Patente e biotecnologia: questões sobre a patenteabilidade dos seres vivos

AutorLuiz Guilherme de Andrade Vieira Loureiro
Páginas17-77

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Introdução

A biotecnologia constitui, atualmente, um importante domínio de pesquisa, de-senvolvimento e de atividades comerciais.

Com efeito, os progressos realizados neste domínio estão cada vez mais presentes na vida cotidiana do homem, de forma que deixaram de ser mera "ficção científica" e se transformaram em solução aos diversos problemas da humanidade nos campos da saúde, da alimentação, do meio ambiente etc. A revolução biotecnológica teve início no começo da década de cinquenta, quando Watson e Crick propuseram a estrutura

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do DNA. Mas a biotecnologia, tal como a conhecemos hoje, têm desenvolvimento mais recente - início dos anos setenta - quando se tomou possível transformar a Escherichia coli, cortar e juntar as moléculas de DNA e supervisionar este tipo de manipulação. Foi a partir deste momento que se tornou possível a criação do DNA recombinante. Tais técnicas permitem isolar um gene do DNA de um organismo, de recombiná-lo em um tubo de ensaio com o DNA de outro organismo e de reintroduzi-lo no hospede.1

A expressão "biotecnologia" engloba numerosas disciplinas e, em termos gerais, pode ser definida como uma união sinérgica de ciências da vida. Segundo J. R. Rudol-ph:2 "A biotecnologia representa a combinação de dois conceitos de base. O primeiro, a Biologia é um campo de estudo muito vasto que engloba todas as plantas, os animais, os reptis, os anfíbios, assim como todos os organismos, microorganismos e entidades unicelulares, dita de outra forma, a ciência da vida. O segundo, é a tecnologia que pode ser definida como 'uma arte prática ou industrial (...) uma aplicação da ciência'" (trad.).

A biotecnologia, portanto, compreende qualquer técnica que utilize organismos vivos (ou parte de organismos) para fabricar ou modificar produtos, melhorar variedades vegetais ou raças animais, ou para desenvolver microorganismos para fins particulares. Ela "abarca o essencial do se-tor das ciências da vida, concretamente a bioquímica, a enzimologia, a virologia, a bacteriologia e a imunologia, assim como as formas de vida superiores, incluídas as dos vegetais e animais, mediante a aplicação de conceitos e procedimentos de engenharia química (...) Em uma esfera tão diversa, evidentemente as possibilidades de invenção são amplas e as invenções resultantes não serão estereotipadas".3

Convém fazer uma distinção entre biotecnologia clássica e o que pode ser denominado como nova biotecnologia. A biotecnologia clássica tem suas raízes na mais antiga tecnologia de alimentos e bebidas, embora tenha alcançado seu apogeu nos tempos modernos com a produção de antibióticos, enzimas, aminoácidos e outros produtos industriais. A invenção protótipo da biotecnologia clássica utiliza microorganismos ou células de organismos superiores para produzir novos produtos ou produtos já conhecidos mas em uma nova e aperfeiçoada forma. Os procedimentos industriais baseados na biotecnologia clássica recorrem essencialmente aos microorganismos retirados de sua fonte natural e cultivados de forma adequada para serem utilizados nas fermentações industriais. Já a biotecnologia moderna se caracteriza pela intervenção técnica na célula ou células do organismo.

O Brasil possui uma posição privilegiada para participar desta revolução bio-tecnológica, uma vez que suas indústrias, particularmente suas indústrias primárias como as da agricultura e de papel e celulose, oferecem desafios e possibilidades enormes neste campo. Ademais, o Brasil é o mais rico país do mundo, em se tratando de biodiversidade, e deve incentivar o desenvolvimento local da empresa biotecnoló-gica para evitar que seus recursos genéticos sejam explorados por sociedades estrangeiras, sem nenhuma vantagem para a comunidade local.

No entanto, a indústria biotecnológica exige um investimento considerável. As demoradas pesquisas e as complexas infra-estruturas materiais e pessoais necessárias

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para transformar uma "descoberta" em uma "invenção" exigem pesados investimentos. É natural, pois, que os inventores possam, pois, usufruir de um monopólio temporal na exploração comercial de seus inventos, como forma de recuperar o investimento e obter lucro. Por tal motivo, a maior parte dos especialistas reconhecem que, neste domínio, os direitos de propriedade intelectual são da mais alta importância para o desenvolvimento e o crescimento das empresas biotecnológicas. Pode-se afirmar que, o importante investimento na área da biotecnologia feito até este momento é, em grande parte, atribuível ao sistema de patente que concedeu os primeiros privilégios em matéria de organismos vivos a partir de 1980.

Desta forma, o setor de biotecnologia é uma indústria em evolução, particularmente dependente da proteção pelo sistema de patente. Apenas a efetiva proteção do inventor poderá estimular o investimento e a inovação em benefício do ser humano e possibilitar o desenvolvimento desta importante indústria nos países interessados.

É necessário, portanto, examinar o sistema de patentes vigente no Brasil, notada-mente diante das importantes inovações trazidas pela Lei 9.279/66, para verificar se é ele suficiente para conferir uma proteção adequada às invenções biotecnológicas.

Certas características essenciais do domínio da biotecnologia diferem daquelas comuns a outros domínios tecnológicos, o que vem a conferir uma certa dificuldade e complexidade às questões atinentes às patentes biotecnológicas. O primeiro problema, se assim podemos dizer, é que as biotecnologias se aplicam sobre matérias vivas. As invenções biotecnológicas podem envolver microorganismos ou mesmo as formas de vida superiores. Vários direitos, como o brasileiro, excluem estes últimos seres do sistema de patente. Será esta a melhor solução? Ela se justifica por razões éticas e de moralidade? Há evidências de mudanças em tal orientação? São questões que iremos analisar no presente trabalho.

Uma outra particularidade da invenção no domínio da biotecnologia, e que concerne à natureza viva da matéria utilizada, é que alguns destes organismos vivos são auto-replicadores. Isto significa que o adquirente de um produto patenteado, consistente em microorganismos, pode obter a sua reprodução. Neste caso, poderia o adquirente utilizar para fins comerciais esta descendência sem ferir os princípios do direito de propriedade industrial?

Outras questões surgem do fato de que a matéria produzida pela biotecnologia é extremamente complexa, já que se trata de um organismo vivo diverso daquele comu-mente encontrado na natureza. Mas como não foi ele "construído" pelo homem, sua descrição para fins de obtenção da patente toma-se complicada. Ademais, a complexidade de tal invenção toma também dificultosa a aferição do requisito da novidade, indispensável para a concessão do privilégio. Tais questões também devem ser objeto de reflexão, para a correta interpretação e aplicação dos dispositivos previstos na Lei de Propriedade Industrial.

A adoção de um novo direito de propriedade industrial e o desenvolvimento da engenharia genética no nosso país implicarão, ainda que a médio ou a longo prazo, no surgimento de lides relativas às patentes biotecnológicas. Daí a razão do presente trabalho, que pretende analisar os novos dispositivos legais introduzidos na ordem jurídica brasileira à luz do direito comparado e servir de base para a discussão e aprofundamento da matéria que, por sua atualidade e relevância, não pode ser ignorada pelos aplicadores do direito.

Para tanto, examinaremos as questões principais ligadas à patenteabilidade dos seres vivos, o que exige uma prévia e breve apresentação dos conceitos principais do direito de propriedade industrial. Assim, após verificarmos o desenvolvimento do direito imaterial no âmbito internacional e nacional, estudaremos os conceitos de invenção e patenteabilidade. Ao analisarmos, em seguida, o tema da patenteabilidade das

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invenções biotecnológicas (patenteabili-dade dos seres vivos), veremos as noções de bio-matéria, as normas aplicáveis às plantas, aos animais e aos microorganismos. Na parte seguinte do trabalho, analisaremos questões básicas do direito de patente e suas peculiaridades no que tange às patentes de biotecnologias, tais como os requisitos formais, o alcance da patente, o contrato de licença biotecnológicaetc. Finalmente, antes das conclusões, examinaremos, ainda que de forma sumária, as principais medidas judiciárias para a garantia dos direitos previstos na Lei de Propriedade Industrial.

Não se tratará neste trabalho de questões ligadas à bioética, à não ser de forma superficial quando inerente à questão examinada.

I - Breves considerações sobre o direito da patente
1. Origem e evolução

Segundo uma parte da doutrina, o direito de patente foi previsto pela primeira vez em Veneza. A Parte veneziana de 19 de março de 1479 já garantia ao inventor, além do direito moral, o direito de exploração da invenção de forma exclusiva pelo prazo de dez anos, com a condição de que a sua invenção fosse original e nova sobre o território da República e que ela apresentasse um caráter...

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