Pagamento por tonelada: a ilicitude do sistema remuneratório dos cortadores de cana-de-açúcar

AutorLuiz Carlos Michele Fabre
CargoProcurador do Trabalho lotado na PTM de São José dos Campos
Páginas106-123

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I Introdução

O último Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho do INSS anota, no ano de 2007, 9.084 acidentes de trabalho (8.003 acidentes-tipo, 279 acidentes de trabalho por equiparação e 52 doenças do trabalho) relacionados ao cultivo de cana-de-açúcar (código 113 do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas). Integram este índice
4.040 casos de incapacitação para o trabalho por prazo superior a 15 dias, 38 casos de incapacidade permanente e 31 óbitos. O número de óbitos não contempla casos não notificados nos quais não houve requerimento de benefício previdenciário por dependentes1.

Inexistem estatísticas especificamente alusivas a acidentes com cortadores de cana (uma dentre a vasta gama de atividades desenvolvidas na cadeia produtiva do álcool e do açúcar) e os números desta atividade são obtidos por meios precários, como bancos de dados de entidades não governamentais elaborados a partir de denúncias ou notícias de jornal. Muito menos, há dados precisos sobre a relação direta de causalidade entre a morte de cortadores de cana e a exaustão decorrente do trabalho. Em todo caso, um levantamento rudimentar

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da Pastoral do Migrante de Guariba (SP) noticia pequenas histórias de vida de 22 migrantes cortadores de cana-de-açúcar que, entre 2004 e 2008, foram vítimas fatais de acidentes de trabalho no interior de São Paulo. Com idades entre 24 e 55 anos e provenientes do Norte de Minas Gerais e do Nordeste, a maioria teve registro de parada cardiorrespiratória como causa mortis, ocorrência que sucede o cansaço extremo2.

Não obstante a precariedade com que tais números foram obtidos, é um truísmo afirmar que condições penosas de trabalho no setor sucroalcooleiro conduzem a tantos outros números de óbitos dissimulados pelas informalidades do setor, bem como ao encurtamento da vida economicamente útil de centenas de trabalhadores.

II A atividade de corte de cana-de-açúcar

Para compreender o que acontece no setor, Francisco Alves, professor adjunto do Departamento de Engenharia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR-SP), realizou minucioso estudo em 2006 em que restou comprovada a indissociabilidade entre tal cenário e o sistema remuneratório do cortadores de cana-de-açúcar, que hodiernamente observa, como regra, o pagamento de determinado preço pela quantidade de toneladas diárias cortadas por cada trabalhador ou a conversão do valor da tonelada de cana-de-açúcar para a metragem da área trabalhada3.

No início dos anos 80, o País foi contagiado pela febre da segunda fase do Pro-álcool, o maior programa público mundial de produção de combustível alternativo. Foi um marco na história da usinagem, caracterizado pelo substancial aumento da demanda por álcool.

Como consequência, houve intenso crescimento da produção de cana-de-açúcar e o surgimento de novas destilarias e usinas, com o aumento do número de empregos em toda a cadeia produtiva.

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Cresceu também, nesse período, a produtividade do trabalho no corte de cana, medida em toneladas de cana cortadas por dia/homem ocupado na atividade. Na década de 1950, a produtividade do trabalho era de 3 toneladas de cana cortadas por dia de trabalho; na década de 1980, a produtividade média passou para 6 toneladas de cana por dia/ homem ocupado e, no final da década de 1990 e início da presente década, atingiu 12 toneladas de cana por dia4.

O trabalho no corte da cana, há tempos, é remunerado conforme a produção diária de cada cortador. Tal tradição empolga duas metodologias de medição da produtividade e, consequentemente, duas formas de remuneração: pode-se eleger a distância da área trabalhada (metragem linear ou metragem quadrada do eito trabalhado) ou a quantidade de cana cortada (tonelada).

Como é intuitivo, o sistema de remuneração pela metragem da área cortada é preferível para o trabalhador em relação ao sistema de remuneração por tonelada, pois a qualquer um é possível, com base no senso comum, aferir visualmente a área de cana cortada e calcular o valor do seu dia de trabalho. Este modelo era frequente até os anos 80: a área em que cada trabalhador obrava formava um retângulo chamado de eito, com 6 metros de largura (o equivalente a 5 ruas, ou seja, linhas em que são plantadas a cana5) e com cumprimento variável conforme a quantidade que cada cortador conseguia cortar por dia. Ao final deste dia, o encarregado da empresa passava um compasso de dois metros com ponta de ferro para precisar a área trabalhada e o trabalhador recebia um recibo (pirulito) com o valor da medição.

Para o empregador, ao invés, é mais benéfico deter o controle da quantificação do dia trabalhado, com o que empreendeu pressões até que o sistema remuneratório por toneladas se tornasse prevalente6.

De fato, a aferição do peso da cana cortada é incalculável icto oculi,

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eis que a massa da cana está sujeita a diversas variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo, sombreamento, época do corte, quantidade de socas7, etc.). Destarte, a valoração do dia trabalhado passa a depender de grandes balanças que não podem ser conduzidas às frentes de trabalho e a medição do dia de trabalho vai se realizar no interior da usina.

Nas frentes, após o dia de trabalho, o encarregado passa o compasso e mede a área trabalhada. Depois, na usina são pesados alguns punhados de cana oriunda de partes distintas do eito trabalhado, chegando-se ao peso médio da cana no espaço trabalhado no dia. Sabendo-se o peso, a área do eito e o valor da tonelada da cana, chega-se ao valor do metro de cana cortado. Esta complexa conversão é empreendida no interior da usina, sem controle pelo trabalhador.

Muitas vezes, os trabalhadores sabem que cortaram uma quantidade de metros elevada, mas como a cana pode ser de pouco peso, cana de 5ª soca, eles acabam tendo um ganho pequeno. Desta forma, fica claro que o pagamento por produção, além de ser uma forma de pagamento arcaica, perversa e desgastante, no caso da cana é mais perverso ainda, pois o ganho não depende apenas dos trabalhadores, mas de uma conversão feita pelo departamento técnico das usinas8.

Em síntese, o que temos é um sistema remuneratório em que o empregado perde a noção do valor do seu dia de trabalho. Considerando a necessidade de garantir o seu sustento e de sua família, bem como a necessidade de acumular remuneração para sua subsistência na entressafra, o corolário deste sistema é que o empregado trabalhará até o limite de suas forças, o que, sob a ótica do empregador, maximiza os ganhos.

A este fator de esgotamento, somam-se dois outros importantes elementos: a indumentária do trabalhador rural e a pressão por produtividade.

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Com efeito, não bastasse este modelo remuneratório extremamente propício à exaustão do trabalhador (e nem estamos tratando, aqui, da sua extrema suscetibilidade a fraudes e manipulações, que não são raras), não se deve olvidar que o uniforme do cortador de cana é composto por botina com biqueira de aço, perneiras de couro até a altura dos joelhos, calça de brim, camisa comprida com mangote de brim9, luvas de raspa de couro, lenço para o rosto e pescoço, e chapéu. É sob essas pesadas vestimentas, carregando um pesado podão (facão) e fardos de cana, que o cortador labora, muitas vezes sob sol forte e de sol a sol.

Desgastante, o trabalho importa em centenas de flexões, pois o trabalhador deve agarrar um feixe com cerca de dez pés de cana, flexionar as pernas e cortar a cana rente ao solo, onde se concentra a sacarose, tomando cuidado para não atingir a raiz e prejudicar a rebrota. Depois, golpeia o pendão (topo do pé), cujas folhas verdes são economicamente inúteis. Somado tamanho esforço ao calor gerado pelas vestimentas, o resultado no organismo é a perda de líquidos e de sais minerais (razão pela qual o biótipo ideal do cortador é o de um corredor maratonista, de resistência, e não de um atleta de tiro, musculoso).

Comumente, estes fatores desencadeiam desidratação e câimbras nas extremidades do corpo, que avançam até o tórax; estas câimbras são chamadas de birola e causam fortes dores e convulsões, daí a imprescindibilidade de a) manter-se esquema de fornecimento de água e de suplementos energéticos em abundância, b) equipar as frentes de trabalho com kits de primeiros socorros e, sobretudo, com bastante soro, c) ministrar-se treinamento em primeiros socorros a empregados e fiscais de turma; d) observar-se rigorosamente o intervalo intrajornada e as pausas prescritas pela NR-15; e e) realizar-se exames médicos regularmente.

Em alguns casos, este quadro evolui para paradas cardíacas e para o óbito; na melhor das hipóteses, há “apenas” a redução da vida economicamente ativa do empregado.

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Este quadro é, ademais, intensificado pela pressão por produtividade, por trás da qual estão os usuais contratos de experiência rural (que muitas vezes se sucedem a cada safra), que assumem um desiderato específico de selecionar a mão de obra mais resistente e capaz de atender à meta de produtividade diária10.

Inexistem dados estatísticos precisos acerca da quantidade média de cana cortada por empregado no País ou por região, passando a questão pela análise de casos concretos a partir de diligências fiscalizatórias. Há casos pontuais de trabalhadores que chegam a atingir a marca de 22 toneladas diárias de cana cortada. Pesquisadores da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) registraram uma média diária de 11,54 toneladas para um trabalhador monitorado11. A pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva apurou a exigência, por empresas da região de Ribeirão Preto, de uma produtividade média de 12 a 14 toneladas diárias...

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