Recurso parcial, formação gradual da coisa julgada e capítulos de sentença

AutorJúlio César Bebber
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho. Doutor em Direito do Trabalho
Páginas473-494

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33.1. Noções gerais

Um dos temas pouco tratado pelos juristas brasileiros, mas extremamente relevante, é o dos capítulos de sentença. Esse tema teve como precursores Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti e Enrico Tullio Liebman. No direito brasileiro, mereceu atenção, inicialmente, de José Frederico Marques e, com maior profundidade, de Antônio Carlos de Araújo Cintra e, mais recentemente, de Cândido Rangel Dinamarco.1032

Embora os capítulos de sentença devam ser inseridos no estudo da sentença, aplicam-se integralmente ao acórdão e à decisão interlocutória e suas repercussões práticas ocorrem em outros institutos, como (e principalmente) o dos recursos e o da coisa julgada, que serão analisadas a seguir.

33.2. Capítulos de sentença

Quando se diz que a sentença é única (princípio da unicidade da sentença), faz-se referência à sua forma. Formalmente, ou seja, como ato jurídico integrante do procedimento, a sentença é incindível. Substancialmente, porém, a sentença comporta divisão, desde que possua mais de uma unidade (mais de um preceito imperativo).1033

Ao permitir a impugnação parcial da sentença (CPC, 505), o sistema legal autoriza o fracionamento da decisão judicial. Desse modo, a decisão final será uma combinação de parte da sentença com parte do acórdão. E isso somente é possível porque a sentença admite o fracionamento (em capítulos) e os recursos possuem o efeito substitutivo (CPC, 512 - supra, n. 10.7).

No direito brasileiro, somente a fragmentação da sentença em capítulos que correspondam, cada qual, a uma decisão sobre uma pretensão possui relevância. E

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a razão disso reside no fato de que as decisões sobre as diversas pretensões estão localizadas no dispositivo, sendo essa a única parte da sentença capaz de produzir efeitos na vida do processo ou das pessoas.1034

Nos itens abaixo, tentarei tornar compreensível o que acabei de afirmar.

33.2.1. Estrutura formal (orgânica) da sentença

A estrutura orgânica (requisitos extrínsecos) da sentença está prevista na cabeça do art. 832 da CLT.1035 Essa estrutura está exposta com melhor didática no art. 458 do CPC.1036 É ela: relatório, fundamentação e dispositivo.

Compreende-se por:

  1. relatório - a narrativa das alegações e dos pedidos das partes e dos fatos ocorridos durante a instrução do processo;

  2. fundamentação - as soluções das questões de fato e/ou de direito1037

    que constituem pressuposto lógico em que se apoia a decisão. Identifica-se a fundamentação, por exemplo, na declaração do juiz que se diz convencido sobre a afirmação de fato de um dos litigantes e na opção que faz por determinada interpretação legal. Vê-se, portanto, que a fundamentação prepara as conclusões que constituem o dispositivo. Daí a razão de não se atribuir a ela a qualidade de coisa julgada (CPC, 469), pois está destituída de autonomia capaz, por si só, de projetar efeitos sobre a vida do processo ou das pessoas;

  3. dispositivo - a conclusão a que o juiz chegou após desenvolver o raciocínio para decidir.1038 Plantadas as bases lógicas (na fundamentação), o juiz decide

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    (conclui) dizendo que acolhe ou rejeita, defere ou indefere.1039 Somente o dispositivo, como se percebe, possui imperatividade (comando). Somente ele, por isso, é capaz de projetar efeitos sobre a vida do processo (conclusão acerca das preliminares) ou das pessoas (conclusão sobre o mérito), sujeitando-se ao trânsito em julgado (CPC, 469).

    Compreendida a estrutura formal da sentença, deve-se notar que a identificação de seus elementos não se faz mediante análise topográfica. Embora os juízes tenham o costume de separar topograficamente (em compartimentos estanques) relatório, fundamentação e dispositivo, com escopo de tornar mais visíveis cada um deles e facilitar a compreensão didática da decisão, isso não constitui exigência legal. Desse modo, poderão os elementos da sentença estar entrelaçados. Se, por exemplo, em meio a parte topograficamente destinada à fundamentação, o juiz concluir o seu raciocínio dizendo que defere ou indefere tal pedido, aí estará o dispositivo, ainda que essa conclusão não seja transportada para a parte topográfica da sentença destinada a ele.1040

33.2.2. Estrutura substancial da sentença

Além da divisão orgânica (formal), a sentença admite uma divisão substancial (de conteúdo) sempre que a estrutura do processo seja complexa.

Por estrutura complexa compreenda-se a reunião de pretensões dirigidas à obtenção do pronunciamento de mérito, bem como ao mérito, com pedidos simples ou compostos (cumulação simples, sucessiva, alternativa e eventual, reconvenção, pedido contraposto, intervenção de terceiros, etc.), formulados por litigantes simples ou litisconsorciados, além das pretensões de defesa que constituem as chamadas preliminares (objeto do processo).1041

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Imagine-se que num plano horizontal (lado a lado) está a decisão (dispositivo) do juiz sobre preliminar de coisa julgada, pedido de pagamento de horas extras formulado pelo autor, pedido de indenização por danos morais formulado pelo réu em reconvenção, definição de juros e imposição de custas. Imagine-se, agora, uma linha vertical separando (cortando ideologicamente) cada uma dessas pronúncias. Isoladas, então, constitui, cada uma delas, um capítulo da sentença.1042

Além disso, se dentro de um pedido for possível identificar unidades autônomas (no sentido de existência própria), cada uma delas constituirá um capítulo. Assim, quando a demanda tem por objeto uma prestação em quantidade, "o valor do bem ou interesse em contenda pode dar origem, quantitativamente, a tantos capítulos quantas forem as variações numéricas que os fatos possam suscitar".1043 Desse modo, "se peço 100 e a sentença me concede 80, isso significa que o juiz acolheu minha pretensão a obter 80 e julgou improcedente a pretensão a obter os outros 20 (decompôs, portanto, um pedido que formalmente era uno)".1044

É na análise da estrutura substancial da sentença, portanto, que reside o estudo dos capítulos de sentença, a transmitir a ideia de que cada capítulo da sentença dá origem a uma decisão própria.

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Segundo José Alberto dos Reis, quantos capítulos, tantas as sentença (quo capita tot sententiae), ou, "por outras palavras, numa sentença há tantas decisões distintas, quantos forem os capítulos que ela contiver".1045

33.2.3. Conceito de capítulos de sentença

É possível agora, então, conceituar capítulos de sentença como o pronunciamento (decisão) do juiz acerca de cada um dos pedidos processuais ou materiais.1046

Disse:

  1. pronunciamento (decisão) do juiz - porque somente a conclusão do juiz (dispositivo) acerca de cada pedido tem capacidade para projetar efeitos sobre a vida do processo ou das pessoas;1047

  2. acerca de cada um dos pedidos - porque identifica que os capítulos da sentença são extraídos do conteúdo substancial (e não orgânico) da sentença;1048

  3. processuais ou materiais - porque os pedidos podem dizer respeito à relação jurídica processual (preliminares) ou material (mérito).1049 Cumpre-me, aqui,

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então, refutar as teorias de Giuseppe Chiovenda (para quem capítulos de sentença identificam-se, unicamente, com as decisões acerca das pretensões de mérito),1050

Francesco Carnelutti (para quem somente há interesse prático na identificação dos capítulos de sentença em relação ao exame das questões)1051 e Enrico Allorio (para quem somente há interesse prático na identificação dos capítulos de sentença mediante análise do dispositivo e da fundamentação)1052 e declarar, na esteira da doutrina majoritária, adesão à Teoria de Enrico Tullio Liebman,1053 para quem os capítulos de sentença compreendem os pronunciamentos sobre os pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito e sobre o mérito, capazes, por si só, de constituírem o conteúdo mínimo de uma sentença.1054

33.2.4. Classificação dos capítulos de sentença

Entre as várias classificações possíveis dos capítulos de sentença, ostentam maior capacidade de repercussão prática aquelas que dizem respeito à natureza, à autonomia e à independência.

Especificamente quanto à autonomia e à independência, devo ressaltar que os conceitos atribuídos a essas classificações não são aqueles sugeridos por Chiovenda, uma vez que devem atender ao tratamento até aqui dado ao tema.

33.2.4.1. Quanto à natureza

Quanto à natureza, os capítulos de sentença podem ser classificados em processuais e materiais:

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O capítulo de sentença:

  1. processual - é aquele em que se realiza exclusivamente o julgamento da pretensão a uma sentença de mérito;

  2. material - é aquele em que se realiza exclusivamente o julgamento da pretensão ao bem da vida (julgamento de mérito).

    Para exata compreensão dessa cisão, deve-se ter em conta que todo processo é bifronte. Vale dizer: traz em si a soma de duas pretensões:

    - a primeira é a pretensão a uma sentença de mérito (pedido imediato) - e diz respeito à relação jurídica processual. Somente é possível prestar a tutela jurisdicional, chegando o processo ao seu termo normal e programado (assim entendida a satisfação do mérito),1055 se se cumprirem rigorosamente certos requisitos,1056 chamados de pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional1057 (ou pressupostos do julgamento de mérito), que são classificados pela doutrina predominante em dois grupos: o dos pressupostos processuais e o das condições da...

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