A relativização do pacta sunt servanda nos contratos de adesão: uma análise à luz dos princípios sociais da novateoria contratual

AutorGuilherme Manhães
CargoAdvogado
Páginas21-24

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1. Introdução

A Constituição de 1988 importa sensível alteração do modelo legislativo, com distinta influência no direito privado, até então regulado basicamente pelas ideias liberais das codificações oitocentistas. A valorização da pessoa humana como ponto central do ordenamento jurídico e a atuação do Estado como promotor da justiça material repercutem nas mais diversas searas do direito civil, inclusive no plano dos contratos.

Nesse contexto é que se mostra imperioso abrir espaço à nova principiologia contratual, que ultrapassa o individualismo exagerado do século XIX e abre espaço ao fomento dos princípios da função social do contrato, da equivalência material e da boa-fé objetiva, possibilitando a mitigação do pacta sunt servanda.

O trabalho que ora se apresenta, portanto, tem o intento de demonstrar a maneira pela qual se relativiza a força obrigatória nos contratos de adesão à luz dos princípios sociais da nova teoria contratual.

2. Do estado liberal ao estado social e a mudança de paradigma na teoria dos contratos

Com a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, opera-se uma intensa substituição das ferramentas pelas máquinas e da energia do homem pela mecânica, migrando-se do modo de produção doméstico para o sistema de fábricas. Ultrapassa-se a atividade econômica assentada na agricultura, marca característica da Idade Média, e observa-se um processo de transformação assinalada por notável evolução tecnológica, que proporciona uma elevação na produção de bens para um número igualmente crescente de consumidores. Data dessa época o fim do pequeno comércio, cuja atividade se dá no próprio núcleo familiar, abrindo espaço ao que hoje se conhece por mercado de consumo.

A ideologia então corrente assenta-se no liberalismo, filosofia que prima pela autonomia da sociedade civil em oposição à concentração do poder político, passando a prevalecer a manifestação da vontade livre dos particulares. Os indivíduos são encarados como a unidade básica de compreensão, sendo a liberdade humana uma presunção com caráter absoluto. Estabelece-se um movimento de oposição ao abuso do poder estatal, posição esta fincada sobre a premissa de limitação e divisão da autoridade. À limitação do poder do Estado deve corresponder a ausência de limites no âmbito das liberdades individuais. O Poder Público, portanto, fica adstrito ao papel de assegurar e proporcionar os elementos essenciais à convivência social, o que importa observar que ao indivíduo, visto como ser dotado de autodeterminação, concede-se amplo espaço para exercer livremente sua vontade. Todas as manifestações não vedadas por lei são permitidas no âmbito das relações jurídicas levadas a cabo entre particulares.

Em tal contexto, toma lugar de maneira relevante o princípio da autonomia privada, produto direto do espírito liberal, segundo o qual a fonte primordial do direito, essencialmente privado, se encontra na liberdade do indivíduo. O Código Civil francês, por exemplo, de 1804, é um típico código arraigado nas premissas liberais. Indicativo maior não há senão o estabelecido no art. 1134 do Code Napoléon, o qual determina que os assertos legalmente firmados têm força de lei para aqueles que os tenham celebrado.

A ideologia liberal, com efeito, se reflete no campo do direito, cujo acompanhamento se dá com a positivação de dispositivos garantidores da autonomia privada no estabelecimento dos negócios jurídicos. E como não poderia deixar de ser, a teoria clássica dos contratos bebe da mesma fonte. Privilegia-se a igualdade formal, baseada na premissa de que todos são iguais perante a lei, em detrimento da concepção substancial da igualdade, que defende a diferença entres os indivíduos e autoriza um tratamento desinforme entre aqueles que não se apresentam com as mesmas qualidades.

Para além do aspecto da autonomia da vontade, as codificações oitocentistas primam também pelos princípios da força obrigatória (ou pacta sunt servanda) e da relatividade subjetiva dos contratos, os últimos nada mais do que consectários da autonomia privada. O primeiro firma que o avençado entre as partes é de observância cogente, razão pela qual as estipulações contratuais devem serfielmente cumpridas, sob pena de execução patrimonial contra o inadimplente. O princípio da relatividade, por sua vez, estabelece que os efeitos do vínculo jurídico-contratual não se operam perante terceiros, alcançando apenas as partes que dele participam. São os que se convencionou designar por princípios contratuais clássicos.

No início do século XX, porém, em resposta à grande depressão de 1929, cuja causa maior se atribui ao excesso de liberdade na economia e pouca atuação estatal, emerge o Estado Providência, organização política e econômica que surge junto com as primeiras constituições sociais, como a de Weimar na Alemanha em 1919 e a Mexicana de 1917. À luz da doutrina do Welfare State, imputa-se ao Estado o dever de traçar as condições basilares para uma vida digna do homem, por meio da manutenção da sociedade de forma organizada, através de instrumentos estatais de controle das políticas sociais. O Estado tem como sustentáculo a atuação pública...

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