Os pais de fato

AutorVinicius Pinheiro Marques/Nadhya Souza Santana
CargoProfessor/Estudante De Direito
Páginas128-144

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Com a evolução social a sociedade sofre sucessivas transformações em decorrência das variações no espaço e tempo, de tal forma que a família nuclear passa a mudar o seu conceito e estrutura.

A concepção que outrora se tinha de família era aquela composta por uma figura paterna (homem), uma figura materna (mulher) e a prole. Entretanto, hodiernamente a estrutura familiar não é mais composta basicamente pela prole comum dos nubentes, bem como a figura paterna ou materna não é mais restrita ao elo genético ou presunção legal, mas se dá pela convivência afetiva. Some-se a isso que a carta constitucional equiparou o tratamento aos filhos; assim, sendo eles havidos dentro ou não do matrimônio, passam a ter direitos igualitários, vedada qualquer forma de discriminação.

O estado de filiação é um conjunto de direitos e obrigações dos genitores para com seus filhos no qual aqueles, em decorrência do poder famíliar, possuem a responsabilidade de suprir as necessidades destes, a fim de proporcionar o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente.

Sob essa óptica surge a discussão a respeito do direito ao reconhecimento da filiação socioafetiva, na qual se aprecia o valor jurídico do afeto na convivência familiar. E dessa maneira vê-se necessário proteger juridicamente aqueles que são tidos como filho, mesmo que não possuam laço biológico, com o propósito de garantir-lhes o direito da filiação afetiva no assento de nascimento e os efeitos jurídicos desinentes.

Assim, em um primeiro momento, o presente trabalho através da análise legislativa e entendimento doutrinário demonstrará a desbiologização do conceito de família, reconhecendo o valor jurídico do afeto consubstanciado principalmente nos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade no ambiente de convivência familiar.

Observar-se-á que as relações paterno-filiais ou materno-filiais não podem mais ser consideradas tão somente de acordo com o vínculo hereditário consanguíneo, haja vista que pai e mãe são aqueles que ofertam amor, participam ativamente na vida do filho, arcam com o ônus material e lhes dão afeto. Logo, é correto o ditado que diz: pai/mãe é aquele(a) que cria.

Ademais, em momento posterior, examinar-se-ão os direitos pessoais decorrentes do reconhecimento da socioafetividade estabelecida, enfatizando-se que o filho, independente da origem filial, tem direito ao nome, à parentalidade registral e à convivência familiar. Nesse tópico ainda aborda-se ser possível judicialmente pleitear a multiparentalidade registral, isto é, diante do caso concreto o magistrado, à luz do princípio da proteção integral e dignidade humana, poderá permitir a inclusão no registro de nascimento do nome do pai ou mãe socioafetivo, permanecendo ainda o nome de ambos os pais biológicos, e vice--versa.

Por fim, no último capítulo, destacam-se os direitos patrimoniais advindos da qualidade de filho estabelecida no mundo jurídico, sendo esses o dever de prestar alimentos e os direitos sucessórios.

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Como fonte de estudo será utilizada a legislação pátria vigente e os conceitos e apontamentos trabalhados pelos doutrinadores acerca do tema.

1. A evolução do afeto enquanto valor jurídico

A família é a base fundamental da sociedade e com a evolução social sofre constantes mudanças de origem, composição, estrutura e de modo consequente a sua concepção. Preconiza Venosa (2017, p. 3) que “entre os vários organismos sociais e jurídicos, o conceito, a compreensão e a extensão de família são os que mais se alteraram no curso dos tempos”:

A célula básica da família, formada por pais e filhos, não se alterou muito com a sociedade urbana. A família atual, contudo, difere das formas antigas no que concerne a suas finalidades, composição e papel de pais e mães. (p. 5)

Necessário é compreender que um grupo familiar é formado a partir do afeto, e também como será o vínculo afetivo que irá refletir no desenvolvimento de seus membros:

Família, afinal, é o lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é aí que se inicia e se desenvolve todo o processo de formação da personalidade do sujeito. A família deixou, portanto, de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do amor e do afeto. (Pereira, 2009, p. 2)

Nesse contexto o direito surge com a finalidade de reconhecer a entidade familiar e dar proteção legal, definindo um conceito próprio para o que é família. Contudo, o legislador deve adaptar a norma legal às constantes transformações ocorridas na sociedade.

Nas antigas civilizações, como em Roma, a família não era construída com base no afeto, mas sim pelo culto doméstico prestado aos seus antepassados. Como bem assevera Venosa (2017, p. 4), “no Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo de ligação entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamento da família romana”.

Convém aduzir que o vocábulo afeto, mesmo tendo uma conotação abstrata, pode ser compreendido pelo sentimento nutrido de carinho e cuidado que as pessoas desenvolvem mutuamente. Dentro da estru-tura familiar o afeto é considerado primordial para o bom relacionamento entre aqueles que compõem o seio familiar.

Ademais, sob o prisma da criança, o vínculo afetivo tem um papel de grande importância no seu pleno desenvolvimento, haja vista que é durante a infância que irá se criar o vínculo com seus genitores e demais componentes do grupo familiar em que está inserido.

No Brasil, com o advento do Código Civil de 1916, o direito de família pouco se preocupou com o vínculo afetivo, porquanto a filiação era classificada consoante a origem, ou seja, os filhos havidos dentro do matrimônio eram considerados legítimos, já aqueles advindos de uma relação extramatrimonial eram tidos como ilegítimos e, por conseguinte, não recebiam a mesma proteção jurídica do legislador.

O revogado código, que vigorou por mais de 80 anos, ao dispor em seu artigo 332 que “o parentesco é legítimo, ou ilegítimo, segundo procede, ou não de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consanguinidade, ou adoção”, trouxe severas distinções quanto ao reconhecimento da filiação, ou seja, não estabeleceu tratamento isonômico entre a prole (o art. 332 foi revogado em 1992 pela Lei 8.560/92).

Todavia, deve-se compreender que o direito à filiação ultrapassa o vínculo matrimonial e sanguíneo, e seu reconhecimento não pode ser obstado pela pseudoimagem da indissolubilidade do casamento. Ora, o filho havido dentro ou fora do casamento, com ou sem elo biológico, tem o direito de ter trato isonômico, bem como de ser reconhecido legalmente:

O afeto, com ou sem vínculos biológicos, deve ser sempre o prisma mais amplo da família, longe da velha asfixia do sistema patriarcal do passado, sempre em prol da dignidade humana. Sabido é que os sistemas legais do passado não tinham compromisso com o afeto e com a felicidade. (Venosa, 2017, p. 8)

A partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 rompe-se com a distinção dos filhos legítimos e ilegítimos, sendo instaurada uma nova ordem social, instituindo-se como um dos princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana. Foi inserida a seguinte disposição no artigo 227, § 6º, da CF: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos

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e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

É a dignidade da pessoa humana que permite e deter-mina que seja destinado tratamento igualitário aos filhos, independentemente de sua origem, se advêm ou não do casamento. Por ser princípio fundamental, dita um limite de atuação do Estado e garante que a partir dele se promova a dignidade da pessoa humana, valor espiritual e moral inerente à pessoa. (Zeni, 2009, p. 70)

Desenhou-se um novo modelo familiar, o que refletiu na elaboração de um novo Código Civil, promulgado em 2002, o qual é alicerçado em princípios básicos como solidariedade, liberdade, afetividade e igualdade. Além de não mais estabelecer diferenças sob o prisma jurídico da prole de relações não matrimoniais, passou também a tutelar a equiparação da filiação do filho socioafetivo:

O Código Civil de 2002, ao reconhecer parentesco nas relações socioafetivas, ex vi art. 1.593, ampliou as possibilidades fáticas de filiação, como veio reconhecer o Superior Tribunal de Justiça: “... Por filhos de qualquer condição deve-se entender, também, aquela pessoa que foi acolhida, crida, mantida e educada pelo militar, como se filha biológica fosse, embora não tivesse com ele vínculo sanguíneo...” (nader, 2016, p. 313)

Vê-se que o legislador reconheceu a importância do afeto nas relações parentais sendo possível afirmar que o vínculo afetivo possui valor jurídico:

Nesse diapasão, dos aspectos ligados à filiação, no que se refere aos direitos equitativos independentemente de vínculo biológico, conclui-se que o ordenamento jurídico atribuiu, implicitamente, valor jurídico ao afeto, não sendo somente um aspecto social ou psicológico. Assim, a filiação baseada na relação afetiva merece o mesmo patamar de igualdade e reconhecimento, considerando-se a afetividade como base das relações filiais (andrade, 2014, p. 2).

Destarte, cabe trazer à baila que se pode analisar o afeto sob dois aspectos: primeiro, quanto a seu papel essencial para o desenvolvimento pleno da criança dentro do arranjo familiar; e segundo...

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