O parecer de Hans Kelsen de 1933 sobre a Assembleia Nacional Constituinte do Brasil--Parecer em alemao, espanhol e italiano/ La opinion juridica de Hans Kelsen de 1933 sobre la Asamblea Nacional Constituyente de Brasil. Texto en aleman, espanol e italiano.

AutorLosano, Mario G.
CargoTexto en portugues
  1. A "revolucao de 1930" e o constitucionalismo brasileiro

    A publicacao do texto em alemao, espanhol e italiano do parecer de Hans Kelsen sobre a Assembleia Nacional Constituinte pode ser de util informacao preliminar sobre o Brasil, na decada de trinta do seculo passado (discutido nos paragrafos seguintes) e sobre o texto kelsesiano ([section] 3). Este foi publicado apenas uma vez, em 1934, em portugues e em alemao, por uma revista do Rio de Janeiro, da qual saiu unicamente o fasciculo que continha o texto de Kelsen, deixando de ser publicada, posteriormente. Nas paginas seguintes o texto e reproduzido na forma em que publicado pela revista, com traducoes para o espanhol e para o italiano.

    Com a "Revolucao de 1930", Getulio Vargas substituiu a "Republica Velha" por um novo regime destinado a durar ate 1945. Deposto o presidente Washington Luis, suspensa a constituicao de 1891 e dissolvido o parlamento, de 1930 a 1934 o Brasil foi dirigido por um "Governo Provisorio", guiado por Vargas. Vargas enviava "interventores" aos diversos Estados brasileiros, os quais exerciam controle sobre as atividades locais, em conformidade com os principios da revolucao de 1930.

    Sao Paulo se rebelou contra essa ingerencia e se insurgiu entre o periodo de 9 de julho a 3 de outubro de 1932. Essa revolucao levou o nome de "Revolucao Consttitucionalista", em funcao do fato de que se exigia uma redemocratizacao do Brasil, mediante uma nova constituicao. Em 3 de maio de 1932 se fizeram as eleicoes para a Assembleia Nacional Constituinte, nas quais, pela primeira vez no Brasil, as mulheres tiverm o direito de voto em nivel geral, muito embora antes ja gozassem deste direito em alguns Estados.

    A Assembleia Nacional Constituinte iniciou seus trabalhos em 15 de novembro de 1933 e a nova constituicao foi promulgada em 16 de julho de 1934. Em paralelo a esses eventos atuou a denominada "Comissao Itamaraty", a qual apresentou um projeto de constituicao mais centralista, em relacao a constituicao que depois veio a entrar em vigor: essa ultima atribuia uma certa autonomia aos Estados, e, por isso, foi frequentemente criticada por Getulio Vargas. Em 17 de julho de 1934, um dia depois da promulgacao da constituicao, o parlamento elegeu Vargas como presidente da Republica e em 20 de julho ele tomou posse oficialmente no cargo.

    Neste contexto politico se apresentou o parecer de Kelsen sobre a Assembleia Nacional Constituinte.

  2. A viagem de Kelsen ao Brasil

    Em complemento ao texto de Gustavo Siqueira (1), eu gostaria de recordar alguns dados sobre a relacao de Kelsen com a America do Sul e, em particular, com o Brasil. Tais dados sao provenientes de algumas atualizacoes e poucas modificacoes de um texto, de 20082, de minha autoria, no qual eu apresentei algumas informacoes recebidas em um coloquio com dois importantes juristas brasileiros: Miguel Reale e Celso Lafer. Rudolf Aladar (1903-1975) foi assistente de Kelsen em Colonia e eu tive a ocasiao de encontra-lo em Genebra, depois de ter traduzido a segunda edicao do Teoria Pura do Direito. Nao obstante, naquela ocasiao nos nao falamos de sua estadia no Brasil, na qual uma vez mais se crurzaram as vidas de Kelsen y de Metall.

    Em maio de 1933, Kelsen se mudou de Colonia para Genebra, e permanceu nesta cidade ate 1940. Kelsen e Metall viveram em Genebra. Como, em 1940, a guerra parecia ameacar tambem a neutra Suica, em 30 de junho de 1940 Metall solicitou a suspensao do seu contrato com o Bureau International du Travail e, como Kelsen, deixou a Europa.

    A essa altura, seus caminhos se dividiram: enquanto Kelsen foi aos Estados Unidos, Metall se estabeleceu no Brasil, onde provavelmente ja tinha contatos, como parece demonstrar uma publicacao de 1934 do arquivo municipal de Sao Paulo (3). No Rio de Janeiro, Metall desempenhou uma dupla atividade: uma marcada por sua antiga patria europeia, e outra por sua nova patria americana.

    Por um lado, com efeito, ele foi secretario geral do Comite para a Representacao dos Interesses Austriacos no Brasil, de 1941 a 1944: sua colaboracao com Anton Retscheck, o ultimo embaixador austriaco no Brasil antes de 1938, permitiu que fossem emitidos documentos de identidade para os cidadaos austriacos depois de 1938.

    Durantes esses anos, Metall adquiriu a cidadania brasileira.

    Um reflexo desta epoca e a sua breve introducao ao volume Austria Aeterna, publicada no Rio de Janeiro em 1944 (4), em que citacoes de politicos e escritores, quase todos nao austriacos, confirmam a exigencia de independencia da Austria, ressaltando a importancia de "seu papel politico, da missao historica, de sua funcao cultural, de sua heroica resistencia ao assalto dos nacionalismos intolerantes" (5). No momento em que tambem o Brasil (que nao havia reconhecido o Anschluss) ingressava em guerra contra o Eixo, a invocacao da exigencia de restituir a Austria sua independencia vinha, assim, confiada a vozes de terceiros, com neutralidade diplomatica.

    Por outro lado, Metall concentrou suas capacidades profissionais ao servico das medidas sociais que caracterizaram o "Estado Novo" de Getulio Vargas. Com efeito, sob a ditadura de inspiracao fascista--de 1937 a 1945, mas continuada por governos guiados pelo proprio Vargas--, foi tomada uma serie de medidas que encaminharam o Brasil na direcao de se tornar uma potencia moderna. Ja em 1933 o governo brasileiro havia criado as instituicoes previdenciarias para as diversas areas em que havia sido organizada a economia corporativa (6). Metall se converteu em consultor tecnico do "Instituto de Pensoes dos Trabalhadores de Transporte" (7) e, ademais, entre 1940 e 1945, como consultor do governo brasileiro, participou da preparacao da "Consolidacao das Leis Trabalhistas" de 1943, um texto unico que reunia e coordenava todas as normas laborais editadas pelos governos de Vargas a partir de 1930 em diante: um texto que esteve no centro do debate juslaboral tambem para alem da primeira metade do seculo XX.

    Depois de terminada a segunda guerra mundial, Metall se reincorporou a sua atividade no que entao se denominava Bureau International du Travail; e depois de ter estado em Montreal e Nova Iorque, reintegrou-se na sede de Genebra, onde permaneceu ate sua aposentadoria, em 18 de agosto de 1966. Ele publicou algumas obras de direito publico e sobre as relacoes entre o Direito e a seguridade social, alem da filosofia do Direito, mas sua obra mais conhecida e, sem duvida, sua biografia de Hans Kelsen (8). Dados mais amplos sobre a atividade e as publicacoes de Metall se encontram no meu prefacio citado na nota 2. Aqui importa regressar aos contatos de Kelsen com a America do Sul.

    A unica viagem de Kelsen ao Brasil, em 1949, ao Rio de Janeiro, nao foi de modo algum vinculada a presenca de seu assistente-biografo, o qual havia regressado a Europa em 1945. Kelsen permanceu no Brasil no retorno de sua estadia na Argentina, para onde havia sido convidado pelo maior jusfilosofo local, Carlos Cossio (1903-1987). Esse ultimo concebeu sua "teoria egologica" como uma superacao da teoria pura do Direito, pelo que a finalidade nao ultima do convite era tambem o intento de convencer Kelsen a reconhecer a teoria egologica do Direito como aperfeicoamento da teoria pura do Direito (9). A impossibilidade de conciliar as duas teorias--e tambem as duas personalidades--conduziu a uma insanavel ruptura entre os dois estudiosos.

    Aqueles anos do pos-guerra na America do Sul, com governos autocraticos como os de Juan Domingo Peron e Getulio Vargas, eram politicamente muito tensos. Kelsen teve de fazer frente tanto aos debates teoricos com Carlos Cossio, como aos intentos de envolvimento politico. Daquela viagem e da antiga polemica que se produziu entre Kelsen e Cossio existe hoje uma precisa reconstrucao do jusfilosofo uruguaio Oscar Sarlo (10).

    Sobre a breve estadia de Kelsen no Rio de Janeiro--de 25 a 31 de agosto de 1949--, tive a ocasiao de contar com as recordacoes do maior jusfilosofo brasileiro, Miguel Reale (11). Kelsen foi convidado ao Rio de Janeiro pelo jurista e politico Olavo Bilac Pinto (1908-1985), sem que Miguel Reale fosse informado (12). Miguel Reale fez uma ligacao telefonica a Kelsen, convidando-o tambem a Sao Paulo, mas Kelsen, por ainda ser recente a polemica argentina com Cossio, respondeu--assim me disse Reale--"do tipo": "Estou farto (magoado) com a America do Sul". Por isso, Kelsen nao viajou a Sao Paulo. De outro lado, os juristas do Rio de Janeiro monopolizaram Kelsen, tanto que, naquela oportunidade, Reale preferiu renunciar a encontra-lo.

    Nao obstante, Kelsen nao alimentava rancores contra a America do Sul ou contra o Brasil. No proprio ano de 1949, Kelsen e Reale trocaram correspondencias, e Kelsen lhe enviou um exemplar do General Theory f Law and State com uma dedicatoria. Obviamente, existiam diferencas doutrinarias entre eles: com efeito, Reale me lembrou que o titulo de sua Teoria do direito e do estado havia sido pensado precisamente para indicar que ele nao identificava os dois conceitos de Direito e Estado, como, de outro lado, defendia Kelsen. Ate aqui, o testemunho de que me valho e o de Miguel Reale.

    Embora Metall tenha retornado a Europa anos antes, no Rio de Janeiro Kelsen encontrou algumas recordacoes dos distantes tempos vienenses: seu ex-discipulo Hans Klinghoffer (1905-1990) ensinava na Fundacao Getulio Vargas, onde Kelsen proferiu tres conferencias: provavelmente tambem a ele se deve a outorga a Kelsen do doutorado honoris causa daquela instituicao, que ainda hoje e um dos centros culturais mais importantes do Brasil.

  3. O parecer de Kelsen

    No curso destes eventos (13), os juristas do Rio de Janeiro, Flavio da Silveira e Romam Poznanski, solicitaram que Kelsen formulasse um juizo sobre o decreto que instituia a Assembleia Nacional Constituinte. De qual modo se desenvolveu este contato nao esta ate agora documentado, pois nao se encontrou documentacao alguma ou correspondencia, nem no arquivo do Hans Kelsen-Institut de Viena, nem no...

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