'PAREM DE NOS MATAR': A BIONECROPOLÍTICA GENDERIZADA E A PERSISTÊNCIA DE MULHERES INDÍGENAS E NEGRAS NA AMÉFRICA LADINA

AutorFátima Lima, Julia Gambetta
Páginas85-109
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GÊNERO | Niterói | v. 20 | n. 2 | p. 85-109 | 1. sem 2020
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“PAREM DE NOS MATAR”: A BIONECROPOLÍTICA
GENDERIZADA E A PERSISTÊNCIA DE MULHERES INDÍGENAS E
NEGRAS NA AMÉFRICA L ADINA
Fátima Lima1
Julia B. Gambetta2
Resumo: Esta reflexão toma três dispositivos analíticos: (a) o assassinato da
ativista indígena Berta Cáceres, no dia 2 de março de 2016 (Honduras); (b) a
prisão da líder indígena Milagro Sala, em 16 de Janeiro de 2016 (Argentina);
e (c) o assassinato da vereadora e militante Marielle Franco, no dia 14 de
março de 2018 (Brasil), para pensar a constituição de uma bionecropolítica
genderizada que tem nas relações étnico-raciais um elemento central que
produz e legitima o extermínio de mulheres. O objetivo é entender como
diagramas de poder são forjados e operam uma bionecropolítica genderizada
na América Latina.
Palavras-chave: Bionecropolítica; Gênero; América Latina.
Abstract: This paper is grounded on three analytical standpoints: (a) the
murder of indigenous activist Berta Cárceres on March 2nd, 2016 in Honduras,
(b) the imprisonment of the indigenous leader Milagro Salas on January 16th,
2016 in Argentina, and (c) the murder of congresswoman and activist Marielle
Franco on March 14th, 2018 in Brazil. These cases are used to analyze the
forging of a gender-based form of bio-necropolitics in which ethnicity and
race serve as central elements which produce and legitimize the obliteration of
women. Our aim is to understand the power relations which are forged within
and mobilize gendered bio-necropolitical arrangements in L atin America.
Keywords: Bio-necropolitics; Gender; Latin America.
1 Professora associada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de Macaé, Brasil. E-mail:
fatimalima4@gmail.com. Orcid: 0000-0002-9449-2514
2 Professora adjunta nas Faculdades Integradas Maria Thereza, Brasil. E-mail: juliabgambetta@gmail.com.
Orcid: 0000-0001-9578-9937
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Amolando escolhas: elementos epistemo-metodológicos
Flor del Alto Perú/ No hay otro capitán/ Más valiente que
tú/ Oigo tu voz/ Mas allá de Jujuy/ Y tu galope audaz/
DoñaJuana Azurduy/ Me enamora la patria en agraz/ Desvelada
recorro su faz/ El español no pasará/ Con mujeres tendrá que pelear/
[…] Préstame tu fusil/ Que la revolución/ Viene oliendo a jazmín.
Félix Luna, Juana Azurduy3
Na noite de 14 de março de 2018, uma mulher negra, bissexual, de ori-
gem de favela, mãe, vereadora, militante dos direitos humanos, foi brutal-
mente assassinada no bairro Estácio de Sá, na cidade do Rio de Janeiro.
O assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no
começo da noite do dia 14 de março, em uma das maiores cidades do Brasil,
expôs ao mundo a gravidade desse episódio, tornando visíveis as vulnerabili-
dades presentes na vida das mulheres no Brasil e na América Latina, princi-
palmente as que atuam na agenda dos direitos humanos e da justiça étnico-
-racial e de gênero. Marielle Franco havia saído de uma atividade de trabalho
numa organização não governamental voltada para o cuidado de mulheres
negras quando foi brutalmente executada. A partir de então, para toda uma
população e para as mulheres – em especial as negras e as militantes em
diferentes agendas sociais –, dores, incertezas e inseguranças se tornaram
mais contundentes. Marielle Franco tinha 38 anos quando foi assassinada.
Tinha voz forte na luta pelos direitos humanos, mais de vinte projetos apre-
sentados em pouco tempo de mandato na Câmara de Vereadores da cidade
do Riode Janeiro, era uma parlamentar exemplar, com cerca de 46 mil votos.
Até a escrita deste texto, continua a ecoar no Brasil e no mundo: “Quem matou
Marielle?”, “Quem mandou matar Marielle?”. Até agora, dois suspeitos de exe-
cutar o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes – os ex-policiais
militares RonnieLessa (acusado de ser o autor dos disparos) e Élcio de Queiroz
(acusado de dirigir o carro) – estão presos e aguardam julgamento.
3 Letra da canção “Juana Azurduy”, de Félix Luna, música de Ariel Ramírez, cantada por Mercedes Sosa.
Juana Azurday nasceu em 12 de julho de 1870, em Toroca, próximo a Chuquisaca – atual Sucre –, na Bolívia.
De origem indígena, participou ativamente na luta pela independência da América Espanhola. Conhecida
como “Flor do Alto Peru”, morreu em 1862. Seus restos foram exumados cem anos depois de sua morte e
depositados em um mausoléu construído em sua homenagem na cidade de Sucre. Juana Azurduy foi nome-
ada General do Exército Argentino por Cristina Fernández de Kirchner, em 2009, e Marechal do Exército
da Bolívia por Evo Morales, em 2011. Disponível em: https://bit.ly/3gaAxQ4. Acesso em: 31 mar. 2020.

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