O Patrimômio Genético: Bem de Interesse Difuso

AutorIvan de Oliveira Silva
Páginas31-43

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2. Apontamentos Preliminares

Temos por propósito nesta obra abordar o biodireito e o patrimônio genético nacional a partir de uma visão voltada ao Direito Ambiental, via Constituição Federal. Portanto, nossa análise será fundada nos princípios e valores ambientais que norteiam o nosso sistema jurídico. Assim, imprescindível o comentário sobre a classificação tradicional dos bens, calcada em origem romana, para, posteriormente, abordarmos a nova classificação de bens adotada pela Constituição de 1988.

Adiantamos que isso se faz necessário em função do avanço da ciência jurídica que, em determinado momento, verificou que a divisão dos interesses e público e privado não correspondia à realidade de um contexto em que alguns valores se intercalam nos vários extratos sociais.

2.1. Classificação Tradicional dos Bens

Mesmo antes da Constituição Federal de 1988, as tradicionais categorias de bens não bastavam para identificar os interesses e, por conseguinte, o conjunto de regras de tratamento.

Contudo, para melhor exposição, iniciaremos este capítulo com a apresentação dos bens em suas esferas públicas e privadas, para, em momento próximo, apontarmos à existência de outros, de interesses transindividuais, eis que transcendem a esfera classificatória bipolar, para abranger interesses de cunho coletivo.

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Portanto, considerando a posição que tomaremos neste trabalho, pertinente, em primeiro plano, discorrermos a respeito da classificação tradicional, para, em momento posterior, avançarmos sobre o que desde logo identificamos como uma categoria intermediária de bens.

2.2. Classificação Bipolar dos Bens segundo a Tradição Romana

A antiga divisão do direito em dois grandes ramos, compreendida entre o público eo privado, encontra suas origens na ciência jurídica romana, sendo certo que, até poucas décadas, essa bipolarização dos interesses não experimentou questionamentos e, seguindo esse princípio classificatório, a coisa que não fosse privada, necessariamente, seria constituída como pública.

Em contrapartida, não obstante as severas transformações da ciência jurídica, sobretudo nos idos do século XX, não é incomum, nos dias atuais, encontrarmos a máxima acima nas mais variadas doutrinas que versam sobre a condição dos bens no universo jurídico.

Essa bipolarização de interesses, de fundo romano, malgrado as críticas, exerceu manifesta influência na classificação dos bens e, por tal motivo, ainda hoje verificamos nosso sistema jurídico apontar para uma divisão dualista de interesses suplantado no universo do público ou privado.

A influência romana atinente à classificação bipolar dos bens, por exemplo, ainda se encontra insculpida no artigo 98 do Código Civil de 2002:

"Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem." (grifamos)

É interessante observar que a divisão exposta no artigo acima praticamente repetiu o conteúdo do artigo 65 do Código Civil de 1916. Assim, forçoso reconhecer que a atual orientação civilista procura ainda sustentar a tradição romana no sentido de dividir os interesses a partir de premissas bipolares pendentes sobres as coisas públicas (de

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propriedade de pessoas jurídicas de direito público) e as particulares (na esfera dominial do particular). Ora, sublinhe-se, desde logo, que a ordem classificatória do artigo 98 do Código Civil em vigor não corresponde à orientação do sistema constitucional.

Em comentários sobre o artigo 65 do Código Civil de 1916, que, repita-se, teve a sua substância integralmente reproduzida no Código Civil de 2002, Clóvis Beviláqua, já antecipando as censuras que surgiram desde o seu tempo, expõe o seguinte entendimento:

"Alguns escritores censuram a classificação dos bens, que toma por base as pessoas, a que os mesmos pertencem (Planiol, Teixeira D’Abreu); mas a censura não procede, porque, como acima ficou dito, a classificação é feita, não do ponto de vista dos proprietários, mas do ponto de vista do modo pelo qual se exerce o domínio sobre os bens."1 (grifos nossos)

Ainda sobre a divisão bipolarizada dos bens, que, de longa data, esteve presente no ordenamento jurídico pátrio, Carvalho dos Santos, com arguto senso crítico, denuncia a insuficiência classificatória adotada pela doutrina de Beviláqua com o seguinte questionamento retó-rico: "E se não pertencerem a ninguém?" Adiantando-se ao seu tempo, o ilustre civilista responde a esta pergunta de maneira incisiva: "Não são certamente particulares. Vale dizer que todos os bens que não são públicos sejam particulares".2Ora, consoante as ponderações de Carvalho dos Santos supracitadas, bem como as próprias anotações de Beviláqua, é fácil constatar que a classificação dicotômica dos bens, desde a vigência do Código Civil anterior, não foi aceita de maneira pacífica entre os doutrinadores de nosso país.

Contudo, a despeito das críticas, a doutrina seguiu e, em alguns momentos, ainda procura sustentar a clássica divisão romana do direito e, por conseqüência, a dos bens, em públicos e privados.

No que tange à fórmula disposta na sistemática anteriormente adotada pelo ordenamento pátrio, o saudoso jurista Washington de

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Barros Monteiro apresenta ensinamento pelo qual se adota dois únicos ramos do direito, ou seja, "o direito objetivo subdivide-se em direito público e direito privado, distinção já formulada pelos romanos. Toda a regra de direito enquadra-se forçosamente num ou noutro ramo do direito".3 Mais uma vez, a doutrina clássica reafirma a dicotomia.

Nesse sentido, a lição em destaque sustenta o raciocínio de que todo o bem, necessariamente, deverá ser considerado público ou privado. Por conseguinte, adotada a bipolaridade dos bens, o direito passou a ser dividido também em dois ramos: o público e o privado.

Em seu turno, o jurista italiano Roberto de Ruggiero, precisando o conceito que procura sustentar a divisão bipartida dos bens/direitos, apresenta as considerações infra:

"a) É direito público: o complexo das normas que regulam a organização e a atividade do Estado e dos outros agregados políticos menores, ou que disciplinam as relações entre os cidadãos e essas organizações políticas;

  1. É direito privado: o complexo das normas que regulam as relações dos particulares entre si ou as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não figurem nessa relação como exercendo funções do poder político ou soberano."4Na esfera do direito administrativo, com a mesma divisão bipolarizada do direito, Hely Lopes Meirelles, a partir de uma visão teleológica, admite que:

"O Direito é dividido, inicialmente, em dois grandes ramos: Direito Público e Direito Privado, consoante a sua destinação. O Direito Público, por sua vez, subdivide-se em Interno e Externo.

Direiro Público Interno visa a regular, precipuamente, os interesses estatais e sociais, cuidando só reflexamente da conduta individual. (...) O Direito Público Externo destina-se a reger as relações entre os Estados Soberanos e as atividades individuais no plano internacional.

O Direito Privado tutela predominantemente os interesses...

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