O papel civilizatório dos direitos humanos: diálogo com Bobbio e Elias

AutorMarcelo Weishaupt Proni e Thaíssa Tamarindo da Rocha Weishaupt Proni
Páginas161-194
Direito, Estado e Sociedade n.51 p. 161 a 194 jul/dez 2017
O papel civilizatório dos direitos humanos:
diálogo com Bobbio e Elias
The civilizatory role of human rights: a dialogue with Bobbio
and Elias
Marcelo Weishaupt Proni*
Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, Brasil
Thaíssa Tamarindo da Rocha Weishaupt Proni**
Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, Brasil
Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mes-
mo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos,
não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para
a solução pacíf‌ica de conf‌litos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade
dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos
alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a
guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas
deste ou daquele Estado, mas do mundo1.
Como ser humano, o indivíduo tem direitos que nem mesmo o Estado pode
negar-lhe. Estamos somente numa etapa inicial da transição para o estágio
de integração mais abrangente e a elaboração do que se pretende dizer com
direitos humanos está apenas começando. Mas a liberdade de não usar nem
ameaçar o uso da violência talvez tenha recebido, até o momento, uma aten-
ção demasiadamente pequena como um dos direitos que, no correr do tempo
[...], terá que se af‌irmar a favor do indivíduo, em nome da humanidade2.
* Professor Livre Docente do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: mwproni@unicamp.br.
** Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP e Doutoranda em Ciências Sociais pelo Instituto de
Filosof‌ia e Ciências Humanas da Unicamp. E-mail: thaissa.rocha@gmail.com.
1 BOBBIO, 2004, p. 1.
2 ELIAS, 1994, pp. 189-190.
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1. Introdução
Em diversos ramos do Direito, é frequentemente ressaltada a necessidade
da efetividade das leis e do aprimoramento das instituições jurídicas para
o progresso civilizatório. E, como sugerem as duas epígrafes acima, pre-
valece a crença de que o respeito a direitos universais seja capaz de unir
os povos (a humanidade) em torno de um padrão de convivência mais
civilizado. Contudo, após 70 anos da proclamação da Declaração univer-
sal dos direitos humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, é fácil
constatar que permanece uma profunda desigualdade entre as nações no
que se refere à garantia e à proteção dos direitos humanos, tais como são
entendidos atualmente.
No Brasil contemporâneo, há múltiplos exemplos de condutas que
violam as regras de civilidade: as mortes violentas impunes, as agressões
domésticas, as brigas entre torcidas de futebol, as transgressões no trân-
sito, os crimes hediondos, a violência policial, os presídios superlotados,
o racismo, a homofobia. Por isso, há bons motivos para duvidar de que
tenha havido um avanço signif‌icativo do estágio civilizatório no País após
a expansão dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988.
O artigo pretende colocar o tema em discussão por meio de um diá-
logo com as abordagens teóricas de Norberto Bobbio e Norbert Elias, que
fundamentam esse debate. São enfatizados os pontos de convergência e
divergência entre as duas abordagens, especialmente no que se refere à
correspondência entre a promoção dos direitos humanos e a elevação do
padrão de civilidade. A conjugação das duas abordagens permite constatar
que os direitos humanos são resultado e, ao mesmo tempo, condição para
o avanço civilizatório, embora sua ef‌icácia não seja automática nem inexo-
rável. Argumenta-se que o poder coercitivo da lei só é plenamente efetivo
na regulação da conduta dos indivíduos quando reforçado por regras morais
compartilhadas e uma cultura da tolerância.
O artigo é composto por cinco seções, além desta introdução. A próxima
apresenta breve esclarecimento sobre o nexo entre Direito e civilização.
Em seguida, o papel civilizatório dos direitos humanos é examinado na
perspectiva de Bobbio. Na sequência, são explicadas as principais proposi-
ções apresentadas por Elias sobre o processo civilizador. A seção seguinte
contrapõe essas duas interpretações para discutir o argumento de que a
expansão dos direitos humanos pressupõe e, ao mesmo tempo, induz um
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padrão civilizatório mais avançado. E a seção f‌inal traz considerações sobre
o desaf‌io da efetivação dos direitos humanos no Brasil contemporâneo.
2. Direito e civilização
O Direito está ligado geneticamente às tradições, costumes e padrões mo-
rais de cada povo, é essencial para a manutenção da ordem social, e vai
se modif‌icando à medida que se renovam os interesses e necessidades
sociais ao longo do tempo3. Do ponto de vista f‌ilosóf‌ico, pode ser enten-
dido como necessário para a existência de instituições promotoras de um
padrão de civilidade nas relações sociais4.
A Revolução Francesa é considerada um divisor de águas na história do
Direito em razão da formação de um ordenamento jurídico constitucional
moderno, com clara separação entre a esfera pública e a esfera privada,
sendo relevante mencionar a transformação dos códigos e normas (começa
com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, 1789, e culmina com
o Código civil, 1804) e a adoção de novos parâmetros e instrumentos para
regular a conduta dos indivíduos5.
A partir do século XIX, nas sociedades europeias e americanas em tran-
sição para a modernidade, o desenvolvimento da economia de mercado, a
transição para uma sociedade urbano-industrial e a instauração do regime
republicano (ou da monarquia constitucional), em meio à inf‌luência do
iluminismo e do liberalismo, provocaram uma metamorfose da civilização
no Ocidente e fortaleceram a crença na força irresistível do progresso e da
razão6. Em paralelo com a ação civilizatória das normas morais transmi-
tidas pela religião e pela educação laica, a consolidação de um novo am-
biente jurídico-institucional alterou regras, normas, convenções e hábitos
que condicionam o comportamento social dos indivíduos e abriu novas
possibilidades de ação para os atores sociais.
O papel atribuído ao Direito no novo contexto histórico ultrapassa a
constatação de que se trata de um instrumento de legitimação da ordem
3 COULANGES, 2006, p. 417.
4 NUNES, 2009, p. 152.
5 CICCO, 2009, p. 165.
6 POLANYI, 1980, cap. 1 e 12.

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