Past Continuous of lawyering for social change/Preterito imperfeito da advocacia pela transformacao social.

AutorCardoso, Evorah

Ensaio sobre muitas vozes

Este ensaio e um balanco de varias pesquisas das quais tive oportunidade de participar, conduzir ou criar, com reflexoes que surgiram a partir de mais de 200 entrevistas (1), que, observadas em conjunto, montam um quebra-cabecas ainda inconcluso da articulacao entre diferentes atores domesticos e internacionais, publicos e da sociedade civil, no Brasil e America Latina, que circulam entre diferentes formas de defesa de direitos, o litigio estrategico, estrutural, em massa, a advocacia pro bono e a advocacia popular, que, por sua vez, tambem se entrecruzam.

Com isso, o objetivo nao e o de abordar apenas o litigio estrategico, tema deste dossie, mas contextualiza-lo, como um entre diversos metodos, que inclusive ganha contornos novos no Brasil e na America Latina.

O texto esta dividido em tres partes. Na primeira abordo o ecossistema da sociedade civil, na segunda o das instituicoes do sistema de justica e na ultima sintetizo as terminologias utilizadas ao longo do texto e aponto (im)possibilidades futuras para essas formas de advocacia pela transformacao social.

Parte I

O discurso-pratica global do litigio estrategico e a experiencia a brasileira

Se pensarmos como o discurso pratica do litigio estrategico foi disseminado pela regiao, suas raizes passam pela expansao do civil rights movement dos Estados Unidos, centrado no poder judiciario para a promocao da transformacao social para os movimentos negro, de mulheres e LGBT, e que aqui chega por meio da atuacao de organizacoes nao-governamentais (ONGs) e fundacoes internacionais no financiamento e apoio de iniciativas locais, que tambem utilizavam o judiciario, mas no contexto de resistencia as ditaduras (Cardoso, 2012a).

E o caso, por exemplo, da trajetoria da Fundacao Ford, tendo financiado associacoes de familiares de mortos e desaparecidos politicos na Argentina, Chile e Brasil. O uso do judiciario nao objetivava transformacao social e reconhecimento de direitos, era limitado a auxiliar a confirmacao do paradeiro ou a registrar o desaparecimento daqueles que resistiam aos regimes autoritarios. Com a redemocratizacao, na Argentina, a ONG CELS segue atuante e transforma esse passivo de acoes judiciais em uma grande bandeira de responsabilizacao dos militares pelos crimes cometidos, nao sem antes ter de lutar pela queda das leis de anistia no pais--que ocorreu via decisao de inconstitucionalidade pela Corte Suprema de Justicia de la Nacion. Antes de chegar no Judiciario, a incidencia passou pela academia para a producao de dogmatica juridica de direitos humanos e internacionalista, para disseminar no ambito domestico a obrigatoriedade de incorporacao do direito internacional, aproveitando especialmente a reforma constitucional de 1994, que incorpora a constituicao diversos tratados internacionais de direitos humanos, numa epoca em que internacionalizacao dos direitos humanos caminhava lado a lado com a globalizacao economica neoliberal na regiao (Cardoso, 2012a).

Essa linha de financiamento e apoio internacional na regiao fomenta o surgimento de grandes ONGs profissionalizadas e internacionalistas, que adotam o discurso de defesa dos direitos humanos e, como metodo, o litigio estrategico. Nao e por acaso que o financiamento internacional esta presente paises em transicao democratica, trata-se de uma aposta de que o metodo serve a este processo de democratizacao--na America Latina, Africa, Leste Europeu. Em contextos ja democraticos, essa ferramenta passa a ser explorada para o reconhecimento de novos direitos, pressionando o judiciario a assumir seu novo papel institucional de garantidor contramajoritario de direitos, de desbloqueador da inacao das instituicoes politicas seja do Executivo, seja do Legislativo. A relacao com o sistema internacional tambem se transforma, deixa de ser uma instancia de denuncia e apelo a pressao internacional no contexto de ditaduras (boomerang pattern--Keck, Sikkink, 1998), para ser um espaco ao qual se recorrer, de forma complementar, nessa engrenagem de desbloqueio das instituicoes domesticas, para que se engajem em um processo normativo transnacional, em dialogo, por exemplo, com a jurisprudencia do Sistema Interamericano, considerada de forma ampla, tanto dos relatorios da Comissao, quanto das sentencas da Corte (Cardoso, 2012a).

No Brasil, desconfiei que esta trajetoria havia sido um pouco diferente. Por mais que tenhamos grandes ONGs com este perfil, elas estao imersas em contextos distintos para a regiao. Nosso processo de redemocratizacao, por um lado foi intensificado pelo surgimento de partidos politicos de base social, pelo processo constituinte com ampla participacao de movimentos sociais, pela relativa porosidade do governo a formas participativas como os conselhos, o que contribuiu para canalizar parte das estrategias de acao da sociedade civil brasileira para o Legislativo e Executivo, ao inves do Judiciario (Cardoso, 2012b).

Por outro lado, essa transicao democratica foi bem menos radical, se contrastada com a da Argentina, pois nem bem comecamos o nosso processo de memoria, verdade e justica, com a Comissao Nacional da Verdade, somada aos trabalhos que ja vinham sendo feitos pela Comissao de Anistia, ele esbarra em um Supremo Tribunal Federal (STF) que reafirma a constitucionalidade da Lei de Anistia, com ministros ignorando o dialogo com o direito internacional em seus votos, a despeito de jurisprudencia consolidada do Sistema Interamericano sobre a inconvencionalidade (contrariedade a Convencao Americana) das leis de anistia na regiao (Cardoso, 2012a). Assim, o STF entra em conflito, aquela altura, com um relatorio de merito da Comissao Interamericana sobre o caso da Guerrilha do Araguaia e permanece, hoje, com a respectiva sentenca da Corte Interamericana deste caso, somada a do recente julgamento do caso Vladimir Herzog. Ainda desponta no horizonte proximo o avanco de discursos revisionistas historicos com respaldo em novo governo presidencial. Ha, portanto, um uso seletivo do direito internacional pelo judiciario domestico, que dificulta o recurso ao sistema internacional nessa engrenagem de litigio estrategico.

Alem disso, os trabalhos dessas grandes ONGs diluem-se frente a uma miriade de outros atores de defesa de direitos, com trajetorias de influencia e metodos de acao distintos, sejam eles publicos, como Ministerio Publico e Defensorias, sejam da sociedade civil como da advocacia popular (Cardoso, Fanti e Miola, 2013).

"Advocacia AM e FM": conflitos entre a tradicao da advocacia popular e as ONGs de direitos humano (2)

A tradicao da advocacia popular foi amplamente desenvolvida no Brasil, desde a advocacia em defesa dos presos politicos, ate a forca dos movimentos sociais por terra (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra--MST, quilombolas, indigenas, Movimento dos Atingidos por Barragens--MAB), moradia (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto--MTST), direitos de criancas e adolescentes (Centros de Defesa dos Direitos da Crianca e do Adolescente--CEDECAs). Esta presente tambem nas Assessorias Juridicas Populares universitarias, que disputam dentro das universidades a formacao de advogados com um olhar para os conflitos sociais e as demandas dos movimentos.

A advocacia popular, portanto, nao veio de um circuito internacional de disseminacao do discurso dos direitos humanos e do processo de construcao de grandes ONGs profissionalizadas, ela veio da formacao de redes entre advogados em defesa desses movimentos sociais (como a RENAP ou Rede Nacional de Assessoria Juridica Universitaria--RENAJU) em pleno processo de redemocratizacao, veio do caldo de influencias da teologia da libertacao, da atuacao das comunidades eclesiais de base e das Pastorais da Terra, Carceraria, Justica, Migrantes, veio da difusao da pedagogia do oprimido de Paulo Freire, que perpassou varias taticas de formacao em direitos, consideradas mais importantes do que a atuacao judicial, veio das disputas teoricas de compreensao da classe trabalhadora como sujeito historico. Tal como descrito por um advogado popular que entrevistei e que atuou desde a epoca da defesa de presos politicos durante a ditadura, trata-se de uma advocacia AM, que atua "atras dos movimentos". O papel dos advogados e o de orientar os movimentos sociais, nao devem dissuadi-los de suas estrategias, mas alerta-los das implicacoes juridicas e as melhores formas de se protegerem, estao a servico dos movimentos, nao devem ser seus representantes ou interlocutores, e devem fortalecer os movimentos, ate porque "os advogados passam, mas os movimentos sociais ficam".

Essa advocacia AM opoe-se, nas palavras do entrevistado, a uma advocacia FM, que se coloca "a frente dos movimentos", como se fosse sua "porta-voz" junto as instituicoes do estado. Seria a advocacia das ONGs profissionalizadas, que estao com um olhar muito mais voltado as transformacoes institucionais,--mudancas de leis, politicas publicas, jurisprudencia,--do que preocupadas com uma acao continuada junto aos movimentos sociais para o seu fortalecimento. Nesse sentido, e uma advocacia mais issue ou cause-oriented do que uma advocacia popular. O que importa e conseguir avancos em determinados temas/causas, mas por suas proprias limitacoes de recursos, pelo enfoque de avaliacao dos financiadores internacionais, pelas trajetorias de seus integrantes, nao possuem ou desenvolvem relacoes proximas aos movimentos sociais. Sao feitas associacoes pontuais entre ONGs e movimentos, em torno de projetos especificos, que ora dependem da identificacao de vitimas para que os casos sejam levados adiante, ora de repercussao social para a atencao da midia ou das autoridades publicas, ora de articulacao para que haja fiscalizacao do processo de implementacao de conquistas. Essa relacao, portanto, pode ser bastante conflitiva. Movimentos sociais ressentem-se, muitas vezes, da invisibilizacao que caracteriza essa relacao, pois sao as ONGs profissionalizadas que conseguem maior insercao na...

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