O papel político do judiciário em uma democracia qualificada: A outra face da judicialização da política e das relações sociais

AutorGustavo Rabay Guerra
CargoDoutorando e pesquisador em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília. Professor Assistente I da Universidade Federal da Paraíba. Advogado.
AGradecimentos

Esse texto é fruto, sobretudo, de ricas interlocuções com alguns destacados acadêmicos com os quais tenho o privilégio de conviver. São eles: Alexandre Luna Freire (FESP-PB), Bianor Arruda (IESP-PB), Ernani Carvalho (UFPE), Leandro Rodrigues (UNB), José Maurício de Lima (UNB), Marco Antonio Meneghetti (UNB), Menelick de Carvalho Netto (UNB) e Terrie Ralph Groth (UNB).

1 200 Anos em 20: o começo da história

O Poder Judiciário Nacional e a cidadania brasileira vivem uma fase de intensas transformações e conquistas na passagem dos 200 anos desde a instalação da Casa da Suplicação do Brasil, aos 10 de maio de 1808, data que assinala, também, a consagração da independência judicial no País, tendo o citado órgão operado ainda antes da primeira Constituição brasileira (1824), que o transformou em Supremo Tribunal de Justiça do Império do Brasil, e que, posteriormente, com a Constituição Republicana de 1891, se transmutou em Supremo Tribunal Federal (STF).

Por esses dias, temas instigantes povoam as sessões do STF. O papel político e a conseqüente necessidade de legitimação democrática discursiva do Judiciário ficaram patentes no julgamento de questões complexas, tais como a fidelidade partidária e a autorização de experiências científicas com células troncoembrionárias. Tivemos, também, a imposição do uso das algemas, o caso da greve dos servidores públicos e o fim do nepotismo nas três funções do Estado. Em seguida, teremos, ainda, julgamentos marcantes, tais como a possibilidade de descriminalização de aborto de fetos anencefálicos, a demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, a constitucionalidade do casamento homossexual e, por fim, a questão das ações afirmativas e das cotas nas universidades públicas.

Esses são exemplos de como o Judiciário vem se tornando o último reduto político-moral da sociedade, nos temas que naturalmente suscitem os chamados desacordos morais razoáveis (reasonable disagreements). Vivenciamos, assim, o que Ingeborg Maus chamou de “Superego da sociedade órfã”2 e o que Viana Lopes identifica como a “Invasão do Direito”3, no contexto da expansão do papel dos atores judiciais e da própria normatividade no quotidiano das práticas sociais. No “Estado Judicante” é mais fácil conclamar o debate público na corte do que no parlamento. É o fenômeno da acessibilidade dos espaços judiciais, em substituição à representação política tradicional, em que os eleitores demandam de seus governantes as providências necessárias para o bom funcionamento da sociedade. Diante das frustrações da ausência de representação política, o julgador torna-se, ele próprio, porta-voz de uma ideologia refratária dos desmandos do poder, descendo ao “inferno de uma democracia desnorteada” (Paul Ricouer) e impondo severos comprometimentos ao espaço público e a sua própria instituição. A nova “cidadania judicial” tem que enfrentar velhos fantasmas4.

A expansão do poder dos magistrados a partir da assunção do papel normativo da Constituição e como isso acarretou uma mudança comportamental da função judiciária, que da emudecida passividade passou à judicialização excessiva. Como exemplos de tal mudança da paisagem atitudinal, sopesam-se decisões que vão do racismo e sexismo explícitos – como aquela proferida por um juiz mineiro que considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha e diabólicas as mulheres –, passando pela marca patrimonialista do nosso Judiciário – encarnado na magistrada paraibana que atestou ser o julgador “incomparavelmente superior a qualquer outro ser material” – , até as recentes construções jurisprudenciais que, (re)habilitando instrumentos constitucionais legítimos e democráticos, como o mandado de injunção para efetivar o direito de greve no serviço público, resignificam a gramática dos direitos fundamentais.

Esse artigo constitui-se de breves digressões iniciais sobre os elementos do debate, na tentativa de cumprir a função de noticiar as vozes mais destacadas que refletem a preocupação com essa complexa atividade que o Estado Democrático de Direito consagra como um de seus pilares fundamentais.

2 A expansão do protagonismo judiciário

Até que ponto os atos de controle do Poder Judiciário sobre os demais poderes da República cingem-se ao campo jurídico e a partir de que instante esse controle perpassa conteúdos de deliberação eminentemente política e sobre relações sociais complexas e fragmentárias? Ou seria preferível perguntar qual a intensidade e legitimidade do judicial policy-making? O tema é extremamente instigante e perfila algumas nuances variáveis na doutrina, mas todos aferrados ao mesmo objeto central: a análise conjuntural do fenômeno denominado “Expansão do poder do Judiciário” (Stone Sweet, Tate e Vallinder)5.

O tema não é recente tal qual alguns imaginam: Bernard Schwartz, na década de 1960, dissertava acerca da capacidade do Judiciário interferir da maneira mais incisiva na vida política, em ordem a legitimar o grau de importância que a população deposita nas instituições democráticas, ou, mais precisamente, a credibilidade que esta instituição tem perante o público. Schwartz advoga que a base de sustentação da Corte Suprema americana são a Constituição e a opinião pública6.

Nos últimos anos, alguns autores já apresentaram constructos significativos para o tema e seus correlatos aspectos, destacando-se Cappelletti, Garapon, Boaventura Santos, Ingeborg Maus, além dos já referenciados Sweet-Stone, Tate e Vallinder7. Entre nós, ocupam a centralidade dos debates os trabalhos de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo; e Marcelo Baummam Burgos8; e, ainda, Marcus Faro de Castro, que introduz uma específica e qualificada visão sobre o tema9.

Em um primeiro esforço, impende esclarecer o que vem a ser judicialização (ou juridificação) – expressão tão feia, segundo Teubner, quanto à realidade com a qual se comunica10. Ela abrange não somente o Judiciário, mas também os órgãos de auxílio, tal como o Ministério Público, cuja atuação é preponderante para a Administração da Justiça11. Ao passo em que a expressão juridificação pode conduzir, ainda, a interpretações mais amplas – tal como a potencialização da esfera judiciária para outros recantos da vida social, traduzida na preocupação de um aumento na presença da Administração da Justiça nas condutas –, a expressão judicialização é preferida por alguns autores, pois identificam o principal argumento do debate: a projeção do Judiciário (ou da Administração da Justiça) no âmago de discussões afeta à seara política majoritária12.

Há uma grande ambivalência na expressão, especialmente quanto aos diferentes conteúdos descritivo e normativo. Na acepção descritiva, corresponderia, assim, à “proliferação legal” ou, na perspectiva habermasiana, à tendência de incremento do direito dogmático. Ainda, nessa acepção, define a perspectiva de um “monopólio do direito pelos operadores jurídicos”, da “construção do poder judicial” e da “expansão do poder judicial”. Alguns outros associam genericamente a juridificação ao contemporâneo processo de emergência de uma cultura jurídica, disseminando influxos do universo jurídico e suas respectivas condutas legais em todos os setores, público e privado13.

Em termos normativos, a expressão “juridificação” é entendida como vigamestra da democracia constitucional, o triunfo da ordem jurídica sobre o despotismo; de outra sorte, na idéia de dominação legal e da própria normatividade.

Com Maciel e Koerner, é possível compreender que a judicialização da política requer que operadores da lei prefiram participar da policy-making a deixá-la ao critério de políticos e administradores e, em sua dinâmica, ela própria implicaria papel político mais positivo da decisão judicial do que aquele envolvido em uma não-decisão. Daí que a idéia de judicialização envolve tanto a dimensão procedimental quanto substantiva do exercício das funções judiciais14.

Tentando aclarar o sentido da expansão dos poderes dos juízes, Vallinder, como nos lembra Ernani Carvalho, considera que existem dois tipos ou formas de judicialização15:

a) from without corresponde à reação do judiciário frente a provocação de terceiro, que tem por finalidade revisar a decisão de um poder político tomando como base a Constituição. Ao fazer esta revisão o Judiciário estaria ampliando seu poder frente aos demais poderes; e

b) from within, é a utilização de membros do Judiciário na administração pública: corresponde à incorporação da metodologia e procedimento judiciais pelas instituições administrativas que eles ocupam.

Como constata Carvalho, a ênfase é maior quanto à primeira forma.

Essa concepção de juridificação possibilita, segundo esse mesmo autor, um “hiperdimensionamento” do caráter procedimental da atuação judiciária, não significando que a ampliação desta corresponderá uma efetiva prestação jurisdicional da cidadania; de mais a mais, também sucede esse “hiperdimensionamento” em caráter substancial, de modo a restar discutível quais os parâmetros para a interveniência do Judiciário, por exemplo, quanto a políticas públicas, porquanto componente afeto aos outros Poderes, eleitos pelo voto da maioria.

O estabelecimento desses limites é um desafio para o constitucionalismo e para as teorias jurídica e política contemporâneos. Em diferentes ângulos de indagação se fala até em concentração de poder político dos juízes, com desdobramentos na ampliação do espaço público, imiscuído pela já proclamada “ditadura dos magistrados”16.

3 O pragmatismo judiciário e suas armadilhas: o papel político do poder jurídico

O tensionamento entre os Poderes suscitado pela atuação proeminente do Judiciário...

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