(Pa)ideia capitalista: uma gramática de dominação

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas108-117

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1. Introdução: investigação sobre a ideia capitalista

A ideia é ponto de partida”, é reprodução de um objeto, através de uma imagem, que se materializa e transita em pensamento1. Não obstante, muitas vezes, também, “A ideia é o itinerário”2.

De qualquer forma, por ser imagem, verifica-se que a ideia pode tomar a forma de uma percepção aproximada ou de um conceito perfeito e acabado.

Não se olvida, contudo, que sempre “a ideia é um feito de associação3.

E mais, a ideia pode se apresentar como bruma: “Uma idéia não executada, transforma-se em sonho4; como possibilidade transformadora “Pergunta sempre a cada idéia: a quem serves?5; ou como concreta transformação: “Quando o cérebro humano se distende para abrigar uma ideia nova, nunca mais volta à dimensão anterior.”6

Algumas vezes, a ideia pode ter viés estratégico: “Ideias ousadas são como as peças de xadrez que se movem para a frente; podem ser comidas, mas podem começar um jogo vitorioso.”7

Outras vezes, a ideia se apresenta como uma força perigosa “Uma ideia torna-se uma força material quando ganha as massas organizadas.”

Por vezes, a ideia pode ser democrática: “Agora, como uma nação, nós não prometemos resultados iguais, mas nos fundamos na ideia de que todos devem ter iguais oportunidades de sucesso8; ou antidemocrática: “A ideia de que para fazer um homem trabalhar há que se segurar ouro defronte de seus olhos é um progresso, não um axioma. Nós fazemos isso há tanto tempo que esquecemos que esse era o caminho.9

Certas vezes, forma-se ideia sobre o capitalismo: “modo de subsunção da força de trabalho ao capital adequado ao modo de produção de mais valia propriamente dito” (ALVES, 2013, p. 15); ou “Capitalismo é a confiança que os homens mais maliciosos vão fazer os atos mais ofensivos pelo bem maior de todos10.

Poucas vezes, tem-se ideia completamente a favor do capitalismo: “Eu sou uma Republicana conservadora, uma firme defensora do mercado livre capitalista. O sistema do mercado livre permite que todas as partes compitam e assegura que o projeto mais competitivo emerja, em um justo processo democrático.”11

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Muitas vezes, depara-se com ideia em desfavor do capitalismo:“Minha ideia, como o mundo todo sabe, é que o sistema capitalista não funciona para os Estados Unidos ou para o mundo, impulsiona-se de crises a crises, que são cada vez mais sérias.”12

Certo é que a ideia capitalista repercute profundamente na existência e vivência do homem que trabalha, de certa forma e de tal modo, que há quem defenda que o trabalho é, também, capital:

Ao mesmo tempo, como o trabalho vivo é comprado pelo capitalista para acionar o processo de produção, o trabalho é capital. Aquela parcela de capital monetário separada para pagamento do trabalho, a parcela que em cada ciclo é convertida em força de trabalho viva, é a parcela do capital que representa a população trabalhadora e a ela corresponde, e sobre a qual subsiste. A classe trabalhadora é a parte animada do capital, a parte que acionará o processo que fez brotar do capital total seu aumento de valor excedente. Nessa condição, a classe trabalhadora é antes de tudo matéria prima para exploração. (…) Mas a partir de então, em sua existência permanente, é a parte viva do capital, sua estrutura ocupacional, modos de trabalho e distribuição pelas atividades da sociedade que são determinados pelo processo em curso de acumulação do capital. É captada, liberada, arremessada pelas diversas partes da maquinaria social e expelida por outras, não de acordo com sua própria vontade ou atividade própria, mas de acordo com os movimentos do capital. (BRAVERMAN, 1977, p. 319/320.)

Nesse sentido, tem-se por escopo fazer um diagnóstico acerca das ideias que compõem a gramática de dominação capitalista, a saber: qual a ideia central que fomenta o capitalismo? Qual o ideário capitalista? Como foi introjetado esse ideário na vida do trabalhador? Ao longo dos tempos, notadamente taylorismo, fordismo e toyotismo, quais as ideias e discursos que impulsionaram o capitalismo? E, principalmente: qual o impacto das ideias capitalistas no ser que trabalha?

Enfim, há um conjunto de ideias e discursos, que penetram intimamente em todas as searas do existir humano de forma a educá-lo e conformá-lo para o sistema econômico vigente?

Trata-se de uma investigação sobre as (in)visíveis evidências da paideia capitalista13, seu desenrolar ao longo dos tempos, suas incoerências, suas implicações para a sociedade, com vistas a averiguar quais as consequências para o trabalhador e para o Direito do Trabalho.

Em síntese, almeja-se, em que pese estarmos em “tempos confusos e confusamente percebidos14, o pensar profundo da relação entre o trabalho e capitalismo, notadamente no que diz respeito ao discurso capitalista e à manipulação subjetiva dos trabalhadores, de modo a realizar a proteção integral do ser que trabalha.

2. Capitalismo: a ideia da racionalidade instrumental

“O Capitalismo é o sistema. A Democracia atual é uma forma de se organizar dentro do sistema. No capitalismo é onde está o grande problema. A verocidade desta peste é infinita”15,

disse, certa vez, El Gran Wyoming.

Por um lado, tem-se capitalismo o sistema econômico “e modo de produção de mercadoria, que se baseia na propriedade privada dos meios de produção, bem como na transformação da força de trabalho livre assalariada (mão de obra), com vistas a acumulação do capital”.

Trata-se de verdadeira “ebulição permanente de transformações internas que o fazem um sistema dinâmico, mutável, que se adapta às contingências históricas” (MELHADO, 2006, p. 29).

De outro lado, está a democracia “método e institucionalização de gestão da sociedade política e da sociedade civil baseada na garantia firme das liberdades públicas, liberdades sociais e liberdades individuais, com participação da população” (DELGADO, 2015, p. 17).

De se perguntar: qual é e onde reside o problema mencionado no acerto acima?

Ora, inconteste existir um relacionamento estreito entre capitalismo e democracia, de complementariedade e de contradição, que marca e conforma o sistema econômico desde seu nascedouro (ENRIQUEZ, 1995, p. 9).

Há complementariedade, eis que o capitalismo necessita de indivíduos racionais e livres, para operacionalizar-se (ENRIQUEZ, 1995, p. 9): “um homem só trabalha para o outro quando é obrigado.” (HUBERMAN, 1986, p. 167.)

Assim, no século XVI, na Inglaterra, ante a necessidade de força de trabalho e aumento dos lucros, a elite econômica provocou o fechamento das terras, a elevação dos arrendamentos, bem como editou leis desmantelando as corporações de ofício:

De fato, se fosse realmente livre para vender (ou não) a sua liberdade, o trabalhador a manteria — inviabilizando o sistema. Desse modo, para que o sistema se perpetue, é preciso não só que haja liber-dade formal para contratar, mas que falte liberdade real para não contratar. Para que faltasse aquela liberdade real, foi preciso inviabilizar as antigas

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alternativas de subsistência do trabalhador. Em outras palavras, foi necessário impedi-lo de produzir a sua pequena economia doméstica, que lhe permitia plantar a sua comida, colher as uvas de seu vinho e costurar as suas roupas. E foi assim que — antes mesmo da difusão do contrato de trabalho — a lei roubou a terra do camponês, enquanto a máquina vencia o artesão. Sem outros meios para produzir, além das próprias mãos, ambos aceitaram então se submeter. As relações de poder tinham se tornado menos visíveis, mas nem por isso menos fortes. (VIANA, 2004, p. 170.)

Verifica-se contradição, na medida em que para o triunfo da razão instrumental, ideia central do capitalismo, só haveria interesse no indivíduo, enquanto indivíduo competitivo e pessoa manipulável sujeito a trabalho (ENRIQUEZ, 1995, p. 10).

Deveras, a racionalidade instrumental funcionaliza os meios em proveito dos fins almejados, ocultando as referências sociais e éticas (ENRIQUEZ, 1995, p. 11): “O capitalismo só tem um objetivo: o lucro. (...) Em suma: o lucro que era um dos elementos do capitalismo industrial tornou-se o elemento e regulador central, senão único, da vida social.” (ENRIQUEZ, 2014, p. 7/8.)

Nesse sentido, inviabiliza-se a democracia plena16, cujos valores são relegados a segundo plano, enquanto o mercado e o capitalismo alçam à supremacia (ENRIQUEZ, 1995, p. 11).

Assim, instaura-se o mundo da “mobilização dos ho-mens para e pelo trabalho” (ENRIQUEZ, 1995, p. 9): “Os capitalistas haviam conseguido uma coisa: transformar todos os seres humanos em trabalhadores, tendo-se o trabalho tornado a atividade social mais valorizada, quando não a única valorizada.” (ENRIQUEZ, 1995, p. 13.)

De se dizer, pois, que para a contínua expansão do capitalismo, dá-se a exacerbação da racionalidade instrumental (ENRIQUEZ, 1995, p. 13):

Nessa geografia liberal, o mercado esconde o trabalho do trabalhador, a fábrica da cidade, a sociedade do homem, o indivíduo da humanidade. Faceta da ilusão geral promovida a partir do intrínseco estranhamento escamoteador dos reais lineamentos de uma cotidianidade gerada pelos interesses que comandam uma sociedade na qual o que importa é a circulação de mercadorias — esfera da igualdade e da distinção abstratas, vazias, enquanto na esfera da produção, que efetivamente promove as distinções materiais, desaparece camuflada em meio a discursos sobre ética de varejo e utopias promovidas por políticas públicas. (FERRARI, 2014, p. 141.)

Portanto, não se olvida que o sistema econômico de produção...

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