As funções do parlamento entre o Estado-nação e a integração regional: esgotamento orgânico ou adaptação institucional?

AutorClarissa Franzoi Dri
Páginas84-98

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Introdução

Segundo* Norberto Bobbio (1998, p. 880), parlamento define-se por “uma assembléia ou um sistema de assembléias baseadas num princípio representativo , que é diversamente especificado, mas determina os critérios de sua composição”. Nesses termos, ele é uma instituição relativamente recente. Tendo em vista a democracia direta da Antigüidade, o poder dos senhores feudais na Idade Média e as monarquias absolutas modernas, foi somente a partir do século XVII que as idéias parlamentares ganharam maior destaque. Com o advento do Iluminismo, da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos, as assembléias passaram a ser eleitas e começaram a concentrar o debate político e a ser palco de decisões significativas.

Montesquieu foi um dos teóricos modernos que mais contribuíram para esse estado de coisas, sobretudo com a publicação da obra O espírito das leis , em 1748. Em sua análise das leis que formam a liberdade política em relação à constituição, o pensador francês afirma que a liberdade política só se encontra nos governos moderados, nos quais não há abuso do poder (2000, p. 166) 2 . Para isso, “é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder” (2000, p. 166). Assim, ele define três tipos de poder em um Estado, que devem ser exercidos por pessoas diferentes – o poder legislativo, o poder executivo e o poder de julgar 3 . Afirma, com isso, a indispensabilidade de um parlamento, controlado por tais poderes e controlador deles, para a consecução da liberdade política.

Até então, a existência do parlamento justificava-se primordialmente para impedir o monopólio do governo pelo poder executivo. Representar o povo e, por meio dessa representação, legitimar as decisões governistasPage 85 consistia em uma razão incipiente, que ganhou força somente com o início de um novo período democrático nas nações ocidentais. Também com ele surgiram as noções de que o parlamento pode contribuir para os sentimentos de cidadania e de pertencimento à nação, principalmente por meio do voto e do acompanhamento dos eleitos, e organizar o necessário apoio das classes políticas para decisões estruturais. Esses papéis ensejaram o desenvolvimento de funções específicas, atribuídas aos parlamentos nacionais na contemporaneidade, que serão objeto do item 2.

Ocorre que as transformações políticas pelas quais vêm passando as democracias, principalmente a partir do final do século passado, têm originado diferentes modos de conceber os parlamentos ou suas funções. A formação de blocos geopolítico-econômicos fez nascer os parlamentos de integração, destinados a representar os cidadãos no âmbito regional. Os poderes do Parlamento Europeu, primeiro modelo dessa espécie, serão analisadas no item 3. Já o papel da Comissão Parlamentar Conjunta, união de delegações das assembléias nacionais do Mercosul, será abordado no item 4.

O presente estudo é fruto de contínuas e inconclusas pesquisas da autora acerca do tema, sob o prisma do Direito da Integração. Mesmo assim, ele não pode prescindir de considerações sobre vertentes teóricopolíticas que envolvem a práxis parlamentar. Assim como o republicanismo e o liberalismo têm destoantes formas de conceber o parlamento, também os sistemas parlamentarista e presidencialista conferem peso diferenciado a certas funções da instituição.

Em lógica similar, os objetivos do processo de integração vinculam-se estreitamente à criação de seus organismos, dentre eles, uma assembléia de representantes. As dificuldades dos países de traçar um plano integracionista claro – ou de concretizá-lo – pode, portanto, influenciar as características de um eventual parlamento. Essas características, por óbvio, também estão relacionadas ao modo como o órgão age frente à forte crise de representatividade que atinge as democracias contemporâneas.

É possível que dessa atitude dependam certas alternativas aos problemas políticos dos fenômenos de integração. Acaso a constelação pósnacional (HABERMAS, 2001) necessitará de parlamentos aos moldes dos nacionais? Outras questões devem ser agregadas a essa por meio do exame das funções desempenhadas por assembléias nacionais e pós-nacionais e da comparação entre elas.

O método comparativo adotado considerará as diferenças políticas e sociais entre as regiões analisadas, baseando-se, portanto, mais nas assimetrias do que nas semelhanças entres os sistemas, porque se entende que uma comparação crítica e atenta às particularidades locais das câmaras parlamentares da União Européia, do Mercosul e de seusPage 86Estados-membros configura um parâmetro valioso de interpretação de suas estruturas e funções. O fio condutor do exame consistirá nas destoantes implicações da opção pelo projeto político republicano ou liberal.

Funções do parlamento: a tradição se mantém?

O regime democrático atribui aos parlamentares “o direito e o dever de intervir, embora de formas diversas, em todos os estágios do processo político” (BOBBIO, 1998, p. 883). As diferentes funções da instituição são, portanto, desempenhadas segundo o estágio e as modalidades de tal intervenção, e dividem-se em representativa, legislativa, de legitimação e de controle.

No entanto, essa classificação não é estanque – a realidade raramente se enquadra nos restritos padrões da técnica. É freqüente que uma mesma atividade reflita o desempenho simultâneo de duas ou mais funções. Além disso, tais papéis oscilam de acordo com o sistema de governo adotado e são influenciados pelas diferentes visões do parlamento contidas nas teorias liberal e republicana da política.

Efetivamente, a assembléia representativa ocupa espaços diversos no parlamentarismo e no presidencialismo. Enquanto naquele o governo surge da própria assembléia, sendo politicamente responsável perante ela, o modelo presidencialista comporta nítida separação – mesmo incompatibilidade de cargos – entre os poderes executivo e legislativo 4 .

Percebe-se, assim, que o sistema presidencialista é uma construção típica do liberalismo. Para obter uma interferência mínima do Estado em assuntos econômicos ou que possam ser tratados no âmbito privado, a sociedade liberal comporta um parlamento desvinculado do governo e apartidário 5 . “Os atores do cenário parlamentar não são os partidos, mas individualidades, os ‘melhores’” (SOUZA JR., 2002, p. 47). Fazer leis surge como um papel técnico, não político, a fim de oferecer maior estabilidade ao sistema.

Por outro lado, a concepção republicana da política “é constitutiva do processo de coletivização social como um todo” (HABERMAS, 2004, p. 167).

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Diferentemente da visão liberal, em que o Estado conforma-se em um aparato de administração pública subsidiária e a sociedade rege-se de modo descentralizado pelas leis do mercado, o republicanismo prega a necessidade de construções regulatórias coletivas, horizontais e substanciais. Para além da democracia formal, essa noção republicana de política deveria guiar os indivíduos a decisões participativas e solidárias.

Nessa lógica, a classificação apresentada das funções parlamentares comporta tanto elementos republicanos quanto liberais. A ênfase nas funções representativa, de controle e de legitimação parece reportar-se àquele regime, enquanto um parlamento primordialmente legislador carrega sobretudo características desse último. Ocorre, no entanto, que os papéis da assembléia parecem ser capazes de adaptar-se às diretrizes políticas estabelecidas. Assim, a opção por um modelo liberal ou republicano determina as condições e os limites do exercício de cada função parlamentar.

Sem olvidar esses contextos particulares e determinantes do espaço do parlamento, parece possível classificar as funções – como já se disse, abertas e variáveis – das casas parlamentares nacionais, de modo a compará-las com os papéis desempenhados por órgãos similares na União Européia e no Mercosul.

A função representativa é considerada a base das demais atribuições parlamentares, e é alcançada, via de regra, por sufrágio livre e universal. Na ampla maioria das democracias atuais, o mandato dos eleitos é representativo, e não imperativo. Desse modo, os cidadãos escolhem as pessoas, não a forma como elas devem se posicionar em cada tomada de decisão 6 . Quando enfraquecida, a função representativa pode dissimular seu oposto, ou seja, a manipulação por meio do fluxo de opções políticas de cima para baixo.

A função legislativa consiste na mais típica função do parlamento, chamado de poder legislativo. O respectivo procedimento pode ocorrer nas comissões, na assembléia plenária ou em ambos e compreende, basicamente, a discussão da proposta de lei, o exame dos artigos e das emendas e a final votação 7 . Ressalve-se que a distinção entre os três poderes não mais pode ser percebida exclusivamente pelas funções deles. Também os poderes executivo e judiciário legislam, assim como o poder legislativo possui competências anteriormente atribuídas somente aos demais poderes.

Ainda pode acontecer de o parlamento veicular demandas e expressar o apoio ou a discordância do povo para com o governo.

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Essa é uma das facetas da função de legitimação , historicamente responsável pela manutenção do parlamento em alguns regimes absolutistas ou ditatoriais. Também hoje essa atividade mostra-se extremamente pertinente, à medida que os parlamentos têm grande potencial legitimador frente à atual crise de identidade das democracias (GOYARD-FABRE, 2003, p. 284). Com efeito, as câmaras representativas despontam como atores principais na urgente reestruturação da participação política popular.

Diretamente ligada à função de legitimação está a função de controle do poder executivo . “O instrumento parlamentar de controle mais comum está no poder de tornar...

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