própria história. Para Habermas, isso exigia, por um lado, acertar as contas com o passado, assumindo-o responsavelmente, e, por outro, comprometer-se com a construção de um futuro renovado. Habermas dá, nesse contexto, à noção de patriotismo constitucional, um forte caráter moral, ao considerar que essa representa uma forma adequada de se responder ao grave problema de identidade alemã, pois permitiria tanto lidar crítica e reflexivamente com a questão acerca da responsabilidade histórica em relação ao nazismo, quanto agora possibilitaria um sentimento legítimo de auto-estima diante do processo político, na Alemanha, de consolidação do Estado Democrático de Direito, fundado nos direitos constitucionais, garantidores das autonomias pública e privada dos cidadãos. Habermas, assim, irá combater veementemente historiadores neoconservadores que pretendiam justificar, remetendo-se, mais uma vez, a uma dada tradição cultural herdada, uma certa normalização da história alemã que apelaria, quer seja à negação, quer seja ao esquecimento, do holocausto e da experiência totalitária do nazismo. Autores como o historiador alemão Ernst Nolte destaca-se, nessa polêmica, em razão da sua radicalidade e influência. Nolte, que teria sido discípulo de Heidegger, relativiza a tal ponto os crimes nazistas que chega a afirmar que o extermínio em massa levado a cabo nos campos de concentração por parte do regime hitlerista teria sido tão-somente uma espécie de "reação", sendo algo, portanto, que deveria ser compreendido apenas como mais um dos capítulos de Page 3 uma suposta "guerra civil mundial" perpetrada entre liberalismo e comunismo, ao longo do século XX.

Cabe chamar a atenção para o fato de que em sua crítica ao neoconservadorismo, Habermas, assim como antes o fizera Sternberger ao festejar o trigésimo aniversário da República de Bonn, não irá propor o que seria uma nova utopia político-social. Habermas irá resgatar, de forma reconstrutiva e coerente à sua proposta filosófica de pragmática universal ou formal, toda uma cultura política pluralista, historicamente cunhada no marco constitucional de uma cidadania ativa, que foi capaz de reflexivamente levar à frente todo um processo político de modernização social e cultural, na Alemanha.

Assim, para Habermas, tal conceito de cidadania não mais se remete, por um lado, a qualquer noção romântica e autoritária de nacionalismo, típica do século XIX, e, por outro, também transcende, pois, a uma determinada tradição cultural particular. Cidadania, num contexto pós-nacional e pós-nacionalista, refere-se, agora, à titularidade de direitos fundamentais de participação política, jurídico-constitucionalmente delineados, garantidores de uma autonomia jurídica pública.

Essa nova cultura política pluralista, própria à formação de uma esfera públicamarcada pela atuação dos novos movimentos sociais e pelas organizações da sociedade civil que, para além de uma "democracia de partidos", está comprometida com o constitucionalismo democrático -, advém, pois, para Habermas, de um permanente processo de aprendizado social, que vem a ter prosseguimento através de sucessivas gerações. Enquanto processo de aprendizado, embora sujeito a tropeços, é capaz de corrigir a si mesmo, e assumir, interna e reflexivamente, o projeto constitucional-democrático aberto, inclusivo e moderno, subjacente à Lei Fundamental, de 1949, assim como à própria autocompreensão normativa das diversas Constituições dos Estados Democráticos de Direito. Por fim, ainda, tal processo de aprendizado social leva, inclusive, a uma descentração reflexiva da identidade coletiva alemã, que agora torna plausível, presentes as tensões internas, próprias a uma permanente luta por reconhecimento de novos sujeitos constitucionais, uma Alemanha não somente reunificada, pós-1989, mas também integrada jurídica, política e economicamente à União Européia.

Para Habermas, está-se diante, pois, de uma identidade coletiva moderna, "pósconvencional", para usar o termo do amigo e psicólogo social norte-americano, Lawrence Kohlberg, no sentido de que esse tipo de patriotismo não está orientado por uma normatividade tradicional a se impor através de uma facticidade social irrefletida. Ao contrário, a defesa habermasiana do patriotismo constitucional diz respeito à própria Page 4 construção, ao longo do tempo, de uma identidade coletiva advinda de um processo democrático autônoma e deliberativamente constituído internamente por princípios universalistas, cujas pretensões de validade vão além, pois, de contextos culturais específicos. Em outras palavras, trata-se de uma adesão racionalmente justificável, e não somente emotiva, por parte dos cidadãos, às instituições político-constitucionais - uma lealdade política ativa e consciente à Constituição democrática.

Isso significa dizer que, em última análise, a defesa do patriotismo constitucional identifica-se não com uma tradição cultural herdada, mas refletida - à luz dos direitos fundamentais e da democracia, princípios típicos do constitucionalismo moderno. E, nesse sentido, é que se deve entender, inclusive, que a questão acerca da legitimidade democrática das instituições políticas modernas só pode ser compreendida como a própria construção e projeção a um futuro aberto dessa legitimidade.

Essa legitimidade democrática, na modernidade, cabe esclarecer, remete-se ao chamado nexo ou coesão interna entre Estado de Direito e democracia, de que nos fala Habermas, fundamentalmente a partir de Facticidad y validez. Segundo o pensador alemão, a forma jurídica moderna, a que Immanuel Kant certa feita chamou de legalidade, não se encontra ao mero dispor da auto-legislação democrática, posto que lhe é constitutiva. Na modernidade, o poder político legítimo só se expressa através do medium do Direito moderno. Nesse sentido, o projeto constitucional-democrático, subjacente às Constituições dos Estados Democráticos de Direito, a ser defendido e levado adiante patrioticamente, remete-se à própria idéia de construção permanente da legitimidade, por meio da realização, no tempo, enquanto processo de aprendizado social, após dois séculos de constitucionalismo moderno, daquela coesão interna entre as noções de autogoverno e iguais direitos de liberdade subjetiva, concretizadores de uma complexa noção jurídica de autonomia. Para Habermas, num diálogo crítico com a tradição do republicanismo cívico, os direitos fundamentais de liberdade e de igualdade seriam, pois, a própria explicitação do sentido performativo da práxis de auto- legislação democrática e da noção complexa de autonomia jurídica que...

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