Palavra e Imagem: A Reforma Religiosa do Século XVI e a Arte

AutorMartin N. Dreher
Páginas199-213

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É evidente* que desde sua inserção no Brasil, iniciada em 1824 com a vinda dos primeiros imigrantes alemães acatólicos, o protestantismoPage 200desenvolveu uma cultura própria, objeto de vários estudos1 . Basta olhar os diferentes templos protestantes para podermos verificar, p. ex., que desenvolveram arquitetura própria. Entre os luteranos, reunidos em duas denominações, verificamos que o templo é um misto de tradições luteranas e calvinistas, já que luteranos e calvinistas eram os alemães imigrantes.. Enquanto em seu interior permanecem o altar com crucifixo, velas, flores e paramentos, as paredes internas do templo são desprovidas de qualquer plástica ou adorno, combinando-se assim tradições luteranas e rigor calvinista. No exterior, o campanário encimado por cruz, os vitrais e os sinos vão apresentado outras características. Já entre aquelas denominações protestantes marcadas pelo calvinismo, muitos símbolos presentes no catolicismo e no luteranismo estão ausentes por representarem “crendice católica”. O crucifixo e a cruz, as velas, as flores e o altar desaparecem, torres, vitrais e sinos igualmente. Lugar central vai ter o púlpito que substitui o altar, com o que o culto protestante fica centrado na figura do pregador, em sua eloqüência e ortodoxia. O mesmo vai se reproduzir no pentecostalismo. Quando procuramos entender as razões desta cultura arquitetônica, que se reflete também em outros aspectos da vida protestante, via de regra somos remetidos à questão do biblicismo e à proibição da confecção de imagens, contida no Antigo Testamento. Na realidade, porém, as razões apontadas têm raízes mais profundas que remontam ao século XVI e a um aspecto pouco estudado na reforma religiosa daquele século, qual seja o iconoclasmo.

I - Iconoclasmo

Na primavera de 1522 aconteceu, em Wittenberg, na Saxônia Eleitora, principal campo de atuação de Martinho Lutero e centro de irradiação da Reforma em sua acepção luterana, o início de uma das maiores catástrofes na história da humanidade2 . O conselho da cidade determi-Page 201nara a retirada das imagens das igrejas. Quando se começou a executar a decisão dos conselheiros municipais, a multidão reunida na frente da igreja da cidade invadiu o templo, arrancou as imagens das paredes, quebrou-as e terminou por queimar tudo do lado de fora. Em questão de minutos, uma paixão brutal destruiu o que para gerações de cristãos medievais fora objeto de veneração religiosa3 . O fato não ficou restrito a Wittenberg, mas foi o primeiro sinal de um iconoclasmo que varreu boa parte da Europa. Onde os iconoclastas passaram, os templos ficaram como lavouras após uma chuva de granizo. Antiguidades e obras de arte foram destruídas sem piedade.

Aquilo que aconteceu em Wittenberg não pode ser descrito como ato imprevisível e próprio do populacho. Se assim tivesse sido, não terse-ia repetido em muitos outros lugares, principalmente naqueles em que a Reforma se instalava. Em poucas horas foram destruídas obras de arte que várias gerações haviam colecionado nas igrejas. Aqueles afrescos que não puderam ser destruídos foram cobertos com uma demão de cal. Igual a uma epidemia, o iconoclasmo se alastrava por todas as regiões. Assim foi na Suíça, na Holanda, na Escócia. Um vento furioso passou por dentro da Igreja. E o mais interessante é que são poucos os historiadores que se referem a ele, permitindo que o iconoclasmo continue a ser praticado até os nossos dias.

Narra-se com detalhes a destruição de castelos pelos camponeses rebelados na Guerra dos Camponeses4 . Mas, enquanto a queima dos castelos foi um ato de vingança contra a nobreza, que por longo tempo explorara os camponeses, o iconoclasmo dirigiu-se contra estátuas, pinturas e crucifixos mudos e inofensivos, indefesos. O terrível disso tudo é que cristãos, munidos de machados e martelos, se levantaram contra objetos sacros, em locais consagrados, ante os quais até a pouco se haviam ajoelhado. Quem se ocupa com a história da arte vai classificarPage 202o fato como barbárie. Quem o observa como historiador, também interessado na temática da religião e da religiosidade, vê nele sinal assustador de alerta. Temos aqui uma rebelião espiritual, que atacou a tecitura religiosa da ordem ocidental. Cristãos destruíram a linguagem da imagem que durante séculos havia orientado os cristãos. E o culpado pela destruição não foi o povo, mesmo que ele tenha realizado a ação; os culpados foram pregadores que, a partir do púlpito, incitaram ao iconoclasmo.

Se, porém, levarmos em conta que grandes transformações jamais têm apenas uma causa, também o iconoclasmo não pode ser creditado somente a pregadores. Deve haver causas mais profundas que provocaram a ação dos cristãos de Wittenberg e de outras localidades européias. Os motivos que levaram ao iconoclasmo são os precursores dos poderes caóticos que dominaram a Modernidade, mas que devem ser discutidos. Será por acaso que neste mesmo século XVI iconoclastas, vindos do continente europeu, buscaram destruir toda a arte da América pré-colombiana?

O mentor intelectual do iconoclasmo em Wittenberg foi Andreas Bodenstein, de Karlstadt5 . Professor na universidade local, espírito profundamente religioso e inquieto, confuso até, ele lutou como Lutero pelo centro do Evangelho, buscando aplicá-lo a sua vida. Para fazer frente às exigências do Evangelho, abandonou sua função de pregador e foi viver como camponês, não admitindo mais ser designado de professor ou de doutor, mas simplesmente de “vizinho Andreas”. Ardoroso em sua maneira de ser, mas falho no tocante à reflexão sobre a conseqüência de seus atos, Karlstadt assumiu a direção do movimento reformatório em Wittenberg, enquanto Lutero se encontrava no Wartburgo, onde se refugiara após a Dieta de Worms, oportunidade em que foi banido por Carlos V. Com seu temperamento intempestivo, quis concretizar de imediato as novas idéias gestadas em conseqüência da redescoberta da teologia da cruz e da justificação6 , mesmo que em suas próprias formulações não estivessem nada claras. Assim, ele foi o primeiro a refletir sobre cruz, justificação e imagens. No inverno de 1521/22, escreveu e publicou livretoPage 203com o título Da eliminação de imagens (Vom Abtun der Bilder). O livro é diminuto, tem poucas páginas, mas teve grandes conseqüências, provocando a destruição de muitas obras de arte. Segundo Karlstadt, não se pode tolerar imagens nas igrejas, pois afrontam o primeiro mandamento do decálogo. Os “ídolos de óleo”, colocados sobre os altares, são invenção do demônio. Karlstadt tomou posição não somente contra esculturas, mas contra pinturas, a nova tendência na arte do Renascimento e da Reforma. Basta lembrar os trabalhos de Mestre Grünewald, Albrecht Dürer, Lucas Cranach, Michelangelo. Karlstadt rompeu também com uma convicção que vinha fundamentada desde Gregório Magno, para o qual as imagens eram os livros dos leigos7 . Ao ler o Antigo Testamento, Karlstadt considerou as imagens proibidas e repetiu as palavras dos profetas contra as imagens das divindades pagãs. Por isso conclamou a autoridade civil e o povo a destruírem as imagens existentes nas igrejas. Há autores que consideram Karlstadt o primeiro puritano. Assim, o emergente puritanismo seria responsável pelo iconoclasmo.

A conclamação de Karlstadt encontrou ouvintes, como sempre acontece em épocas conturbadas. Mas como ele conseguiu provocar a explosão que perpassou a Europa? Aparentemente Karlstadt deve ter sido um veiculador de idéias que outros a seu lado já estavam externando. O povo não teria dado ouvidos a ele, caso não participasse de um todo, que qual uma represa esperava para estourar. A ira popular também deve ser entendida como uma explosão e revolta contra as formas que a devoção a imagens havia assumido no final da Idade Média. Na percepção de muitos pregadores puritanos, elas não estavam mais a serviço da piedade, e a relação entre arte e religião não seria mais correta. Por um lado, o culto às imagens era muito grande; por outro, o Renascimento provocara o surgimento de uma “arte religiosa” confeccionada por pintores nada religiosos. Pinturas voluptuosas eram vistas por pessoas piedosas como não tendo mais nada a ver com a religião. Já Savonarola se voltara contra tais pinturas, e...

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