O Papel das Ideologias na Formacao do Campo Juridico/The Role of Ideologies for the formation of law field.

AutorAlmeida, Ana Lia
  1. Introducao

    Em agosto de 2013, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes recebia na Paraiba uma homenagem de estudantes de direito, com o apoio de diversos outros segmentos da area juridica, no encerramento de um congresso intitulado "Novas perspectivas do Direito". Na ocasiao, emocionado, o jurista homenageado concedeu a seguinte declaracao:

    Fiquei muito sensibilizado, muito satisfeito de receber essa homenagem, sobretudo, por ver o interesse dos estudantes pela minha obra, por aquilo que nos estamos fazendo e pelo que o Supremo [Tribunal Federal] vem desenvolvendo em materia de Direito Constitucional. Fico extremamente sensibilizado e honrado com essa homenagem e agradeco a todos os amigos da Paraiba (3). A reconhecida "amizade" a que o ministro se referiu e mais propriamente compreendida em termos de uma afinidade ideologica, demonstrada na comenda. O jurista em questao, afinal, representa uma perspectiva sem duvida dominante no campo juridico (4), o que pode ser constatado em muitas das movimentacoes deste setor no qual vigora "um ponto de vista sobre o mundo social que (...) em nada decisivo se opoe ao ponto de vista dos dominantes" (BOURDIEU: 2007). Como se caracteriza, ideologicamente, esta perspectiva? Como ela incide na realidade? Com quais sujeitos ela entra em embate?

    De outro lado, e possivel encontrar no direito quem se oponha contundentemente a conclusao de que Gilmar Mendes mereca qualquer tipo de homenagem. No interior deste mesmo campo, tao conservador, existem sujeitos que realizam uma forte contestacao a ordem posta e aos pressupostos que Gilmar Mendes maneja em seu fazer juridico. Como se materializa este questionamento da ordem? Quem sao e o que pretendem os sujeitos que se colocam nessa perspectiva?

    Estes questionamentos apontam para o conflito entre perspectivas opostas que incidem sobre o campo juridico e nos colocam a necessidade de compreender o papel das ideologias na sua conformacao. No primeiro momento deste trabalho, cumpre delimitar o sentido em que a categoria ideologia esta sendo empregada. Posteriormente, sao analisadas--desde um ponto de vista ontologico, isto e, comprometido com a funcao que as ideologias exercem no movimento real dos embates travados entre forcas opostas, tais orientacoes ideologicas em questao.

    As reflexoes aqui presentes sao parte das analises empreendidas na tese de doutorado da autora, ainda em andamento, a respeito das perspectivas ideologicas presentes nas praticas da assessoria juridica universitaria popular, segmento atuante no contexto da educacao juridica brasileira. Parte da pesquisa de campo realizada para a tese e aqui utilizada como recurso metodologico capaz de situar as reais disputas entre orientacoes distintas na formacao ideologica do campo juridico, recorrendo a episodios ocorridos no Nordeste do pais, recorte da analise no trabalho doutoral.

  2. Ideologia: uma consciencia pratica para o conflito.

    Para compreender o que levou Gilmar Mendes a ser homenageado na Paraiba, e necessario situar a importancia das ideologias na formacao do campo juridico. Isso porque as ideologias nao estao soltas no mundo das ideias de forma descolada da realidade, mas postas em movimento para incidir nos conflitos reais entre as classes e grupos sociais, embates estes presentes no mundo do direito de forma contundente.

    Esta compreensao da ideologia se insere no quadro teorico de Istvan Meszaros, centralmente em O Poder da Ideologia (2004); nas formulacoes de Karl Marx, sobretudo no Prefacio da Critica a Economia Politica (1859); e nas de Gyorgy Lukacs em Para uma Ontologia do Ser Social (1968): e uma forma de consciencia social orientada para a acao, legitimadora de certos posicionamentos (sejam de conservacao ou de manutencao da ordem) existentes em funcao de interesses conflitantes materialmente presentes nas sociedades de classes. Nas palavras de Meszaros (2004, p.65), a ideologia e constituida objetivamente como "uma consciencia pratica inevitavel das sociedades de classe, relacionada com a articulacao de conjuntos de valores e estrategias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus principais aspectos".

    As ideologias sao, com argumenta Marx (2008) aquelas formas de consciencia atraves das quais os homens e as mulheres se dao conta dos conflitos fundamentais da sociedade, tomando partido nesses conflitos e os resolvendo pela luta. Nao pertencem, portanto, apenas ao mundo da consciencia; tem o poder de operar materialmente; incidir, de fato, na realidade. No entendimento de Lukacs (2013, p.465), "a ideologia e, sobretudo, a forma de elaboracao ideal da realidade que serve para tornar a praxis social humana consciente e capaz de agir". Tal compreensao da ideologia assume uma perspectiva ontologica, colocando o problema do ponto de vista da incidencia pratica das ideologias na realidade--buscando identificar sua atuacao e sua funcao social (Idem, p.480).

    Esta delimitacao do que se toma por ideologia e necessaria porque o termo possui uma historia bastante polemica, confusa e complexa (EAGLETON: 1996, p.187), havendo alto grau de divergencia em relacao ao seu uso, mesmo no interior da tradicao marxista, responsavel pelos seus mais significativos contornos.

    O termo ideologia surge em meio a uma disputa politica entre Napoleao Bonaparte e certo grupo de filosofos do inicio do sec. XIX, representados por Destutt de Tracy, empenhados em construir uma ciencia que explicaria a formacao fisiologica das ideias--a ideologia (EAGLETON: 1997, p.67 a 71; KONDER: 2002, p.22; CHAUI: 2006, p.25 a 28). O projeto foi apoiado por Napoleao na Franca pos-revolucionaria, mas tao logo o grupo comecou a apresentar divergencias em face das pretensoes restauradoras e autoritarias bonapartistas, instalou-se o conflito que levaria Napoleao a persegui-los e atribuir-lhes a alcunha pejorativa "ideologos", sugerindo que eles estavam demasiadamente ocupados com o mundo das ideias, desqualificando a sua posicao de adversarios no ambito da politica, no qual supostamente eram incompetentes para incidir.

    No uso comum, costuma-se identificar ideologia com um tipo de conhecimento desqualificado porque apaixonado, tipico de quem esta demasiadamente proximo de um objeto para emitir um julgamento desejavelmente imparcial (5). Um pensamento ideologico, dentro dessa perspectiva, levaria a uma distorcao da compreensao por conta de rigidos pre-conceitos, gerando uma equivocada percepcao do mundo. Para evitar tal equivoco, deveriamos nos portar de modo "razoavel" e "cientifico" a respeito da analise da realidade, postura que, ironica e ideologicamente, quase sempre coincide com a posicao de quem empreende tal critica - dai a ideologia ser, no dizer de Terry Eagleton (1997, p.16), algo como um mau halito: sao sempre os outros que tem e nunca o identificamos em nos mesmos.

    Este uso que o senso comum confere ao termo relaciona as ideologias a um problema de cognicao, ou seja, elas decorreriam de formas equivocadas de conhecer, perceber a realidade. Na verdade, esta e tambem a orientacao central no tratamento teorico a respeito do tema, inclusive no marxismo, a que chamamos de perspectiva gnosiologica (6).

    A perspectiva gnosiologica, ou seja, ocupada com a falsidade do pensamento como um elemento caracterizador da ideologia, comete o equivoco de situar o problema das ideologias no campo da cognicao. E como se as ideologias estivessem ligadas meramente ao plano da consciencia, compreensao que tende ao cultivo de uma atitude idealista, de que bastaria o pensamento se encontrar com a "verdade" para operar a mudanca na realidade (sugerindo, implicitamente, que o sujeito politico da historia e aquele que "conhece" e nao as classes sociais). Outro problema e que a perspectiva gnosiologica reforca um entendimento meramente pejorativo da ideologia, vista apenas como o ponto de vista dominante e se concentrando na sua critica, em vez de investir na analise dos embates ideologicos nos quais a orientacao dominante e enfrentada por forcas de contestacao e transformacao da ordem. Dessa abordagem resulta uma postura equivocada quanto ao potencial efetivo de incidencia das ideologias na pratica social, que pode e deve ser utilizada a favor dos processos de emancipacao.

    Esta forma de ver esta certamente relacionada ao modo como Marx e Engels colocaram o problema em A ideologia Alema (1847). A partir das ideias apresentadas ali, a nocao de ideologia se consolidaria em parte da tradicao marxista como uma falsa consciencia da realidade que colabora para a manutencao da ordem dominante. No entanto, Marx e Engels jamais conceberam a ideologia como um mero problema de cognicao, ligado unicamente ao plano da consciencia. Pelo contrario, as formas ideologicas possuem claramente, nas analises contidas naquela obra, uma base material real, que e a producao da vida dos homens, as relacoes efetivas que estabelecem uns com os outros ao interagir com a natureza e construir o mundo social. Ainda que essas ideias possam parecer autonomas, elas nao tem historia propria; sendo, antes, a vida real que determina o plano da consciencia (MARX E ENGELS: 1981, p.29 e 30). Dai resulta que este plano da consciencia nao e algo isolado, que poderia, dessa forma, incorrer numa correta ou falsa atitude cognitiva, desvinculada das posicoes que os sujeitos ocupam na sociedade. Antes, os processos de consciencia se relacionam dialeticamente com uma base material, interagem efetivamente com essa base, formulando a compreensao dela de modo a justificar as relacoes reais que se estabelecem em seu seio.

    Assim, os processos de consciencia operam como uma forca real, ou seja, incidem na realidade--extrapolam, portanto, a questao da cognicao; da correta ou falsa apreensao da realidade. A ideologia nao se trata de algo que permaneca no pensamento; e um meio de luta social e diz respeito, portanto, a praxis (LUKACS, 2013, p.464 e 465). Por isso, para compreender adequadamente o problema da ideologia, e necessario...

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