Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais

AutorChristophe Charle
Páginas21-61
DOI:http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n38p21/
2121 – 61
Paris/Berlim: ensaio de
comparação entre os professores
de duas universidades centrais1
Christophe Charle2
Resumo
A partir da prosopograf‌ia comparada de duas amostras de professores de letras e de ciências das
universidades de Paris e Berlim durante o mesmo período, este estudo situa essas duas elites
universitárias em suas respectivas sociedades. A comparação das origens sociais dos professores
e da sua evolução, do recrutamento geográf‌ico, da formação escolar, e das dinâmicas de carreira
permite apreender dois modelos bastante diferentes de meritocracia e dois processos distintos
de evolução das comunidades universitárias. A centralização e a seleção elitista na França não
impedem certa abertura social, ao passo que a descentralização e a inexistência de concursos for-
mais continuam favorecendo os mesmos grupos dominantes na Alemanha. Apesar das intenções
of‌iciais, evidencia-se a incapacidade de implantar o modelo germânico na França e, na Alemanha,
de modernizar e democratizar o quadro de professores, mesmo com as tentativas da República
de Weimar. As tensões crescentes que afetam os dois sistemas no período entre guerras, e as
orientações sociais e políticas dominantes que opõem os dois grupos de professores, não podem
ser, no entanto, reduzidas a um denominador comum de “crise”, ao contrário são a prova das es-
pecif‌icidades constitutivas de cada modelo universitário. Para além dos resultados empíricos, este
artigo pretende defender a fecundidade heurí stica da combinação entre o método comparativo e
a biograf‌ia social em escala europeia.
Palavras-chave: Paris. Berlim. Prosopograf‌ia comparada. Professores de letras e de ciências
O método prosopográco teve um grande sucesso na história social
há alguns anos atrás, notadamente para o estudo de elites universitárias.
No entanto, tentativas de prosopograa comparada são raras e se restringem
a alguns indicadores bastante limitados. A escolha por uma prosopograa
1 Publicado originalmente em: CHARLE, C. Paris/Berlin: essai de comparaison des professeurs de deux univer-
sités centrales, Histoire de l’éducation, n° 62, 1994, p. 75–109. Disponível em:
hedu_0221-6280_1994_num_62_1_2734>. Tradução de Rodrigo da Rosa Bordignon. Agradeço a leitura e
aos comentários de Christophe Charle e Odaci Luiz Coradini.
2 Professor de história contemporânea, Université Paris I – Panthéon-Sorbonne. E-mail: christophe.charle@ens.fr.
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comparada dos professores parisienses e berlinenses em um período de tran-
sição que vai dos anos 1870 a 1930 se justica, portanto, de três modos.
Primeiramente, pelo esforço em fundar empiricamente as hipóteses socio-
lógicas levantadas ao nal do Naissance des “intellectuels” (CHARLE, 1990,
p. 231-232) sobre a diferenciação de situação social dos dois grupos no interior
das elites dos dois países, e os efeitos ideológicos e políticos dessa diferença.
Em segundo lugar, a prosopograa comparada permite compreender, a
partir de dentro, o funcionamento dos sistemas universitários e as inadapta-
ções crescentes que lhes caracterizam frente aos novos desaos encontrados
pela universidade com a especialização da função de pesquisa e a diversi-
cação disciplinar e social. O terceiro ponto a destacar é o esforço na busca
de soluções para um conjunto de questões metodológicas que incidem so-
bre toda comparação de um mesmo grupo em dois países diferentes. Esse
problema já foi levantado por outros trabalhos, notadamente pela pesquisa
coletiva dirigida por Jurgen Kocka sobre as burguesias europeias (KOCKA,
1988)3. A maior parte dos trabalhos comparativos contenta-se em retomar
e colocar em paralelo pesquisas já realizadas, incorrendo em um duplo ris-
co: aquele de interpretar mal os dados dos outros pesquisadores, e aquele
de ser obrigado a reduzir o detalhe das informações ao menor denomina-
dor comum. Do meu ponto de vista, isso acelera e arruína prematuramente
as potencialidades do método comparativo em história social, expondo-o
à crítica dos especialistas de cada país e, igualmente, aquela dos sociólogos
que destacam as ingenuidades das comparações mecânicas realizadas termo
a termo. Mesmo se o esforço em conduzir a pesquisa de base para os dois
países – com a necessidade, decorrente da escolha, de reduzir o número de
indivíduos em análise –, municia-me contra os dois primeiros tipos de críti-
cas, a escolha ingrata da erudição não me previne contra o último problema
infantil do método comparativo, aquele do nominalismo. É prudente com-
parar termo a termo os professores da universidade de Paris e de Berlim? Em
outras palavras, ocupariam eles uma posição exatamente análoga em seus sis-
temas universitários? Evidentemente, jamais se reduzirá um sistema policên-
trico, mesmo que com um polo dominante, a um sistema centralizado com
um polo hegemônico. No entanto, a dinâmica dos dois sistemas na época
considerada reforça a opção escolhida. O sistema francês busca, por meio da
3 Ver comentário crítico, Charle (1990b).
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imitação do modelo alemão, reabilitar, precisamente nesta época, o centro
e a periferia (WEISZ, 1983). Inversamente, o sistema alemão, na época em
um contexto de unidade política, confere à Universidade de Berlim uma
posição central que ela jamais havia tido até então. Um estudo mais geral
realizado pelo geógrafo H. H. Blotevogel destacou, a partir de certo núme-
ro de indicadores culturais, a polarização crescente por causa da hegemonia
berlinense. O estudo das “demandas” dos universitários alemães de uma
universidade para outra indica que Berlim tende a ocupar a posição de m
de carreira de todas as trajetórias, outras raras universidades, como Leipzig
e Munique, podendo aparecer também como escolhas últimas de carreira,
mas de forma cada vez mais excepcional. Enquanto entre 1871 e 1910,
85 professores berlinenses (da Universidade ou da Technische Hochschule)
vieram de outra cidade, somente três saíram de Berlim para outras univer-
sidades. Para Leipzig, os números são respectivamente de 49 e oito, e para
Munique de 32 e dois professores (BLOTEVOGEL, 1983, p. 151).
Morfologia do conjunto
O segundo elemento que pesa em favor da comparação é a similar re-
levância demográca das duas populações analisadas. A amostra alemã que
serve de base para este estudo é composta de 74 professores ordinários das
disciplinas cientícas e de 110 das disciplinas literárias, todos pertencendo
à Faculdade de Filosoa da Universidade de Berlim, entre 1870 e 1933.
Ao contrário do modelo francês, na Alemanha as disciplinas cientícas e
literárias são agrupadas na Faculdade de Filosoa. Foram retidos apenas os
professores que ensinaram por tempo signicativo durante o período con-
siderado na pesquisa, buscando incluir apenas aqueles que tem em Berlim
um objetivo crucial, e não uma simples etapa da carreira. Um dos objeti-
vos da comparação é isolar dois grupos de professores, um alemão e outro
francês, que tenham chegado ao topo da consagração, o que na França se
resume ao acesso a um cargo parisiense. A amostra francesa é constituí-
da por professores com cargos em Paris entre 1879 e 1939, dos quais a
biograa consta nos meus diferentes dicionários publicados, ou em estudos
realizados paralelamente, mas não editados nos moldes prosopográcos4.
4 Cf. em particular meu artigo, Charle (1990c).
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O tamanho variável dessas populações, segundo as disciplinas e as
universidades, já é um indicador interessante. Paradoxalmente, no país
da ciência alemã, o número de titulares é menor nas disciplinas cientí-
cas do que na França, em períodos de duração comparáveis (63 anos
para o primeiro, 60 para o segundo). Esse paradoxo se explica de duas
formas: a inação do estrato dos professores não catedráticos na Alema-
nha; a inexistência de separação entre as letras e as ciências, prejudicial à
criação de cátedras cientícas, uma vez que a maioria literária aumenta
inconscientemente seu domínio; e enm, a criação de estabelecimentos
paralelos nos domínios cientícos e tecnológicos: Technische Hochschule,
de Charlottenburg, Landwirtschaftlische Hochschule, Physkalische-Technische
Reichsanstalt, Kaiser-Wilhelm Gesellschaft, cujos institutos foram implan-
tados em Dahlem a partir de 1911. Na França ao contrário, e em Paris
em particular, mesmo se os estratos dos professores se diferenciam, a
maior parte deles consegue subir na hierarquia, tendo em vista que novas
cátedras são criadas para funções externas, mais fáceis de serem obtidas
para as ciências do que para as letras, por causa dos argumentos de uti-
lidade mobilizados. As Tabelas 1 e 2 permitem especicar essas conside-
rações gerais.
Tabela 1 – Evolução do número de cátedras literárias e científ‌icas
(professores ordinários) da Faculdade de Filosof‌ia de Berlim
Ano Disciplinas
literárias
Disciplinas
científ‌icas Total
1870 20 7 27
1880 23 13 36
1890 37 13 50
1900 42 17 59
1909 48 22 70
1928 47 32 76
Fonte: Reinhard Riese: Die Hochschule auf dem Weg zum Wissenschaftlichen
Grossbetrieb, Stuttgart, Klett, 1977, p. 355; Minerva, 1928.
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Tabela 2 –Evolução do número de cátedras literárias e científ‌icas
(professores) das Faculdades de Letras e de Ciências de Paris
Ano Faculdade
de Letras Faculdade de Ciências Total
1860 15 18 33
1880 16 (+ 2) 19 (+ 2) 35 (+ 4)
1890 20 (+ 3) 20 (+ 3) 40 (+ 6)
1901 25 25 50
1928 42 49 91
Fonte: Annuaire de l’instruction publique dos anos considerados e Minerva para 1928.
N. B.: Os números entre parênteses referem-se aos professores adjuntos,
assimiláveis aos professores titulares.
Constante no tempo, essa oposição deve ser compreendida, contudo,
em razão de considerações subsidiárias relativas à dinâmica das estruturas
do ensino superior das duas capitais. Para que a comparação quantitativa
tome verdadeiramente em conta o conjunto do ensino cientíco e literá-
rio, é necessário adicionar, para Paris, as cátedras do Collège de France, do
Muséum e da École Polytechnique; e, para Berlim, aquelas da Technische
Hochschule, assim como os postos dos institutos que gravitam em torno
da Universidade. Encontramos aqui um dos limites intrínsecos das com-
parações de estruturas formalmente idênticas, mas diversicadas em razão
de contextos institucionais variáveis. Lembremo-nos da quase igualdade
dos dois grupos e da modernidade superior (em termos de ciência pura)
da França. Como se explica a desvalorização permanente dos observadores
franceses, contrastante com a autossatisfação alemã, ou com o elogio geral
dos observadores estrangeiros? Nesse ponto, é necessário colocar em pauta
as pirâmides hierárquicas do conjunto dos sistemas nacionais e, sobretudo,
os meios materiais postos à disposição dos professores.
Em um artigo célebre, Ferdinand Lot buscou, em 1904, fazer uma
comparação caso a caso do conjunto dos professores das disciplinas literá-
rias e cientícas das universidades francesas e alemãs. Para Paris, ele alcança
o número de 138 professores de letras de todos os tipos (compreendendo
o Collège de France, a École du Louvre, a École pratique des Hautes Études, a
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École des beaux-arts, e o Conservatoire); e 125 para Berlim (compreenden-
do os privat-docenten5, o que é discutível tendo em vista que eles não são
remunerados pelo Estado, situação inexistente na França, ao menos que
se incluam os cursos livres). O ensino superior parisiense focalizado glo-
balmente, para além das instituições singulares, subclassica o berlinense,
ainda mais se excluímos os privat-docenten. Em contraposição, se compa-
rarmos o total nacional das universidades francesas e alemãs, a lacuna se
amplia no sentido inverso, para além do desequilíbrio das populações de
estudantes dos dois países: 830 para a Alemanha, 354 para a França.
Uma situação homóloga se encontra no domínio cientíco: Paris ul-
trapassa Berlim por 129 cargos contra 95 (sem a École Polytechnique), mas
as universidades alemãs superam as francesas com 636 cargos contra 343
(LOT, 1906, p. 30-33, 58-61). Essa dupla assimetria fornece a chave da
dinâmica dos dois sistemas. Apesar da polarização das carreiras berlinenses
evocada anteriormente, o peso demográco da universidade da capital do
Reich permanece na mesma ordem de grandeza daquela das outras gran-
des universidades. Além disso, ela reúne 15% do conjunto dos estudantes
alemães, enquanto de 1/3 a metade dos estudantes franceses, dependendo
das faculdades, encontram-se em Paris. A política francesa de reformas dos
anos 1880 não conseguiu eliminar o desequilíbrio centro-periferia; falta-
ram uma massa crítica enraizada e um ambiente intelectual signicativo,
fornecidos para Paris pela galáxia de instituições periféricas à Universida-
de. Entre os professores de literatura da maior universidade de provín-
cia, Lyon, e aqueles da Faculdade de Letras de Paris, a relação é de quase
1 para 2 (28 contra 54); em ciências, é mais de 1 para 2 (50 em Paris, 23
em Lille). Na Alemanha, a diferença é menor: 69 para Leipzig contra 125
para Berlim em letras, 64 em Bonn contra 95 em Berlim em ciências. É ne-
cessário analisar agora, quais são os efeitos sociais desses dados estruturais
sobre as características dos professores.
5 No sistema alemão, designa os professores habilitados, mas sem cátedra ou cargo que garanta a remuneração
por parte do governo. São autorizados a proferir cursos, conferências, etc., dos quais obtém ganhos por meio
das taxas de específ‌icas (N. T.).
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Origens sociais
A comparação das origens sociais pode ser abordada de três pontos
de vista:
1. Como um indicador da posição social de um grupo prossional na
estrutura social global.
2. Como sinônimo da abertura relativa das elites universitárias, já
que a Faculdade de Filosoa na Alemanha e as Faculdades de Le-
tras e de Ciências na França ocupam uma posição homologamente
intermediaria e/ou dominada no conjunto do sistema universitá-
rio e, mais globalmente, no campo das elites sociais.
3. Diacronicamente e tematicamente, enm: o recrutamento social
dos professores universitários de acordo com a época e o conjunto
de disciplinas varia em que sentido?
Antes de responder a essas três questões, convém passar para uma eta-
pa anterior, aquela da reexão metodológica sobre as codicações utili-
zadas, as quais nunca serão ideais, mas para as quais os vieses devem ser
registrados para ponderar os resultados obtidos.
A primeira questão remete ao debate recorrente sobre as codicações
socioprossionais, notadamente por ser difícil aplicar um esquema unifor-
me sobre uma sociedade não unicada e em rápida transformação, como
na época considerada. Quando se pretende aplicar a mesma divisão sobre
duas sociedades, elas mesmas diferentes, colocamo-nos diante de sérias ob-
jeções dos especialistas. A única resposta para esse debate, na realidade sem
saída, é uma opção pragmática. Faz-se necessário recorrer a diversos esque-
mas concorrentes em razão dos critérios complementares e considerando o
problema em questão: uma codicação sintética, uma versão da codica-
ção já utilizada para a pesquisa sobre as elites da republica6, e codicações
parciais para este ou aquele critério (vínculo com o Estado, com a antiga
nobreza, e com a cultura dominante) que ganham sentido particular para
cada contexto nacional, sem esquecer, para ns de controle, a transcrição
6 Cf. Charle (2006). (N.T)
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o mais el e próxima possível das fontes das prossões dos pais. Evitamos
assim de reicar categorias muito gerais que, na realidade, se sobrepõem, e
de criar falsas analogias ao aplicá-las mecanicamente.
É correto, no entanto, retomar uma codicação de base francesa e
aplicá-la ao caso alemão? A própria prática de codicação da pesquisa em
curso convida a responder positivamente. Apoiando-se sobre as classica-
ções bastante detalhadas dos historiadores alemães da mobilidade social,
não tropeçamos em incongruências maiores, devendo as incertezas muito
mais aos limites das fontes do que do código em si. As únicas categorias
problemáticas – o que ocorre também na França – foram os dois grupos
da burguesia econômica: grande burguesia e média burguesia. Como na
França, os termos “negociante” ou “proprietário”, os vocábulos alemães
Kaufmann ou Privatier não possuem, sem índices suplementares, uma hie-
rarquia incontestável entre os dois níveis denidos. A probabilidade esta-
tística indica que a maioria pertence, sobretudo, ao estrato inferior, mas
esse raciocínio global não resolve as questões individuais, sob pena de de-
cretar arbitrariamente a repartição que buscamos precisamente estabelecer.
No caso da França, foi possível, em geral, precisar a clivagem apoiando-
-se em informações scais. Para a Alemanha, a pesquisa está basicamente
fundada sobre informações impressas, sendo difícil chegar a uma certeza
comparável. Ao contrário, para todos os outros grupos, a correspondência
com os homólogos franceses é bastante simples, mesmo se as hierarqui-
zações internas mais nas nos escapam. A padronização de classicações
é uma necessidade de todo estudo de elite, sob pena de haver demasiadas
categorias, que reúnem apenas casos individuais.
A segunda questão remete ao problema da homogeneidade das disci-
plinas representadas no interior das faculdades francesas e alemãs compa-
radas. A questão se coloca, sobretudo, para o período mais recente, quando
a diferenciação disciplinar não evolui no mesmo ritmo, nem exatamente
sobre as mesmas bases nos dois países. Algumas disciplinas alemãs, como
as Staatswissenschaften7, têm seus equivalentes nas faculdades de direito
7 No caso Francês, as disciplinas que comporiam o equivalente às “ciências de estado” ou à ciência política ale-
mã tiveram espaço em duas instituições de natureza distinta: a École Libre des sciences politiques, instituição
privada fundada em 1871, e a Faculdade Direito de Paris. A af‌irmação da ciência política enquanto disciplina
específ‌ica e com pretensões de especialização só ocorreria nos anos 1940, com a nacionalização da École
Libre des sciences politiques e a criação da École nationale d’administration (N. T.).
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francesas; igualmente, o ensino de estética ou arqueologia são muito me-
nos desenvolvidos na França, presentes, sobretudo, nas grandes institui-
ções. Enm, outras disciplinas, como a geograa, unicadas na França,
estão divididas entre as letras e as ciências na Alemanha, de acordo com
a especialidade humana ou física. Seria possível multiplicar os exemplos.
Para eliminar essas distorções e seus efeitos sociais, precisaríamos, com
todo rigor, acrescentar, às cátedras das faculdades parisienses consideradas,
ao menos àquelas do Collège de France, o que reduziria o descompasso, mas
aumentaria o desequilíbrio entre as bases estatísticas das duas amostras.
Optamos por explicitar o problema e utilizar testes estatísticos secundários
para corrigir os vieses, ao invés de tornar ainda mais arbitrária a correspon-
dência dos dois grupos de universitários.
A última questão conecta-se aos pontos precedentes e permite modu-
lá-los. Já se dispõem de algumas indicações com base nos trabalhos de Fritz
K. Ringer e de Konrad H. Jarausch (RINGER, 1969 [2000], JARAUSCH,
1982), os quais permitem prever uma resposta globalmente negativa para
a Alemanha. Uma aposta segura é que a Faculdade de Filosoa de Berlim,
considerando o grau elevado de seleção que representa o acesso às suas cá-
tedras, reforçará, ao invés de invalidar esses indicadores. Igualmente, meu
estudo diacrônico e temático sobre a amostra francesa evidenciou dife-
renças sistemáticas entre as faculdades de letras e de ciências, bem como
uma abertura social real, mas tardia, do recrutamento, e em ritmos varia-
dos segundo as faculdades. A hipótese de trabalho que se pode formular a
partir dessas indicações gerais é a de uma diferença crescente da lógica de
reprodução dos dois sistemas universitários e de suas faculdades principais.
Os professores entre as elites
Quanto menos uma categoria de elite é seletiva em seu recrutamento,
menos sua posição é elevada no interior das elites. Essa lei geral impli-
ca, examinando a Tabela 3, que os professores da Faculdade de Filosoa
de Berlim em seu conjunto ocupam uma posição evidentemente superior
àquela de seus homólogos franceses. A pesquisa suplementar na qual se
baseia a visão geral situada no nal do Naissance des “intellectuels” reforça
as hipóteses propostas. Enquanto a categoria mais baixa da codicação
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representa somente de 7% a 10% do conjunto das origens sociais em
Berlim, a proporção é de duas a três vezes mais em Paris, principalmente
quanto mais se avança no tempo e quanto mais se aproxima do polo
cientíco das elites universitárias. Tal diferença ultrapassa largamente a
margem de erro de toda codicação uniformizadora. Além disso, as ca-
tegorias superiores, que são sobre-representadas do lado berlinense, são
subrepresentadas do lado francês, o que reforça essa primeira diferença.
Assim, o grupo prossional menos incerto por sua posição superior na
sociedade dos dois países, aquele dos funcionários de alto escalão e das
elites políticas, direcionou poucos de seus lhos para uma carreira de
ensino superior na França: ao todo oito professores da Sorbonne sobre
277 vêm de uma família de grandes funcionários ou políticos (2,8%), e
somente da segunda geração, ou seja, quando as carreiras universitárias
foram revalorizadas pela República. Na Faculdade de Filosoa de Ber-
lim, ao contrário, 16 professores sobre 175 são provenientes dessa elite,
ou seja, próximo de 10%. Igualmente, a grande burguesia econômica
estabelece, na Alemanha, uma distância menor frente às carreiras univer-
sitárias (9,8% considerando todas as disciplinas), contra menos de 3%
nas faculdades parisienses. Para a média burguesia econômica, os índices
são bastante similares tanto em Berlim, quanto em Paris: respectivamen-
te 18,5% (ciências) e 20% (letras), contra 22,2% (ciências) e 20,6%
(letras). Em cada país, os resultados indicam a função de enobrecimento
cultural da universidade para todas as famílias sem grande capital cultu-
ral e recém-chegadas à classe dominante. Notaremos, no entanto, que os
índices franceses são superiores, principalmente no polo cientíco, leira
de promoção por excelência dos recém-chegados em decorrência do me-
nor peso da cultura humanista8. A similitude das taxas de lhos de mem-
bros das prossões jurídicas e de frações intelectuais não deve, também,
induzir ao erro. É aqui que a análise mais na da composição das frações
torna-se indispensável. Enquanto que, em Paris, os descendentes das fra-
ções intelectuais são essencialmente lhos de professores do secundário,
em Berlim, ao lado dos lhos de médicos, de pastores e de professores,
estão também os herdeiros em sentido pleno, uma vez que encontramos 24
8 Neste grupo incluímos, para Berlin, os pais dotados, apesar de tudo, de um certo capital cultural: entre os pro-
fessores das disciplinas literárias, um engenheiro de estradas de ferro, dois farmacêuticos, dois comerciantes
de arte, um tipógrafo, e um doutor em engenharia.
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lhos de professores universitários sobre 175 (13,1%), taxa de reprodução
que representa mais que o dobro da francesa: 15 sobre 277 (5,4%).
Como já demonstramos em outros estudos, com exceção das ciên-
cias no período recente e dos grandes estabelecimentos (CHARLE, 1987,
p. 339-341; CHARLE, 1988), a permanência das dinastias universitárias
na França, índice ao mesmo tempo de forte espírito de corpo, de autocon-
trole do recrutamento e da consciência de ocupar uma posição de elite que
não tem nada a invejar das outras, é um fenômeno marginal, enquanto
na Alemanha, e principalmente em Berlim, ela resiste às transformações
morfológicas. A mesma seletividade social superior se encontra no interior
das prossões jurídicas. Em Berlim, elas estão majoritariamente ligadas à
magistratura, portanto socialmente mais elevadas9, enquanto que em Paris,
trata-se, sobretudo, de juristas liberais, dos quais uma parcela está em de-
clínio, símbolo da retração da burguesia tradicional frente a uma carreira
na qual a concorrência é cada vez mais severa. A última categoria de origem
ainda não analisada, aquela dos lhos de funcionários de médio escalão,
evolui pouco no interior das duas amostras de professores, tanto em letras
como em ciências, e para todas as épocas: de 9% a 15% dos professores.
Evidentemente, seria necessário dispor de dados globais para determinar
se esta analogia não decorre de uma ilusão criada pela codicação. Tanto
na França quanto na Alemanha, a estagnação desse grupo signica, na
realidade, uma regressão relativa, já que se trata de funcionários cujo peso
aumenta na sociedade global e que se beneciam, geralmente, de auxílios
particulares para facilitar os estudos de seus lhos.
Considerando essa primeira aproximação, aparentemente os profes-
sores da Faculdade de Filosoa de Berlim estão mais próximos das frações
superiores da classe dominante que os professores de Paris. A carreira uni-
versitária está bem mais conectada às elites do que na França, onde ela faz
parte dos modos de promoção das frações intermediárias da burguesia,
notadamente daquelas próximas ao polo cultural, ou mesmo de alguns ele-
mentos superselecionados dos grupos dominados. Esses últimos são muito
mais raros em Berlim: contamos 12 sobre 175 (6,8%), para um conjunto
que constitui 70% a 80% da população do país. Essa diferença remete à
menor continuidade entre as leiras do secundário e do superior na Ale-
manha, a maior exigência de mobilidade entre as carreiras para ingressar
9 Cf. Rottleuthner (1988).
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nas redes de cooptação, ao desequilíbrio crescente entre o número de po-
sições precárias e denitivas no interior da universidade alemã e, enm,
ao malthusianismo conservador alemão que marca o m do século XIX
frente à superprodução de diplomados, em oposição à ideologia ocial de
promoção social defendida pelo sistema escolar francês.
Tabela 3 – Origens sociais comparadas dos professores parisienses
e berlinenses (letras e ciências) (1870 – 1930)
Paris Berlim
CSP do pai Letras Ciências Letras Ciências
Grande burguesia 4,24 2,56 6,6 14,3
Funcionários de
alto escalão e elites
políticas
2,42 3,42 11,4 5,7
Média burguesia 20,6 22,2 20 18,5
Prof‌issões jurídicas 4,24 2,56 8,5 8,6
Frações intelectuais 34,5 23,93 36,2 28,5
Funcionários de médio
escalão
11,5 10,25 9,5 14,3
Pequena burguesia 22,4 35 7,6 10
N 165* 119* 105* 70*
Nota: * Não respostas excluídas.
Fonte: Elaborada pelo autor
Indicadores de status
A intensa proximidade entre os professores berlinenses e as frações
sociais dominantes é conrmada e especicada graças a uma análise
sintética das origens sociais em razão de três elementos de status que mar-
cam as clivagens entre as duas sociedades consideradas: o pertencimento
à função pública, a posse de uma cultura universitária pelo pai, e, enm,
o pertencimento à nobreza. Enquanto na França o último indicador pra-
ticamente desapareceu do mundo universitário depois de 1860, salvo ca-
sos incomuns, isso não ocorre exatamente no mesmo sentido no corpo
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professoral da capital da Prússia. A obtenção de títulos honorícos inte-
grando os professores no interior da nobreza de função continua um cos-
tume corrente – e acionado pelos interessados –, enquanto que os autên-
ticos nobres não desdenham a obtenção de uma cátedra: 10% em letras
e 8% em ciências enquadram-se nesse caso (incluindo as não respostas).
Contudo, são os dois outros indicadores (que resumem o termo alemão
Bildungsburgertum) que tornam mais evidente a função social do corpo
professoral enquanto instância de reprodução dos grupos dirigentes, bem
como sua integração aos últimos. Ao contrário, as porcentagens inferiores
na França, e principalmente em ciências, provam a posição mais marginal
dos professores parisienses com relação ao pertencimento a nobreza.
Tabela 4 – Indicadores de status dos
professores parisienses e berlinenses
Berlim Paris
Letras Ciências Letras Ciências
Pai em função pública 52,3 54,2 41,7 34,5
Pai com ensino
superior
50,9 50 32,5 23,9
Pai nobre 10,1 8 0,6 0,88
Fonte: Elaborada pelo autor
Independentemente da diferença entre as nações, observa-se
também uma distinção transversal segundo a ordem das faculdades.
Excetuando-se a tradição de serviço público (e ainda, para Berlim, a
diferença é pequena), todos os indicadores de status superior estão con-
centrados na França e na Alemanha, do lado literário: entre os pais dos
professores de letras berlinenses e parisienses, encontra-se um maior nú-
mero de possuidores de forte capital escolar, já em Berlim destacam-se
os provenientes de famílias nobres, e mais funcionários em Paris. Já que
no conjunto das faculdades encontram-se homologias, essa hierarqui-
zação geral em termos de status comum aos dois países remete à estru-
turação social antiga das universidades, ainda não superada na época
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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considerada10. O hiato é, contudo, menos forte na Alemanha do que
na França, isso se deve inexistência de separação entre as faculdades e a
seletividade social mais forte das carreiras universitárias na Alemanha.
Na França, essa divisão ocial favorece às derivações autônomas dos
mecanismos de cooptação que acentuam as diferenças entre os pers
sociais dos professores.
Evolução
A homologia estrutural entre os dois países no plano das disciplinas
caminha em paralelo com uma divergência crescente em termos de evo-
lução do recrutamento. A política voluntarista de reforço das faculdades
literárias e cientícas sob a República conduziu, como mostram as tabelas
a seguir, a uma abertura social, principalmente para as classes médias e
para a pequena burguesia, mais rápida em ciências, mas igualmente sentida
em letras no período entre guerras. Os professores berlinenses, apesar do
crescimento comparável do número de cátedras e da melhoria das possi-
bilidades de carreira durante a República de Weimar, não conhecem, no
entanto, uma evolução similar. Sem dúvida existe, tanto em letras como
em ciências, uma regressão da dominação do Bildungsburgertum (fenôme-
no encontrado igualmente no âmbito do recrutamento dos estudantes),
mas isso não favorece a pequena burguesia ou as classes médias, mas acima
de tudo os herdeiros da burguesia econômica. Logo, em ciências e em
letras, os herdeiros de um importante ou médio capital econômico do-
bram globalmente sua proporção, respectivamente de 21,1% para 41,6%
e de 18% para 33,9%. Essa evolução, que poderíamos considerar como
obra do acaso, tendo em vista o baixo número dos efetivos considerados,
é paralela àquela do conjunto dos professores alemães11, e da necessidade
10 Esta constância encontra-se na amostra de C. von Ferber (1956), em minha amostra sobre o conjunto de ins-
tituições de ensino superior parisienses em 1901 (CHARLE, 2006), nos dados sobre estudantes fornecidos por
Titze, e até mesmo nos dados recentes de Bourdieu (1984) para os professores parisienses de 1967.
11 Cf. F. K. Ringer (1988, p. 96–99): os f‌ilhos de diretores de empresas, negociantes e diretores administrativos
passam, no plano global, de 16 para 28% (período 1860–1889 e 1890–1919), depois para 31% (1920–1933).
As incertezas da classif‌icação não permitem tomar esses números por seu valor em nominal e independente de
sua similitude com meus achados. O importante é a tendência convergente. A inexistência de democratização
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experimentada nos estratos da nova burguesia econômica, impulsionada
pela industrialização, de dotar seus lhos dos índices de status cultural das
frações tradicionais da burguesia. Em ciências, pode se tratar, ao mesmo
tempo, de uma estratégia prática, considerando que os que não têm su-
cesso na pesquisa serão aproveitados nas empresas. Assim, alguns grandes
químicos alemães iniciaram pelos estudos técnicos na perspectiva de seguir
carreira na empresa da família, antes de se orientar em direção à pesquisa
universitária. Pode-se citar, aqui, a trajetória de Ernst Otto Beckmann.
Filho de um inventor, fundador de uma tinturaria em Solingen, começa
como estagiário em uma farmácia, torna-se farmacêutico e depois prosse-
gue seus estudos de química em Leipzig, onde defende sua habilitação e
inicia então uma carreira de pesquisa em química aplicada, a qual o condu-
zirá à direção de um instituto da Kaiser-Wilhelm Gesellschaft em Dahlem, e
a uma cátedra Unter den Linden12.
Tabela 5 – Evolução das origens sociais dos professores
(letras e ciências) de Paris e Berlim
Origem social Par is
Letras Ciências
1879–1908 1909–1939 1879–1908 1909–1939
Grande burguesia 6,9 2,8 2,2 2,7
Funcionários de
alto escalão e elites
políticas
- 3,7 - 5,4
Média burguesia 18,9 21,5 34 15
Prof‌issões jurídicas 8,6 1,8 4,5 1, 3
Frações intelectuais 34,4 34,5 25 23,2
Funcionários de médio
escalão
12 11,3 9 9,5
Pequena burguesia 18,9 23,5 22,7 42,4
N 58* 107* 44* 73*
é igualmente evidente mesmo para uma amostra nacional e transdisciplinar, podendo ser imputada ao caráter
conservador e seletivo da Universidade de Berlin.
12 Neue Deutsche Biographie, I, p. 725; Wer ist’s. 1909.
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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Origens sociais Berlim
Letras Ciências
1870–1908 1909–1930 1870–1908 1909–1930
Grande burguesia 6 7,2 9 18,9
Funcionários de
alto escalão e elites
políticas
8 14,5 6 5,4
Média burguesia 12 27,2 12,1 24,3
Prof‌issões jurídicas 8 9 15,1 2,7
Frações intelectuais 46 27,2 33,3 24,3
Funcionários de médio
escalão
10 9 12,1 16,2
Pequena burguesia 10 5,4 12,1 8,1
N 50* 55* 33* 37*
Nota: * Não respostas excluídas.
Fonte: Elaborada pelo autor
A partir das especicidades históricas da universidade alemã, podemos
é possível, igualmente, avançar em uma interpretação complementar para
dar conta dessa inexistência de abertura social. O primeiro grupo observa-
do fez seus estudos em uma conjuntura relativamente favorável, o que per-
mitiu a alguns elementos de origem modesta de vislumbrar a expectativa
de uma carreira de ensino superior, e mesmo de obter um cargo, indepen-
dentemente das barreiras sociais. Ao contrário, o segundo grupo se lança
ao ensino superior no momento de crescimento do hiato entre o topo e a
base da hierarquia universitária, mesmo quando o número de postulantes
potenciais aumenta com a escolarização secundária e superior crescentes.
Em 1860, existiam 107 privat-docenten nas faculdades de losoa das uni-
versidades prussianas, para 81 cargos de professor extraordinário e 175 car-
gos de professor ordinário, ou seja, uma possibilidade plausível de mudar
de estatuto rapidamente depois do término dos estudos superiores nestes
anos, o que caracteriza a situação do primeiro grupo. Em 1889/1890, a
situação se degradou signicativamente: 172 privat-docenten (65 a mais),
154 professores extraordinários (73 a mais), para 284 professores ordiná-
rios (109 a mais), o que signica um décit de 29 cargos; 20 anos mais
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tarde (1909), o malthusianismo ocial se agrava sem, no entanto, desen-
corajar os aspirantes às cátedras: contamos 332 privat-docenten, quase tão
numerosos quanto os professores ordinários (344), enquanto 172 profes-
sores extraordinários esperam seu espaço: o décit passou, então, para 160
cargos (TITZE, 1990, p. 147). Nessas condições, compreendemos que
os jovens doutores com menores possibilidades de esperar para se tornar
titular com os rendimentos miseráveis ou aleatórios, voltam-se para as car-
reiras mais modestas, mas mais certas, do ensino secundário em letras, ou
dos cargos no setor privado para as ciências: os anos 1900 correspondem,
precisamente na Alemanha, a um novo boom econômico e ao aumento
da necessidade de professores no ensino secundário13. Mesmo que os da-
dos morfológicos não fossem claramente percebidos pelos recém-chega-
dos, alguns sinais ideológicos ou sociais eram evidentes: o movimento dos
nicht-ordinarien que traduz o descontentamento frente à lentidão das car-
reiras daqueles que já possuem cargos, os debates sobre o modo de retri-
buição dos professores, objeto de reformas e de artigos na imprensa que
mostram as grandes desigualdades, sem falar do debate recorrente sobre a
superprodução de diplomados, da qual uma das funções, como demonstrou
H. Titze, é desencorajar os estudantes de origem modesta, o que contribui
para reestabelecer o equilíbrio do ciclo universitário por meio de uma de-
silusão prévia.
Origens geográf‌icas e estudos
A comparação dos indicadores geográcos, que permitem denir
as trajetórias dos professores das duas universidades, chega a conclu-
sões inversas daquelas obtidas por meio da análise do seu recrutamen-
to social. Isso remete à estruturação geográca especíca dos dois es-
paços universitários e preenche, igualmente, uma função comparativa.
Tendo em vista que os professores ordinários se caracterizam por uma
forte homogeneidade social e uma grande proximidade familiar de suas
13 Entre 1895 e 1910, passamos de 5.814 cargos de professores permanentes do secundário na Prússia para
10.258 (TITZE, 1990, p. 150). Sobre a expansão econômica da Belle Époque, ver Nipperdey (1991, p. 252,
271). Sobre o aumento do salário dos engenheiros do setor privado, ver Kocka (1979, p. 85–100) e Jarausch
(1990, p. 17–22).
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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futuras funções, eles podem se dispensar de uma socialização precoce
na capital da Prússia. Sem dúvida, os berlinenses de nascimento estão
sobrerrepresentados em relação ao peso demográco da capital (8,9%),
uma cidade que representa na metade do século XIX menos de 2% da
população alemã (entre 500.000 e 1 milhão de habitantes para 40 a 50
milhões no Reich). Mas essa vantagem de nascimento não é similar àque-
la da qual se beneciam os parisienses, originariamente encravados na
Sorbonne (entre 17,7 e 36,3% segundo o período e a faculdade), para
uma cidade reunindo 3% da população francesa. Se acrescentarmos a esse
primeiro indicador àquele dos estudos superiores total ou parcialmente
realizados nas duas capitais consideradas, a Terceira República, apesar
de sua política descentralizadora, está longe de se igualar a circulação
acadêmica alemã. Sem estudos em Paris, praticamente não há chances de
acessar uma cátedra parisiense, a melhor prova disso é que os raros casos
de estudos iniciais na província são sempre completados por estudos em
Paris. Em Berlim, uma maioria dos futuros professores estão no mesmo
caso, mas raramente trata-se de estudos unicamente berlinenses e isso
não exclui de modo denitivo aqueles formados em outro país, como na
França. Esse indicador estatístico não é apenas a tradução biográca da
parte signicativa de estudantes formados em Paris relativamente ao total
nacional, tendo em vista que o desequilíbrio é muito mais acentuado.
Ele manifesta, sobretudo, a existência de uma rede de pré-recrutamento
geográco, passando principalmente pela École Normale Supérieure, de
onde a maioria dos professores é proveniente (em declínio em letras, em
ascensão nas ciências). Além disso, essa via real é reforçada pela apren-
dizagem dos não normaliens14 nos laboratórios e/ou em associação aos
mestres da Sorbonne. As duas leiras constituem um espaço de homo-
geneização que compensa a maior heterogeneidade de origem social dos
aspirantes sorbonnards quando comparados aos ordinarien berlinenses.
Socializados no interior de famílias em sua maioria ligadas ao Estado ou
à Universidade, a elite dos professores alemães pode ter origens locais
ou lugares de formação mais diversos em nome dos Lern – e Lehrfrei-
heit humboldtianos, destinados de maneira explicita à “boa sociedade”.
14 Ex-alunos da École normale supérieure (N.T.).
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A homogeneidade do meio universitário alemão é assegurada por um du-
plo fenômeno de barreiras sociais invisíveis e de uxos cruzados perma-
nentes entre os diversos pontos do sistema, tanto de professores como de
estudantes. Ela autoriza, então, uma maior indeterminação dos percursos
intermediários. Na França, ao contrário, as fortes desigualdades de valor
e função das faculdades centrais e periféricas, assim como a existência de
caminhos mais rápidos de promoção intelectual, balizam percursos quase
obrigatórios de mobilidade.
Essas práticas eletivas iniciais induzem relações psicológicas com
a carreira fortemente contrastadas, salvo quando o meio de origem na
França se aproxima sensivelmente do meio dominante na Alemanha: vo-
cação e autoformação (Bildung) na Alemanha, espírito de competição e
de conformidade na França, o que induz aos concursos sucessivos. A mi-
noria atípica que escapa disso na França, se se aproxima do tipo-ideal ale-
mão (aristocratismo ao menos), não pode esquecer a posição dominante
ocupada pelos professores dotados de atributos adequados aos valores
centrais do sistema francês.
Tabela 6 – Lugar de estudos superiores dos professores
parisienses e berlinenses (% na coluna)
Estudos superiores em Berlim Letras Ciências
1879–1908 48,1 65,7
1909–1930 68,4 35
Conjunto do período 58,5 49,3
Estudos superiores em Paris
1879–1908 94,6 88,6
1909–1929 82,8 85,7
1930–1939 85,3 96,7
Fonte: Elaborada pelo autor.
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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Tabela 7 – Tipologia das localidades de nascimento
dos professores parisienses e berlinenses
(% na coluna)
Tipo de cidade de
nascimento Berlim
Antes de 1909 1909 ou depois
Letras Ciências Letras Ciências
Berlim 3,7 8,6 14 10
Outra capital* - 2,8 8,8 10
Cidade universitária 24 34,3 8,8 17,5
Outra cidade 44,4 31,5 42,1 40
Interior ou cidade
mercantil 27,8 22,8 26,3 22,5
Paris
Antes de 1909 1909 ou depois
Letras Ciências Letras Ciências
Paris 33,3 36,3 17,7 22,5
Cidade universitária 10,5 15,9 16,8 14
Cidade sede de
administração
(Préfecture)
14 13,6 21,5 11,2
Oura cidade 26,3 20,4 21,5 28,1
Interior ou cidade
mercantil 15,7 20,4 21,5 28,1
Nota: * Viena, São Petesburgo.
O reconhecimento e a ascensão
Duas lógicas de promoção: remuneração
Como todos os indicadores precedentes àquele das remunerações
pode ser tomado como um índice de posição no interior das elites. Em
termos de médias e de diferenças hierárquicas (entre o início e o nal da
carreira, ou entre as universidades de início ou de nal da vida), os univer-
sitários franceses e alemães, se colocamos a parte por um instante a questão
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
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dos adicionais anexos à remuneração, situam-se em níveis muito similares,
com uma pequena vantagem da Sorbonne sobre os professores berlinenses
“médios”, na medida em que as obrigações de serviço são mais leves em
Paris. Os protestos persistentes na França, principalmente nos anos 1900,
têm conotação distinta daqueles na Alemanha, onde o debate refere-se so-
bretudo à repartição dos adicionais.
Tabela 8 – Escala das remunerações na França e
na Prússia em torno de 1900 (em francos da época)
Universidade Início da carreira Máximo
Paris 12.000 15.000
França, província 6.000 12.000
Berlim 8.980 + adicionais 11.930 + adicionais
Prússia, província 5.160 + adicionais 8.100 + adicionais
Fontes: Bornecque (1911, p. 296–331, tabela p. 314).
Nota: Os números precedentes representam o total bruto em francos, sem os
adicionais anexos diversos, algumas vezes muito importantes na Alemanha.
Devemos ver, então, a expressão de um descompasso nas remune-
rações francesas, mesmo revalorizadas em relação à hierarquia geral dos
rendimentos dos funcionários superiores? A comparação das pirâmides da
remuneração média e superior na Prússia e na França nos anos 1890–1910
indica que não é o caso (Tabelas 9 e 10).
A diferença das remunerações dos professores de Berlim se situa um
pouco acima dos vortragende Räte (equivalente aos chefes de divisão fran-
ceses), e representa mais que o dobro da remuneração dos professores do
secundário.
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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Tabela 9 – Situação dos professores universitários prussianos na
hierarquia dos salários dos funcionários da Prússia (em marcos
correntes e equivalentes em francos da época)
Categoria 1890 1910
Ministro 36.000 M (45.000 F) 36.000 M
Sub secretário de Estado 15.000 M (+ 1.500 de auxílio
moradia) (18.750 F)
20.000 M (+ 2.100 de auxílio
moradia)
Diretor 15.000 M (+ 1.500 de auxílio
moradia) (18.750 F) 14.000 – 17.000 M (+ 2.100)
Vortragende Räte 7.500 – 9.900 M (+ 1.200)
(9.375 – 12.375 F)
7.000 – 11.500 M (+ 1.680) (8.750
– 14.375 F)
Professores ordinários de
Berlim, média (1896)* 6.000 (+ 900) (7.400 F) 6.735 – 8.950 M (8.980 – 11.930 F)
Professores ordinários da
Prússia, média (1896)*
4.800 – 5.100 (+ 480 – 660)
(6.000 – 6.375 F) 5.640 – 7.860 M (7.520 – 10.480 F)
Professores do
secundário (Prússia)** 2.700 – 5.100 M 2.933,35 M (Berlim – 1908)
Fontes: Lexis (1897, p. 193)
Notas: *Para a Prússia, trata-se das universidades de Bonn, Breslau, Goettingen, Halle,
Koenigsberg (primeiro índice), de Greifswald, Kiel, Marburg e Munster (segundo índice).
As somas entre parênteses representam as indenizações de alojamento, provavelmente
integradas nas cifras citadas na tabela, fornecidos por Bornecque (1911).** Grade de salários
dos professores de liceu em 1897, ver Titze (1991, p. 351). Outras colunas: Ver Hohorst, Kocka e
Ritter (1978, p. 109-111), e rendimentos médios de um professor do secundário depois da
pesquisa de 1908 do Bureau de statistique impériale (citado em ibid., p. 112–113, 79 casos).
Tabela 10 – Situação dos professores universitários franceses na
hierarquia salarial dos funcionários de médio e alto escalão
(em francos correntes)
Categoria 1898 1908
Diretor de ministério 17.000
Reitor 15.900
Inspetor de f‌inanças 2.000 – 15.000 2.000 – 15.000
Chefe de divisão 12.710
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Categoria 1898 1908
Professor de faculdade – Paris 12.000 – 15.000 12.000 – 15.000
Professor de faculdade – Província 6.000 – 11.000 6.000 – 12.000
Maître de conférences – Paris 6.000 – 10.000
Chefe de repartição 7.985
Maître de conférences – Interior 4.500 – 5.500 4.500 – 5.500
Professor agrégé15 – Interior 5.500 – 8.000 5.500 – 8.000
Professor não agrégé – Interior 3.200 – 5.200 3.200 – 5.200
Fontes: 1898 – Recueil des règlements relatifs à l’enseigement secondaire, Paris, Imprimerie nationale,
1900, p. 114 et ss.; Statistique de l’enseigement supérieur 1898, Paris, Imprimerie nationale, 1899;
fonctionnaires – remunerações médias da categoria estabelecidos por Turquan (1899, p. 33); 1908:
Revue internationale de l’enseigement, tome 55, 1908, p. 520–521 (professores do secundário), tome
56, 1908, p. 143–146 (ensino superior), de acordo com o relatório da comissão extraparlamentar.
Do lado francês, o nível máximo esperado é inferior àquele dos funcio-
nários de alto escalão, como no caso de Berlim: os diretores de ministério re-
cebem, em média, 17.000 francos, os reitores ultrapassam claramente o má-
ximo de remuneração de primeira classe com 15.900 francos, o que explica a
atração para essas funções na província. Em contrapartida, os professores da
Sorbonne de primeira classe equiparam-se aos inspetores gerais de nanças
(15.000 francos), e ultrapassam os chefes de divisão, mas eles formam uma pe-
quena minoria do corpo, enquanto que todo inspetor de nanças pode tornar-
se inspetor geral. Entretanto, é bem mais interessante a comparação com
o início da carreira: os maîtres de conférences15 do interior estão distantes
(diferentemente dos professores alemães) dos professores do secundário
parisiense, de onde advém, em alguns casos, a preferência por um cargo em
um liceu da capital ao invés de uma carreira inicial nas pequenas faculdades16.
Contudo, a diferença das remunerações citadas não apresenta toda
complexidade da situação relativa das diversas categorias. Na verdade, na
universidade alemã menos importante é realmente possível ultrapassar
15 Professores pesquisadores concursados que compõem um dos escalões do corpo professoral na França. No
século XIX, a designação referia-se mais especif‌icamente àqueles que ministravam cursos em pequenos grupos.
16 Se acrescentássemos, para f‌ins de comparação, os salários de um grande estabelecimento de pesquisa como
a EPHE, inferiores aqueles dos cargos universitários no interior, a manutenção da concorrência secundário/
superior seria ainda mais evidente.
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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o nível médio graças aos honorários dos estudantes ou a negociação que
antecede a nomeação17, situação impossível na França. Assim, em Goettin-
gen, em 1896, oito professores da faculdade de losoa recebem mais de
7.000 marcos, subclassicando, portanto, dezesseis berlinenses homólogos
que não ultrapassam 6.700 marcos; nove professores de Bonn e dois de Halle
estão no mesmo caso, para nos limitarmos ao reino da Prússia18. Se acrescen-
tarmos os honorários dos cursos pagos, alguns professores “provincianos
não tem nada a invejar os berlinenses: três professores em Bonn recebem
por esses cursos, quase tanto quanto suas remunerações principais (5.000
marcos ou mais), quatro estão na mesma situação em Breslau, dois em Halle,
quatro em Marburg, etc.19. Na medida em que a vida é menos cara nessas
cidades, em termos de poder de compra, alguns não têm interesse em deixar
as universidades menos importantes. Uma descrição do modo de vida dos
professores de Bonn, realizada por Edmond Dreyfus-Brisach conrma esse
veredito subjacente. “A maior parte dos professores que visitei me parece-
ram muito confortáveis; muitos entre eles moravam nos melhores bairros
da cidade, possuiam belas casas na Coblenzstrasse, na Poppelsdorferallee e na
Meckenheimerstrasse.” (DREYFUS-BRISACH, 1879, p. 86–87).
Além disso, a diversidade interna dos ganhos dos professores de Ber-
lim é mal traduzida pela diferença ou as médias citadas. Em 1896, entre
44 professores oridinários da faculdade de losoa, sete ganhavam menos
de 5.800 marcos, vinte oito entre 6.000 e 8.500 marcos, e oito mais que
9.000 marcos20. A diferença com os professores extraordinários é ainda
mais sensível: em Berlim, quatro ganham menos de 2.000 marcos, doze
entre 2.000 e 2.800, e dez entre 3.000 e 3.60021. Os mais bem pagos não
17 Para um exemplo dessa negociação que leva a ultrapassar o nível máximo autorizado pelo Ministério das
Finanças, ver o caso excepcional de Wilamowitz quando convidado para ir a Berlin: ele recebe (em 1896)
15.000 marcos, enquanto que o máximo autorizado é de 12.000; é o Imperador que paga a diferença de seus
cofres (CALDER; KOSENINA, 1989, p. 121, nota 502).
18 Os professores podem interferir na concorrência entre estados que tem quadros salariais diferenciados: em
Saxe, por exemplo, existe apenas uma classe de remuneração, mas ela é superior à remuneração inicial em
outros estados: 6.000 a 12.000 marcos, enquanto em Berlin os professores começam com 4.800 marcos (LEXIS,
1897, p. 194).
19 Ibid., p. 196.
20 Ibid., p. 194.
21 Ibid., p. 195.
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alcançam o salário básico dos professores ordinários, diferentemente daquilo
que se constata na França, onde há uma sobreposição parcial entre os escalões
salariais das diversas categorias. Em 1908, como mostra a Tabela 10, os maîtres
de conférences recebem entre 4.500 e 5.500 francos por ano no interior, e entre
6.000 e 10.000 francos em Paris; os professores, segundo a classe, entre 6.000
e 12.000 francos no interior, e entre 12 e 15.000 francos em Paris.
Precisamente, tanto em Paris como na Alemanha, a base dos debates
principais sobre as questões salariais é a extrema desigualdade da distribui-
ção entre as classes na França, e entre os níveis de remuneração na Prússia.
Em 1908, o relatório da comissão extraparlamentar sobre a reorganização
da progressão no ensino superior estabelece que no interior, oito professo-
res sobre dez sejam reagrupados nas classes inferiores (112 sobre 137 em
ciências, 116 sobre 141 em letras, 108 sobre 134 em medicina, 132 sobre
161 em direito) e recebam no máximo 8.000 francos. Os três quartos dos
professores das faculdades de losoa na Prússia estão em uma situação
idêntica. O relator da comissão propôe, na França, reduzir essa proporção
institucionalizada para 7 sobre 1022.
Por meio dessa comparação, pode-se concluir, portanto, que os protes-
tos dos universitários franceses referem-se menos aos níveis absolutos das
remunerações, comparáveis aos níveis alemães, ou a posição na hierarquia
geral da função pública, igualmente análoga, do que a um sentimento de in-
justiça e de descompasso entre a imagem que fazem de si e o novo ideal con-
tido no processo de reforma. O sentimento de injustiça advém da diferença
estrutural entre Paris e o interior, e da desproporção entre as altas e as baixas
remunerações. Sem acesso às instituições parisienses, tem-se pouca chance de
alcançar o máximo possível, pois a rigidez do sistema de cátedras e de classes
conduz a uma progressão muito lenta tanto no interior quanto em Paris23.
22 O relatório geral da comissão extraparlamentar citado na Revue internationale de l’enseignement, tomo 56, 1908,
p. 61. Na Prússia, a mesma redução das desigualdades está em debate na época e resulta, em 1909, em uma equi-
paração dos direitos honorários pagos pelos estudantes a f‌im de benef‌iciar os professores mais mal pagos e aqueles
com rendimentos adicionais mais baixos (BORNECQUE, 1911, p. 312). As disposições sobre os adicionais variam
de acordo com os estados, se bem que, também nesse caso, os professores podem inf‌luenciar na concorrência.
23 O reajuste dos anos 1920, para cobrir a inf‌lação da guerra, não modif‌icará esse estado das coisas: o máximo
possível para um professor titular de Paris é f‌ixado, em 1 de janeiro de 1923, em 28.000 francos, enquanto
um professor do interior é limitado a 25.000 francos (Revue internationale de l’enseignement, 1921, tomo 75,
p. 390–392).
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
46 21 – 61
Não é necessário, portanto, idealizar o modelo alemão de retribuição que
repousa – não devemos esquecer – sobre uma extrema injustiça de base entre
os professores ordinários e os professores extraordinários ou privat-docenten.
A justicativa para essa dissimetria é a de estabelecer uma retribuição que in-
centive o avanço da ciência e o avanço pessoal, enquanto que a hierarquia
funcional à la française tem tendência a produzir uma conformidade, os ren-
dimentos ligados à posição e a prioridade da antiguidade sobre o talento.
Na Alemanha, igualmente, os professores ordinários que possuem, pela habili-
tação e pela cooptação, o poder de legitimação dos outros tendem a favorecer o
conformismo intelectual e a marginalizar de modo crescente as novas discipli-
nas e as jovens gerações que tem cada vez menos expectativas de ver sua posição
melhorar, em decorrência do aumento do número de candidatos. O resulta-
do disso é uma tensão interna crescente que se exprime no movimento dos
“nichtordinarien antes de 1914. Apesar de sua mobilização, somente chega a
resultados positivos com a reorganização por iniciativa do poder político, pos-
terior a guerra (MULLER, 1991). Na França, as tensões também aumentam
nos períodos de conjuntura universitária medíocre, na qual o tempo de pro-
moção se alonga mais, antes de 1968, sem explosão maior por conta de uma
escala continua de estágios, e sem as diferenças de casta que separam, como na
Alemanha, as diversas categorias. Se as tensões políticas externas puderam en-
contrar terreno favorável no interior das universidades alemãs nos anos 1930,
foi em razão desse fenômeno das diferenças sociais internas, produtoras de
ressentimentos e de ajustes de conta em período de crise. O mesmo processo
de ruptura de consenso se encontra na França, precisamente quando se multi-
plicam grupos diversos e com diferentes perspectivas de futuro24.
Na Prússia, os projetos de reforma do início do século XX terminaram
por reduzir essa individualização dos rendimentos prossionais tanto pelo
princípio da antiguidade quanto pelo limite máximo dos honorários e a
adoção de um mecanismo redistributivo. A segunda geração sente, então,
essa retração mais severamente, a qual se adicionam todos os problemas
nanceiros nascidos das desregulamentações monetárias dos anos 1920 e a
lentidão das carreiras, como vamos ver.
24 Cf. Titze (1990, 1991); Chroust (1993, pp. 61-112) Schwabe (1984).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 38 - Jan./Abr. de 2018
4721 – 61
As etapas da ascensão
Para instaurar na França alguns princípios de funcionamento do mo-
delo alemão de universidade, os reformadores universitários estavam cons-
cientes de que duas transformações seriam necessárias. Em primeiro lugar,
seria necessário reequilibrar, no interior do sistema, o peso respectivo de
Paris e do interior, com o objetivo de garantir um movimento professoral
entre as universidades e não somente entre o centro e a periferia. Em se-
gundo lugar, o mecanismo de promoção deveria levar em consideração as
capacidades de inovação intelectual possibilitadas pela criação de um vivier
de jovens professores liberados dos constrangimentos do ensino secundário
e podendo acessar mais cedo as posições de não titulares no ensino superior
e na pesquisa: maîtres de conférences, chargés de cours25, préparateurs26, chefs
de travaux et de laboratoire27, directeurs d’études28 de l’EPHE, etc.
A comparação dos tipos de cargos ocupados, no início da carreira
pelos futuros professores da Sorbonne permite determinar se essas ino-
vações preencheram sua função de aproximação com o modelo dos
privat-docenten alemães. Com relação a isso, e não é algo muito surpreen-
dente, as faculdades cientícas estão muito mais avançadas que as faculdades
literárias. Para os professores destas últimas, a passagem pelo ensino secun-
dário, mesmo para os professores nomeados para a Faculdade de Letras de
Paris entre 1909 e 1939, permanece majoritária. Ao contrário, em ciências,
desde a primeira geração e cada vez mais para a segunda, a divergência en-
tre as carreiras voltadas para o ensino superior e aquelas direcionadas para
o secundário se consolida. A existência de uma mobilidade muito mais sig-
nicativa dos cargos de espera (préparateurs, chefs de travaux, directeurs de
laboratoire, chargés de cours), hierarquicamente inferiores e seguidamente
menor remunerados que as cátedras de liceu, mas estatutariamente ligados
às faculdades ou às instituições de pesquisa explica esta diferenciação pro-
funda dos dois pers de carreira segundo os grupos disciplinares.
25 Cargo temporário e vinculado estritamente ao ensino (N.T).
26 Normalmente vinculado a uma disciplina ou laboratório, é encarregado da preparação de atividades práticas
mais elementares (N.T).
27 Assistente encarregado de funções pedagógicas ou técnicas, subordinado aos chefes de estabelecimento de
ensino ou de laboratório (N.T).
28 Professores pesquisadores vinculados a instituições de pesquisa e responsáveis pelo oferecimento de seminá-
rios (N.T).
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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Tabela 11 – Localização dos primeiros cargos ocupados
pelos professores da Sorbonne (letras e ciências)
de acordo com o período de nomeação
Secundário Pesquisa
em Paris
Superior
em Paris
Superior no
interior Outro
Letras
Antes de 1909 74,1 5,1 1, 7 12 6,9
1909–1939 75,7 1,8 2,9 17,7 1,8
Ciências
Antes de 1909 27,2 36,3 9 22,7 4,5
1909–1939 21,3 40 4 29,3 5,3
Fonte: Elaborada pelo autor.
É necessário, contudo, relativizar essa diferença. De fato, se consi-
derarmos não apenas o primeiro cargo, mas também o cargo seguinte,
evidencia-se que aqueles que ambicionam chegar ao topo da pirâmide uni-
versitária perceberam bastante rápido, mesmo em letras, que é necessário
romper o antigo cordão umbilical com os liceus. Como segunda opção, os
futuros professores da Sorbonne, primeiramente nomeados em um liceu de
província, optaram, quase todos, no momento de mudança, pelo secun-
dário em Paris, o que lhes permite ao menos trabalhar comodamente em
suas teses nas bibliotecas parisienses e se encontrar com seus mestres. Caso
já sejam doutores, frequentemente ocupam um cargo no ensino superior
no interior ou em Paris, ou encontraram, como seus homólogos cientistas,
uma posição de espera de não titular.
Os tempos de espera para acessar as posições mais favoráveis, em uma
perspectiva de carreira longa no superior, são evidentemente mais signi-
cativos para os literatos do que para os cientícos: nesta geração, são ne-
cessários, em média, 5,2 anos para sair do secundário no interior, para o
secundário parisiense são 9,4 anos, e para o superior no interior, 12 anos.
Em ciências, para 75 professores nomeados na Sorbonne depois de 1909,
47 integraram, desde a conclusão de seus estudos, um cargo de ensino
superior ou de pesquisa; os outros 28 esperaram não mais que uma mé-
dia de 5,6 anos, às vezes com algumas interrupções, para ocupar cargos
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temporários de pesquisa. Os estágios mais longos que o normal no secun-
dário se explicam, em geral, pela negação em sair de Paris ou por handicaps
sociais especícos (origem modesta, rural ou encargos familiares).
A transformação mais interessante entre as duas gerações consideradas
reside na modicação das vias mais frequentes, o que marca a extensão na-
cional do campo universitário. Para a primeira geração, o a carreira típica de
um futuro professor da Faculdade de Letras de Paris evitava o ensino supe-
rior no interior, mal pago e mal considerado. O vivier dos futuros eleitos era
composto dos professores das classes superiores dos liceus parisienses, dos
maîtres de conférences da École normale supérieure e dos maîtres de conférences
da Sorbonne, cargos obtidos depois de um estágio mais ou menos longo no
secundário do interior. Ao contrário, os professores da Faculdade de Letras
de Paris nomeados depois de 1909, realizam percursos cada vez mais com-
plexos: do secundário no interior ao superior no interior e ao superior em
Paris; do secundário no interior ao secundário em Paris, depois do superior
no interior antes do acesso à faculdade de letras, ou enm, do secundário em
Paris ao superior no interior, antes de ingressar na Sorbonne. No primeiro
período, as redes estavam concentradas em Paris, considerando todos os ti-
pos de ensino. Para as gerações posteriores, a Sorbonne é o ponto de chegada
das redes que a conectam ao ensino superior no interior. Entretanto, as chan-
ces de acesso ao topo são muito desiguais, variando de acordo com a cidade
da universidade de início da carreira. Como vimos, disso derivam os debates
a propósito das remunerações, do antagonismo Paris/interior e, também,
daquele entre as grandes e pequenas universidades29.
Em ciências, a mobilidade e a complicação dos percursos são menores
em decorrência da diversicação das posições internas a cada faculdade.
29 O fracasso de todas as proposições para “especializar” as universidades do interior ou hierarquiza-las se expli-
ca, certamente, pelas pressões políticas ef‌icazes dos parlamentares locais, mas também pela recusa dos pro-
fessores que tiveram o azar de iniciar nas pequenas universidades de ter suas possibilidades bloqueadas caso
a especialidade que pratica deixe de existir (em ciências), ou seja muito próxima do secundário (em letras). O
debate teve espaço várias vezes na Revue internationale de l’enseignement: cf. Clédat (1908, p. 122–123), e
as respostas em “Enquête sur la spécialisation des facultés des lettres” (Revue internationale de l’enseignement,
1908, p. 340–346 e 416–424 ; 1909, p. 77-82, 148-161, 238-249 e 363-380). O tema é retomado após a guerra
por Audollent (1926, p. 129-136). São sempre os professores das pequenas universidades, como de Caen e de
Clermont, que são mais reservados, opondo-se aqueles das grandes universidades do Sul, como Bordeaux e
Toulouse, que sofrem menos a concorrência parisiense.
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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Para aqueles que tiveram a chance, desde o início, de se beneciar de posi-
ções de espera em um estabelecimento superior parisiense, o ponto de blo-
queio se situa no nível dos chefes de trabalhos ou de maîtres de conférences.
Ao sair do primeiro posto, é fundamental para estes futuros professores do
ensino superior30 ou ser promovido para uma posição em um estrato inter-
mediário, ou aceitar um deslocamento para o ensino superior do interior,
antes do retorno para Paris como maître de conférences, chargé de cours ou,
raramente, diretamente como professor.
O circuito delineado não impede que permaneça, mesmo entre os fu-
turos professores da Faculdade de Ciências de Paris, um grupo minoritário
obrigado a ensinar no secundário durante algum tempo, e para os quais
a aprendizagem da pesquisa é mais difícil do que para seus colegas. Ex-
cluindo os casos de conveniência pessoal31, esse tipo de percurso se explica,
essencialmente, pelas desvantagens sociais. Nas duas gerações, a maioria
dentre eles provém de meios menos favorecidos: suas famílias pertencem
a pequena burguesia, ou a um meio de classe média sem herança cultural.
Seus recursos familiares (nanceiros, mas também em termos de cultura e
de ambição social) são mais limitados, o que faz com que esses universitá-
rios preram ocupar os cargos com maior segurança nanceira do secun-
dário, do que as funções de pesquisa mal pagas. Outra interpretação social
complementar é possível: vivendo seu acesso ao cargo de professor de liceu
já como uma promoção, não concebem, não imediatamente, a necessidade
de adquirir, trabalhando em um laboratório, os títulos necessários para
o ensino superior, horizonte social que eles vislumbram somente em um
segundo momento, constatando, por exemplo, o sucesso de seus contem-
porâneos ou a abertura de novos cargos.
Deixando de lado a clivagem social interna e analisando globalmen-
te, a rota em direção ao topo deixa menos espaço para o acaso do que nas
letras, como demonstram as idades de acesso comparadas ao ensino su-
perior segundo as faculdades (Tabela 12 A). Em ciências, chegar ao topo
30 Uma parte desses cientistas aprendizes pode, igualmente, renunciar a essa carreira por cargos na indústria,
mas, por def‌inição, isso nos escapa.
31 Estão incluídos nesta rubrica os casos de encargos familiares precoces, o que impede de se contentar com as
remunerações menores de preparador, ou a necessidade de permanecer próximo de um familiar em uma região
específ‌ica ou em Paris.
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da pirâmide hierárquica supõe uma entrada no ensino superior majori-
tariamente antes dos 30 anos. Isso é muito menos signicativo em letras,
onde tanto na primeira geração como na segunda, constata-se uma re-
partição quase igual entre as duas principais faixas etárias (25–29 anos,
e 30–35 anos).
A menor prossionalização das carreiras literárias que se evidencia na
diversidade relativa dos tipos de instituições de entrada e na lentidão global
do percurso é ainda mais evidente quando comparada com a situação dos
futuros professores de Berlim. Ao contrário da situação francesa, em letras
e nas ciências, esses estão, em sua maioria, ocupando cargos no ensino
superior desde antes dos 30 anos, graças ao sistema de privat-docenten.
As entradas mais tardias existem também, mas menos frequentemente que
na França, salvo no primeiro período, no qual antigos professores do se-
cundário ainda entram tardiamente no ensino superior.
No total, portanto, as carreiras cientícas francesas realizadas em Paris
estão fundadas no modo de organização alemão de ruptura com o liceu,
enquanto que as carreiras literárias não conseguiram a mesma façanha,
como assinala a diferença entre as disciplinas literárias nas duas universi-
dades comparadas.
Tabela 12 A – Repartição de idades de acesso ao ensino superior
dos professores da Faculdade de Letras e dos professores da
Faculdade de Ciências de Paris (% na linha)
Letras 25 – 29 anos 30 – 35 anos 35 anos
Antes de 1909 10,3 36,2 31 22,4
1909 ou depois 5,6 26,1 35,5 4,7
Ciências
Antes de 1909 45,4 22,7 27,2 4,5
1909 ou depois 36 44 13,3 6,6
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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Tabela 12 B – Repartição das idades de acesso ao ensino superior
dos professores da Faculdade de Filosof‌ia (letras e ciencias)
de Berlim (% na linha)
Letras 25–29 anos 30–35 anos > 35 anos
Antes de 1909 20,7 45,3 22,6 11,3
1909 ou depois 1,8 58,2 30,9 9
Ciências
Antes de 1909 22,8 48,5 17,1 11,4
1909 ou depois 7, 5 57,5 25 10
Por sua vinculação ao ensino secundário clássico e ao princípio
de promoção social contido na manutenção da continuidade entre o
secundário e o superior, os professores de letras sofreram, portanto,
um adiamento global de profissionalização diante da Alemanha ou
das ciências.
Para os membros da amostra estudada, a estrutura diferenciada de
acordo com as disciplinas explica, principalmente em letras, a impor-
tância da situação geográca dos cargos ocupados antes do parisiense
ambicionado. Além disso, tanto em ciências como em letras, as redes
mais ou menos constantes indicam que a descentralização desejada pelos
reformadores fracassou globalmente. Longe de ter diminuído, o papel
dominante da elite parisiense foi reforçado pelos novos percursos no in-
terior das faculdades.
O fracasso da descentralização
O fracasso da descentralização aparece claramente quando apresen-
tamos a tabela do último cargo ocupado no momento da eleição a uma
cátedra parisiense.
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Tabela 13 – Localização do último cargo ocupado
antes da nomeação como professor titular em Paris
Sorbonne
Ensino superior –
Paris
Ensino secundário
– Paris
Pesquisa – Paris
Interior –
Estrangeiro
Outro*
N
Letras
Antes de
1909 78,5 12,5 1, 7 1, 7 1,7 3,5 56
1909 ou
depois 94,2 - - - 4,8 0,9 105
Ciências
Antes de
1909 75 18,1 - 2,3 4,5 - 44
1909 ou
depois 77,3 9,3 - 2,3 8 - 75
Notas: * Cargos administrativos (diretor no ministério da Instrução Pública).
N.B.: Foram considerados apenas os membros da amostra que possuíam
uma carreira completa até o posto de professor titular a título pessoal.
Cada vez mais frequentemente, tanto em ciências como em letras,
somente chegam ao topo da hierarquia universitária os professores pre-
viamente pertencentes às posições inferiores do corpo professoral da
Sorbonne, ou aqueles que ocupam cargos imediatamente próximos (Tabela
13): instituições de pesquisa como a EPHE, estabelecimentos de ensino
superior como a École Normale Supérieure, aos quais podemos adicionar,
em ciências, o Muséum e a Faculdade de Medicina de Paris.
A passagem direta de uma cátedra provincial a uma cátedra pari-
siense tende a ser excepcional e resultado de circunstâncias particulares.
No polo cientíco, a situação é quase caricatural: entre 1879 e 1908, o úni-
co professor eleito, proveniente de uma faculdade provincial e sem passa-
gem por outra instituição em Paris é Albin Haller, titular em Nancy, suces-
sor de Charles Friedel em 1899. Depois de 1909, uma pequena abertura
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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se produz com oito professores do interior que tiveram passagem direta.
Em três casos, tratou-se da criação de uma cátedra sobre medida em ciên-
cia aplicada, para a qual não existia especialista local para promover: Lu-
cien Marchis é nomeado para a cátedra de aviação fundada pelo mecenato
de Basil Zaharo em 1909, depois de ensinar na Faculdade de Ciências de
Bordeaux por 13 anos; Alphonse Mailhe, professor na Faculdade de Ciên-
cias de Toulouse, onde fez toda sua carreira, tornou-se o primeiro titular
da cátedra de química de combustíveis criada pela cidade de Paris e a So-
ciedade de Gás de Paris em 1926; ele ocupou ao mesmo tempo a chea de
pesquisas químicas dessa sociedade. Gustave Ribaud, professor em Stras-
bourg desde 1919, beneciou-se, em física, da mesma generosidade com
sua nomeação para a cátedra de altas temperaturas, fundada igualmente
pela Sociedade de Gás de Paris.
O recrutamento à dominante interne para o topo é acompanhado por
uma contrapartida lógica, o fenômeno da la de espera. Ele aparece por meio
da elevação da idade de titulatização entre os dois períodos denidos, tanto
no que concerne a idade média quanto às faixas etárias. Tornava-se, assim,
necessário equiparar essa espera, sobretudo no segundo período, quando a
perenizarão de uma geração que chegou jovem, contemporânea das refor-
mas, e a desigualdade entre as disciplinas agrava o fenômeno em função
de acidentes biológicos e das especicidades das pirâmides hierárquicas dos
diferentes domínios. Duas soluções foram encontradas: as titularizações ad
hominem e a transformação das cátedras por causa da disciplina de origem
daquele que tem possibilidade de impor os títulos mais antigos e mais va-
lorizados. As duas soluções à rigidez proveniente do centralismo excessivo,
entretanto, apenas esvaziam a reivindicação de uma promoção ancorada uni-
camente em critérios intelectuais, principalmente para o topo32.
32 Sobre o caso da história no período entre guerras, Dumoulin (1984, p. 84–103) evidenciou os bloqueios aos quais
conduzem esses procedimentos automáticos, frutos de arbitragens científ‌icas entre comissões de especialistas.
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Tabela 14 A – Repartição de idades de acesso ao cargo de professor
ordinário em Berlim (disciplinas literárias e científ‌icas)
Letras 36 – 45 anos 46 – 51 anos > 51 anos N
Antes de 1909 12,9 42,6 18,5 25,9 54
1909–1939 3,5 19,6 19,6 5 7,1 57
Ciências
Antes de 1909 5,7 40 40 14,2 35
1909–1939 7,7 38,4 23 30,7 40
Tabela 14 B – Repartição de idades de acesso ao cargo de professor
titular na Faculdade de Letras e na Faculdade de Ciências de Paris
Letras 36 – 45 anos 46 – 51 anos > 51 anos N
Antes de 1909 1,8 32,1 33,9 32,1 56
1909–1939 - 5,6 29,2 65 106
Ciências
Antes de 1909 21,9 48,7 19,5 9,8 41
1909–1939 4 17,3 32 46,6 75
A comparação Paris-Berlim é, sobre esse ponto, esclarecedora. A de-
limitação das vias de acesso do sistema francês estabelece um processo de
envelhecimento do corpo dos professores titulares e, sobretudo, um rea-
grupamento das idades de nomeação em uma distribuição cada vez mais
estreita. Por conta das numerosas criações de cátedras, mais de um terço
em letras, e a maioria dos professores em ciências, os membros da primeira
geração tornam-se titulares antes dos quarenta e seis anos (mais do que a
quinta parte, para esses últimos, sendo eleitos antes mesmo dos 35 anos),
ao passo que a situação se degrada signicativamente depois de 1909. Ser
cinquentenário torna-se a regra e a condição necessária, senão suciente,
para ser cooptado para o topo, para a maioria dos professores em letras, e
para quase a metade dos professores em ciências.
Em Berlim, constata-se igualmente uma elevação da idade de aces-
so ao cargo de professor ordinário por conta do desequilíbrio crescente
entre o número de cátedras berlinenses e provinciais, e pela extensão da
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
56 21 – 61
população dos candidatos potenciais, anteriormente referida. No entan-
to, a maior arbitrariedade e exibilidade dos percursos permitem ainda
carreiras desviantes com relação ao perl médio, fenômeno excepcional
em Paris, exceto em alguns grandes estabelecimentos, não analisados aqui,
como o Collège de France33.
Aquilo que o exame das etapas de carreira já havia indicado, o alon-
gamento da espera e a complexidade crescente das vias de acesso, é, por-
tanto, reforçado pela análise da etapa nal da carreira. O fechamento do
grupo de professores da Sorbonne sobre si mesmo, longe de aproximar as
carreiras universitárias do ideal alemão, dá um poder crescente aos tropis-
mos centralizadores franceses. As especicidades individuais são cada vez
menos consideradas para determinar o sucesso nal. Esse julgamento pode
parecer excessivo, ou poderíamos lhe opor certo número de exceções que
escapam a essas regras. No entanto, longe de invalidá-lo, elas acentuam
ainda mais as pesadas tendências do sistema francês na medida em que
repousam sobre pers atípicos.
Considerações f‌inais
As três questões iniciais postas na abertura deste artigo podem ago-
ra receber uma resposta mais precisa. As reformas universitárias, longe de
aproximar o status social dos universitários franceses e alemães, manti-
veram ou mesmo ampliaram a diferença na medida em que a abertura
do recrutamento na França contrasta com o aburguesamento crescente na
Alemanha. Membros de uma casta fechada sobre si mesma, apesar das
transformações gerais do ensino superior, os professores ordinários ber-
linenses, produtos de uma antiga sociedade de elites cooptadas, acolhem
cada vez menos as demandas tanto dos professores não titulares, quanto
dos estudantes de origens mais diversicadas que anteriormente. Mem-
bros de um grupo aberto à mobilidade social, os professores da Sorbon-
ne mantêm, ao contrário, em seus escalões uma minoria ativa suscetível
a permanecer receptiva ao ideal do intelectual democrático, mesmo se o
33 Cf. C. Charle (1986, p. 389-424; 1988, p. 16): entre 1901 e 1939, 28,3% dos professores foram nomeados antes
dos 45 anos, a porcentagem correspondente depois de 1909 sendo 5,6% para a Faculdade de Letras e 21,3%
para a Faculdade de Ciências.
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envelhecimento do corpo possa fazer surgir tensões conservadoras recor-
rentes e incompreensões diante dos estudantes mais impacientes que em
tempos anteriores a experiência da guerra. Do ponto de vista do funcio-
namento do sistema universitário, não existe mais, apesar das transferên-
cias de experiências estrangeiras e das convergências de funções sociais das
universidades no período entre-guerras, uma aproximação signicativa: a
lógica igualitária, centralizadora e gerontocrática é dominante na França,
diante de uma lógica aristocrática, decentralizada e menos prisioneira dos
critérios formais na Alemanha. As tensões nascidas da exclusão daqueles
que não se adequam a essas lógicas são igualmente diferentes. Na França,
elas são primeiramente geográcas e, em segundo lugar, geracionais, mas
atenuadas pela reorganização dos titulares intermediários. Na Alemanha,
elas são ao mesmo tempo sociais e geracionais, sem que as recomposições,
mais tardias, possam responder a grande impaciência dos excluídos de-
nitivamente. O consentimento com o nazismo de uma maioria dos pro-
fessores e o contágio precoce das organizações estudantis, assim como os
acertos de contas posteriores a tomada do poder se explicam por essas duas
tensões contraditórias. Para os primeiros, o novo regime vai reestabelecer
a autoridade antiga perturbada pelo regime de Weimar, para os segundos,
ele vai abrir uma brecha igualitária nos privilégios de casta, e liberar cargos
ao perseguir as minorias. Os dois cálculos foram frustrados pelos eventos
posteriores, mas mostram a profundidade da crise de identidade de um
modelo universitário em descompasso com a sociedade.
A comparação tentada de alguns grandes indicadores denindo os
pers comparados dos professores de duas universidades centrais permite,
assim, compreender a partir de dentro a lógica e a evolução dos sistemas
universitários dos quais elas são o produto. Além disso, ela informa tam-
bém sobre a estruturação das elites nos dois países e sobre as meritocracias
divergentes que esses professores exemplicam. O método comparativo
tem sido praticado, sobretudo, a partir de grandes agregados estatísticos.
A tentativa feita aqui mostra que a microhistória comparada é igualmen-
te frutífera, e permite, mormente, a vericação permanente dos dados, o
que desautoriza o trabalho de segunda mão sobre as estatísticas elabora-
das por outros. Sem dúvidas, esse método tem a desvantagem de exigir
uma longa coleta prévia dos dados, sendo conveniente, portanto, escolher
Paris/Berlim: ensaio de comparação entre os professores de duas universidades centrais |Christophe Charle
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cuidadosamente a amostra. Encontramos aqui seus limites intrínsecos para
um trabalho realizado individualmente. Somente um grupo de trabalho
poderá realizar uma comparação sobre mais de dois países ou sobre diver-
sos grupos de elite. Trata-se de uma perspectiva de trabalho para o futuro.
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Paris/Berlin: comparative essay between professors of two
central universities
Abstract
This study juxtaposes a survey of professors teaching in the faculties of Arts, humanites and
sciences at the Universities of Paris and Berlin during the same period (1870-1939). It adopts a
comparative prosopography to situate these two groups of university elites within their respective
settings. The analysis brings to light two distinctive meritocratic models and patterns of change
between the university communities through the comparison of changes in the social and
geographic origins of professors as well as their branch of study and career patterns. Despite
France’s centralization and elitist orientation, some social mobility existed, whereas in Germany
decentralization and the absence of formal exam procedures continued to favor the same
dominant groups over this period. Off‌icial attempts to impose the German model in France failed,
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as did the Weimar Republic’s attempts to modernize and democratize the academic profession.
Between the wars, both the heightened tension and dominant social and political orientation of
each group of professors were not, therefore, a product of the period. Rather they ref‌lect the long
term structural specif‌icity of each university model and society. Above and beyond its empirical
conclusions, this article seeks to valorize the heuristic usefulness of combining a comparative
approach with that of social biography for the supranational study of Europe.
Keywords: Paris, Berlin, Comparative prosopography, Professors in humanities and sciences
Recebido em: 27.09.2017
Aprovado em: 11.02.2018

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