Paradigms of penal policy and the economic significance of population: from corporal punishments to the Police Pacification Unit/Paradigmas de politica penal e sentido economico da populacao: das punicoes corporais as UPPs.

Autorde Oliveira, Pedro Rocha

Introducao

Um dos alicerces da racionalidade burguesa, continuamente evocado pelos ideologos da sociedade moderna para refletir e ordenar tanto as operacoes privadas quanto os negocios publicos, e o principio da equivalencia. Enraizado na fantasia da compra e venda a preco justo--que Marx denuncia atraves de sua teoria da mais-valia--esse principio e universalmente entranhado no imaginario social, e oferece-se instintivamente para balizar o pensamento numa miriade de assuntos, desde a reciprocidade nas relacoes interpessoais, ate a relacao entre crime e castigo. Neste ultimo campo, a punicao aparece como o complemento matematico e moral do crime: seu rigor deve ser proporcional a gravidade do crime. Essa criminologia burguesa teve suas primeiras expressoes formais na pena do Iluminismo especialmente a partir da obra Dos delitos e das penas (1764), de Cesare Beccaria --com repercussoes ate a criminologia positivista dos seculos XIX e XX. Contra ela, entretanto, um dos principios da chamada criminologia critica e que a suposta racionalidade irrecorrivel de tal equivalencia e uma ficcao: a pena nao pode derivar do crime, uma vez que o proprio crime e uma construcao social enraizada na capacidade e na necessidade social de punir. A essa ideia, a corrente materialista da criminologia critica acrescenta, ademais, que tal capacidade ou necessidade deve ser compreendida em termos economicos. Na formulacao de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004, p. 20-21),

todo sistema de producao tende a descobrir formas punitivas que correspondam as suas relacoes de producao. [...] a origem e a forca dos sistemas penais, o uso e a rejeicao de certas punicoes e a intensidade das praticas penais, [...] sao determinadas por forcas sociais, sobretudo pelas forcas economicas e, consequentemente, fiscais. Ou, em outras palavras: "somente um desenvolvimento especifico das forcas produtivas permite a introducao ou a rejeicao de penalidades correspondentes" (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 20-21).

Uma dupla sugestao esta contida nessa posicao. Por um lado, se aceitamos que toda pena precisa ser possivel economicamente, as praticas penais devem estar enraizadas no procedimento economico das sociedades em que ocorrem, de tal modo que sua elaboracao e manutencao nao podem entrar em conflito com tal procedimento. Assim, a analise de concepcoes juridico-penais deve passar nao apenas pelos discursos que as pretendem fundamentar racionalmente, eticamente etc., mas, sobretudo, pelos liames as vezes silenciosos que as prendem a producao de riqueza. Por outro lado, se a pena deve estar em harmonia fundamental com a producao de riqueza, isso significa que toda pratica penal revelara algo fundamental sobre a sociedade na qual ela existe.

Assim, por exemplo, a escravidao como forma de punicao nao pode ser entendida apenas atraves do discurso que deprecia as racas escravizadas, ou na logica que converte o crime em divida de trabalho, mas precisa ser vista enquanto conectada a uma forma de produzir riqueza que cria uma demanda real e constante de forca de trabalho nao remunerada. Ou seja: e possivel dizer, de uma sociedade que adota a escravidao como pratica penal, que existe, nela, o problema sistemico de uma demanda de forca de trabalho nao remunerada.

A luz desse raciocinio, o que pretendemos realizar aqui e uma analise de formas paradigmaticas de punicao da sociedade moderna. Falamos de "sociedade moderna" porque pretendemos, com tal analise, abarcar a producao capitalista em sentido amplo, desde seu formato agrario exportador ate a configuracao contemporanea. E falamos de "formas paradigmaticas" porque trataremos justamente de esquemas punitivos que revelam aspectos fundamentais dos diferentes regimes de acumulacao capitalistas.

O presente trabalho, portanto, e guiado pela seguinte pergunta fundamental: o que as formas punitivas nos dizem a respeito das diferentes etapas do desenvolvimento do capitalismo? Ora, ao tomarmos essas formas punitivas em conjunto, salta aos olhos sua estreita conexao com variacoes no carater do trabalho. Percebemos que os castigos fisicos da primeira modernidade inglesa--paradigmaticamente, as mutilacoes e acoites com que se puniam os "vagabundos" na epoca da privatizacao das terras e dissolucao das relacoes de producao feudais--correspondem a formas de producao de mercadoria que funcionam com uma forca de trabalho limitada, enquanto que o trabalho prisional nos Estados Unidos do seculo XIX esta inserido num contexto de industrializacao rapida, competicao internacional por mercados e alta demanda de forca de trabalho. E nesses termos que falaremos aqui de um sentido economico da populacao, ou seja, da relevancia quantitativa da populacao em geral para a formacao de forcas de trabalho com perfis determinados, desde o ponto de vista da producao de mercadorias.

  1. O advento moderno da discriminacao economica e da populacao mutilavel

    Nos estudos sobre populacao carceraria, um dos aspectos usualmente evocados pelos sociologos e o nivel educacional dos prisioneiros. A maior parte deles, mesmo nos paises "desenvolvidos", nao possui quase nenhuma instrucao funcional (O'BRIEN, 1998, p. 179). Esse e um dado curioso, constante e fundamental na historia da punicao na sociedade moderna. Os registros mais antigos que essa sociedade produziu sobre punidos e encarcerados listam-nos frequentemente em termos de sua falta de habilidade profissional (SHARPE, 1999, p. 263). Isso nos lembra como, na sociedade capitalista, desde suas origens, o poder repressivo do Estado foi exercido sobretudo contra os mais pobres. Porem, mais que isso, e importante observar como a figura do criminoso punivel desprovido de habilidade expressa eloquentemente a funcionalizacao economica da vida humana pela sociedade moderna.

    Perceber gente em termos de sua capacidade ou nao de realizar um trabalho mais ou menos especializado e um procedimento relativamente recente na historia da humanidade. Na sociedade agraria pre-moderna, com excecao dos fisiologicamente impedidos, todos estavam envolvidos no processo de producao. Viver era estar inserido na divisao de trabalho nas esferas da familia e do grupo: saber pescar, cacar, plantar, colher, processar os alimentos, cuidar das ferramentas etc.--habilidades que os punidos sem-habilidade da alvorada da modernidade certamente possuiam. Mas aquela categoria, no fim das contas, nao expressava a incapacidade do individuo de subsistir na sociedade agraria pre-moderna que estava entao sendo extinta na marra.

    Comunidades cujos vinculos sociais estavam sedimentados na dependencia mutua--no fato de que todos e cada um precisavam participar das tarefas de producao material--simplesmente nao possuiam instituicoes frente as quais a contribuicao de um individuo na divisao social do trabalho pudesse ser avaliada e potencialmente reprovada. A exclusao socioeconomica atraves do banimento ou da execucao eram punicoes extremas. Em tempos de paz, esperava-se naturalmente que todos os individuos trabalhassem e fazia-se o possivel para evitar a diminuicao do numero de "bracos aptos".

    Quando os vinculos imediatos da subsistencia foram quebrados pela privatizacao da terra na alvorada da sociedade moderna, apareceu, a reboque, a incapacidade constitutiva de participar da producao material enquanto propriedade subjetiva. O Estado moderno desenvolveu uma serie de instituicoes voltadas para a discriminacao economica, ou seja, instituicoes ocupadas com a relativizacao da existencia de individuos e populacoes, com base na avaliacao de sua funcionalidade economica. A partir de entao, so participa da producao social (e vive) quem e capaz de contribuir para o enriquecimento alheio. Submetida ao primado da quantificacao, a sociedade passa a ser pensada como um aglomerado numericamente determinado: a populacao torna-se uma preocupacao da administracao estatal --em especial, a populacao economicamente superflua.

    A politica penal da alvorada da sociedade moderna foi o recurso administrativo por excelencia para lidar com essa populacao. Ela podia ser submetida a punicoes que destruissem o corpo laborante, visto que, de qualquer forma, nao trabalhariam. O discurso juridico que sustentava essa politica penal--Martinho Lutero foi um de seus mais loquazes arautos evocava sem pudores a superfluidade economica daqueles que ela vitimava, e falava, ainda, do suposto efeito dissuasivo alcancado pelas maos cortadas, olhos furados, linguas arrancadas, pes decepados e marcacoes a ferro quente, para nao falar das execucoes na forca ou por meio de torturas elaboradas com tanto afinco que se tornavam espetaculos (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 40). Expulsos da vida agraria e militarmente impedidos de retornar a ela, afastados no maximo em uma ou duas geracoes da experiencia brutal da privatizacao da terra, os sem-habilidade vitimados por essas praticas eram frequentemente descritos, ademais, com os termos que deram origem a palavra "vagabundo": alguem que (uma vez desenraizado de seu lugar original contra sua vontade!) vaga de lugar em lugar, vivendo de bicos, restos e caridade.

    A sociedade feudal e de subsistencia era reorganizada em termos da producao de mercadorias agrarias, na qual a demanda por forca de trabalho era minima. As multidoes expulsas da terra engrossavam um exercito de mao de obra de reserva que tornava os salarios tao baixos a ponto de fazer com que a indigencia fosse preferivel (PATRIQUIN, 2007, p. 99). O trabalho nas manufaturas nao apenas estava limitado a alguns centros urbanos, como requeria as destrezas especificas em referencia as quais a populacao punivel era designada desprovida de habilidade. Em suma: era facil tornar-se economicamente superfluo e, portanto, mutilavel. A hedionda ironia se completava com o fato de que, uma vez marcado a ferro ou privado de sua integridade fisica, o vagabundo tinha ainda menos chances de encontrar trabalho. Individuos marcados, em alguns lugares, eram obrigados a uma especie de escravidao, mas a...

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