O 'ovo da serpente': arcabouço de excepcionalidades para a copa de 2014 como regra do funcionamento do estado brasileiro contemporâneo

AutorAny Brito Leal Ivo
CargoProfessora regular em regime de dedicação exclusiva da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA), doutora e mestra em pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo /UFBA, graduada em Arquitetura e Urbanismo (UFBA) e bacharel em direito (UCSAL). aivo@ufba.com
Páginas138-153
https://cadernosdoceas.ucsal.br/
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 242, p. 672-687, set./dez., 2017 | ISSN 2447-861X
O “OVO DA SERPENTE”: ARCABOUÇO DE
EXCEPCIONALIDADES PARA A COPA DE 2014 COMO
REGRA DO FUNCIONAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO
The “snake egg”: a framework of exceptions for the 2014 world cup as a rule
of the operation of the contemporary brazilian state
Introdução
Para o debate sobre a natureza do estado brasileiro na atualidade, é impossível
esquivar-se de analisar o processo de preparação do país para a onda de megaeventos, pois,
desde 2010, sob a almagra da urgência, um “simulacro1 de legalidade” foi criado de forma
1 De acordo com Baudrillard (1991), por simulacros, adotaremos a ideia da indiferenciação entre o real e a
simulação, sem que se possa distinguir entre o verdadeiro e o falso, ou o real e o imaginário. Como dissimular
(ngir não ter o que tem) e simular (ngir ter o que não tem), a ideia de realidade parece como referencial
e, portanto, o princípio de realidade se mantém. Assim, o uso da expressão “simulacros” refere-se à
representação simulada como verdade – a abstração passa à verdade, sem que se possa distinguir o real
Any Brito Leal Ivo
Professora regular em regime de dedicação exclusiva da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal da Bahia (FAUFBA), doutora e mestra em pelo
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
/UFBA, graduada em Arquitetura e Urbanismo (UFBA) e
bacharel em direito (UCSAL). aivo@ufba.com
Informações do artigo
Recebido em 05/10/2017
Aceito em 26/12/2017
Resumo
Este artigo apresenta parte da monografia
desenvolvida como trabalho de conclusão do curso
de direito, que avança na conceituação no âmbito da
técnica jurídica da ideia de Estado Excessivo, modelo
de estado proposto na tese de doutorado dessa
autora, defendida no Programa de Pós-graduação
em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
da Bahia, no ano de 2013. Analisa, do ponto de vista
jurídico, as mudanças significativas no desenho de
estado contemporâneo brasileiro, expressas por
constrangimentos a direitos consolidados e abrigados
como direitos fundamentais, num contexto de
vigência formal do Estado Democrático de Direito,
configurando um descolamento entre discurso e
práxis, num momento de inflexão política que, por
fim, esgarça o regime democrático e os direitos para
democracia. Consiste no entendimento de que o
processo de “excepcionalização” do legal, inaugurado
na preparação do país para os megaeventos, torna-se
“regra”. Avança na análise crítica do papel do aparelho
de justiça nesse processo de relativização do corpo
legal vigente, denunciando novos arranjos entre
o executivo, o legislativo e o judiciário, coniventes
com a criação de privilégios regulamentados a
serviço do grande capital. Evidencia a relação de
libertinagem entre o Estado, o Direito e o Mercado,
que, gradativamente, usurpam conquistas históricas
democráticas e democratizantes.
Palavras-chave: Estado. Excepcionalidade. Direito.
O “ovo da serpente”... | Any Brito Leal Ivo
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a beneficiar agentes econômicos hegemônicos. Esse mesmo “simulacro de legalidade”
corroborou para restrições de direitos de participação e, consequentemente, significa, na
prática, constrangimentos ao exercício democrático.
Ou seja, esse trabalho toma o processo de preparação da Copa no Brasil, como período
onde práticas que relativizaram as conquistas democráticas foram manejadas na história
contemporânea nacional, inicialmente privilegiando grupos econômicos internacionais e
nacionais, na preparação das cidades-sede para a Copa de 2014, num ambiente de reafirmação
discursiva da democracia.
Nesse contexto, o “ovo da serpente” foi gerado e alimentado: se, de um lado, é
reconhecido que, nesse período, foi dado o desejado fortalecimento e a autonomia a
instituições de controle (em especial a polícia federal e o ministério público), num outro
sentido, a criação de arcabouço legal à parte do sistema jurídico vigente - privilegiando
fortes agentes de mercado e estrangulando canais de participação democrática, mais a
criminalização dos movimentos sociais - cria o campo fértil para operar o estado sem os limites
constitucionais, por meio da fabricação de estrutura regulatória discordante dos preceitos do
Estado Democrático de Direito, originando o que denominei de Estado Excessivo2.
Essa matriz, formada pela relativização dos direitos constitucionais, constituiu
instrumentais decisivos à tomada do poder por um projeto de neoliberalização extrema do
aparato estatal, contribuindo decisivamente para o contínuo processo de esfacelamento do
Estado Democrático de Direito em andamento.
A partir daí, é evidente o redirecionamento da política nacional, com significativas
perdas de direitos fundamentais para a grande maioria dos brasileiros. Esse marco expõe,
ainda, não apenas a “regularização incorporadora”3, mas a instrumentalização do judiciário,
cúmplice do desconhecimento das infrações constitucionais, num arranjo depravado entre
política-direito-mercado. Nesse contexto, a cumplicidade e colaboração entre os três poderes
torna-se imprescindível à transmutação do desenho de estado brasileiro contemporâneo.
Do ponto de vista analítico, a permeabilidade entre o estado e o mercado, e as
formas de entrelaçamento com o direito, com base na concepção de estrutura jurídica
inconstitucional, revestida de discursos e argumentações que dão a aparência de legalidade,
do simulado e, dessa forma, o princípio de realidade inexiste. Aqui adotamos a ideia de simulacro como a
construção de universos que dão o caráter de normalidade ao anormal, sem qualquer relação efetiva com o
real vigente.
2 Ver IVO-Any, 2015
3 Ver Harvey (2009)

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