Participação política e direito à cidade no centro histórico de Salvador: o caso da chácara Santo Antônio

AutorManoel Nascimento
CargoAdvogado da Equipe Urbana do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: manoelnascimento@gmail.com
Páginas218-250
Cadernos do CEAS, Salvador, n. 237, p. 402-434, 2016
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E DIREITO À CIDADE NO CENTRO
HISTÓRICO DE SALVADOR: O CASO DA CHÁCARA SANTO
ANTÔNIO
1
Manoel Nascimento2
Resumo
Tendo como ponto de partida a experiência e a observação participante do autor como assessor do
Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) no processo de luta dos moradores da Chácara Santo
Antônio pela permanência no Centro Histórico de Salvador (BA) e o debate teórico construído em
torno de três distintas perspectivas de análise da participação política (controladora, instituinte e
integracionista), este artigo pretende refletir sobre o significado da participação política da Chácara
Santo Antônio no desenvolvimento de políticas habitacionais no Centro Histórico de Salvador no
contexto de uma luta mais ampla pela concretização do direito à cidade neste mesmo território; para
isto, além de exposição sucinta dos argumentos das três vertentes teóricas sobre a participação política,
o processo de lutas desenvolvido pela Chácara Santo Antônio até 2013 é narrado de forma resumida,
para, ao final, chegar a um balanço de avanços, retrocessos e perspectivas, concluindo que, não
obstante haver avanços formais na participação, substantivamente a sensação dos moradores é de que
pouco se conseguiu.
Palavras-chave: Direito à moradia. Remoções forçadas. Centro Histórico de Salvador. Participação
política. Gentrificação.
INTRODUÇÃO
No Centro Histórico de Salvador, entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa, há uma
verdadeira "Cidade do Meio"que, contra as forças combinadas da especulação imobiliária e
das "revitalizações"patrocinadas pelo Estado, luta pela sua existência. Vila Nova Esperança,
Pilar, Chácara Santo Antônio; estas comunidades guardam em comum a longa existência na
falha geográfica que separa a Cidade Alta da Cidade Baixa e também as tentativas de
remoção, com variados graus de sucesso e com métodos que vão do puro descaso com a
prestação dos serviços urbanos mais básicos (luz, água potável, saneamento básico etc.) à
intervenção estatal direta por meio de complexos projetos habitacionais de sucesso
1 Artigo final da disciplina ARQ A78 - Política, democracia e direito à cidade, do curso de Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urb anismo (FAU) da Universidad e Federal da
Bahia (UFBA). Versão ainda sujeita a ajustes e correções.
2 Advogado da Equipe Urbana do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS). Mestrando no Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: manoelnascimento@gmail.com
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questionável.
Este artigo, a partir da experiência da Chácara Santo Antônio, tenta refletir sobre o
significado das lutas destas comunidades pela permanência em seus locais de origem para a
efetivação do direito à cidade no Centro Histórico de Salvador.
O conflito territorial entre a Chácara Santo Antônio e o Governo da Bahia ainda não
está encerrado; como, entretanto, há informações sensíveis nos fatos mais recentes e, além
disso, parte da diretoria da Associação de Moradores e Amigos da Chácara Santo Antônio
(AMACHA) tem tido sua integridade física ameaçada com frequência por outros sujeitos,
recém-chegados ao processo, optou-se neste artigo por circunscrever a narrativa ao período
comprendido entre novembro de 2011, data do deslizamento de terra que desencadeou a fase
mais aguda do conflito, e dezembro de 2013, data da elaboração de um dossiê entregue à
relatora da ONU para a moradia adequada, Raquel Rolnik; este dossiê, escrito pelo autor e
pela profa Lysie Reis (UNEB), fornece a base para a narrativa da Seção 3.
Na medida em que o autor, através de seu trabalho na Equipe Urbana do Centro de
Estudos e Ação Social (CEAS), presta desde novembro de 2011 assessoria técnica à
comunidade e à sua associação de moradores, este artigo teve como base, em parte,
informações de primeira mão sustentadas pelos cadernos de campo do autor e pela consulta a
documentos internos da AMACHA.
Na Seção 2, será feita revisão bibliográfica e balanço sobre os temas da participação
política, do direito à cidade e das remoções forçadas, para situar a perspectiva do presente
artigo diante dos campos teóricos e práticos próprios a cada tema. Na Seção 3, será narrado o
processo de lutas de resistência territorial da comunidade da Chácara Santo Antônio. Esta
narrativa, analisada à luz do instrumental teórico construído na Seção 2, permitirá chegar, na
Seção 4, a algumas conclusões sobre o papel da participação política na resistência a
remoções forçadas e na efetivação do direito à cidade.
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, DIREITO À CIDADE E REMOÇÕES FORÇADAS:
DEFINIÇÕES
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Falar de "participação"sem precisar seu significado pode levar a confusões, especialmente
quando seus significados são dados por agentes políticos antagônicos: enquanto movimentos
sociais e a população reividicam a "participação"como a possibilidade de participar mais
diretamente das decisões políticas que lhes afetam eis aqui um dos muitos conteúdos das
"Jornadas"de junho de 2013 sucessivos governos, nas três esferas federativas brasileiras,
empregam a "participação"como técnica de governo, como método de legitimação de suas
próprias políticas, como meio de apaziguamento de conflitos. Para não dar margem a
equívocos, será feito nesta seção uma breve revisão de literatura, que ajudará a situar a
posição do autor diante das muitas teorias e práticas ditas "participativas".
Da mesma forma, o "direito à cidade"pode se prestar a equívocos. Da sua formulação
original por Henri Lefebvre como direito à vida urbana, transformada, renovada, plena de
virtualidades utópicas e lúdicas (LEFEVBRE, 1969), até sua incorporação à política de
Estado brasileira, há diferenças significativas a serem observadas.
O conceito de "remoção forçada", embora menos equívoco, também carece de
definição precisa para ser empregue como instrumental analítico, a ser feita segundo o
referencial criado pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Participação política: revisão de literatura e definição de critérios
"Participar"significa "ter ou tomar parte de", ou "tomar parte em"; o objeto deste verbo é,
aqui, a política. "Política"é aqui entendida como "a atividade que tem por racionalidade
própria a racionalidade do desentendimento"(RANCIÈRE, 1996, p. 14), e este
desentendimento
...não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o
conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende
a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma
coisa com o nome de brancura (RANCIÈRE, 1996, p. 11)
O desentendimento instituinte da política se dá porque, na partição do comum que
institui a comunidade política, alguém ficou sem parte:
A luta dos ricos contra os pobres não é a realidade social com que a política
deveria contar. Ela se confunde com sua instituição. Há política quando existe

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