Overbooking Imobiliário e os Direitos do Consumidor na Aquisição de Imóveis

AutorPlínio Lacerda Martins - Paula Cristiane Pinto Ramada - Fabio de Oliveira Vargas
CargoMestre em Direito pela UGF - Mestre em Direito pela Unipac - MG - Mestre em Direito
Páginas19-41

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1. Introdução

Na sociedade contemporânea, em razão de inúmeros negócios jurídicos praticados, abrem-se caminhos para uma nova modernidade, denominada nas palavras de Urick Becker de modernidade reflexiva, traduzindo a ideia de que muitas modernidades são possíveis. Beck ilustra que na fase da modernização reflexiva, marcada pelos processos concomitantes da globalização e da busca de contextos de ação mais tradicionais, alterase o equilíbrio entre tradição e modernidade. No mercado imobiliário o fenômeno da modernidade reflexiva também se impõe com a novidade do projeto Minha casa minha vida do Governo Federal1.

O direito do consumidor à moradia cada vez mais está sendo afrontado pelas inúmeras práticas abusivas no mercado imobiliário. Quem não se recorda da prática abusiva efetuada pelo agente financeiro, que condicionava a concessão de financiamento imobiliário à aquisição de seguro indicado pelo agente no contrato de mútuo? O STJ chegou a efetivar enunciado a respeito afirmando: "É necessária a contratação do seguro habitacional no âmbito do SFH. Contudo, não há obrigatoriedade de que o mutuário contrate o referido seguro diretamente com o agente financeiro ou com seguradora indicada por este, exigência que configura venda casada, vedada pelo art. 39, I, do CDC"2.

Nesse sentido, foi editada a Súmula 473 do STJ, que dispõe: "O mutuário do SFH não pode ser compelido a contratar o seguro habitacional obrigatório com a instituição financeira mutuante ou com a seguradora por ela indicada".

Ainda hoje, o mercado imobiliário conta com inúmeras práticas abusivas efetivadas pelo fornecedor de serviços imobiliários. Basta verificar no boleto de cobrança de um imóvel administrado por uma imobiliária o repasse do valor do boleto bancário, de obrigação da imobiliária, repassado para o consumidor.

O DPDC (Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça) chegou a editar norma técnica repudiando esta prática3.

Contudo, ela é usual no mercado imobiliário, mesmo após a edição da norma do BACEN que traduz:

"Art. 1º A cobrança de tarifas pela prestação de serviços por parte das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil deve estar prevista no contrato firmado entre a instituição e o cliente ou ter sido o respectivo serviço."4

Em Belo Horizonte, a Câmara Municipal elaborou o projeto de lei 1.576/20115, denominado overbooking imobiliário, com o intuito de coibir as

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práticas abusivas no mercado imobiliário. O termo overbooking faz referência a fato semelhante na aviação civil, com a venda de passagens aéreas além da capacidade dos voos. Assim também ocorre na construção civil onde a venda de imóveis é feita em grande escala, mas não se consegue entregar no prazo acordado.

Pelo projeto, empresas que não entregarem os empreendimentos dentro do prazo previsto no contrato não conseguirão novos alvarás de construção para novas obras. Com isso, a concessão do alvará ficará condicionada à obtenção, por parte do empreendedor, do Certificado de Baixa de Construção e Habite-se de obras anteriormente licenciadas.

2. Direito do consumidor no mercado imobiliário

Já é pacífica na doutrina a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações que envolvam, especialmente, compra e venda de imóveis, promessa de compra e venda e os de cessão de direitos do promitente comprador6.

Ada Pellegrini Grinover leciona que o Código de Defesa do Consumidor tem fundamento constitucional, nos termos do art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, que impõe ao Estado promover a defesa do consumidor na forma lei. Ensina, ainda, que as normas do direito do consumidor são de ordem pública e de interesse social, o que equivale a dizer que são inderrogáveis por vontade dos interessados em determinada relação de consumo, embora se admita a livre disposição de alguns interesses de caráter patrimonial7.

O art. 2º do CDC conceitua o consumidor como toda pessoa física e jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final; logo, o conceito de consumidor foi exclusivamente de caráter econômico, pois somente aquele que adquire ou utiliza um produto ou serviço para sua própria necessidade, e não como forma de incrementar a atividade empresarial, pode ser considerado consumidor.

No âmbito do Mercosul, consumidor é qualquer pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviços como um fim em uma relação de consumo ou em função da mesma. Também serão considerados consumidores ou usuários aqueles que em função de uma eventual relação de consumo receberem ou utilizarem gratuitamente produtos ou serviços como amostra grátis. Equiparam-se, também, aos consumidores as demais pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais8.

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A título de ilustração, a lei do consumidor da Argentina (ley 24.240) adotou a definição objetiva. Seus arts. 1º e 2º "admitem consumidores como sendo pessoas físicas ou jurídicas que contratam a título onerosos, para seu consumo final ou benefício próprio ou de seu grupo familiar ou social"9.

Outro protagonista na relação de consumo é o fornecedor conceituado no artigo 3º do CDC, caracterizado pela detenção da atividade econômica, destacando a lei consumerista os fornecedores de serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários.

Rodrigo Toscano leciona que o CDC não se preocupou em inserir no conceito de fornecedor a figura do incorporador, sendo que a preocupação foi a de trazer um conceito abrangente, capaz de abarcar todos aqueles que proporcionem oferta no mercado de consumo.

Portanto, a figura do incorporador está ali compreendida, não podendo ser analisado isoladamente como um corretor ou como mandatário, ou gestor de negócios apenas, sendo o propulsor do investimento imobiliário.

Toscano ainda ilustra que a lei de incorporação imobiliária, no art. 29, afirma que o incorporador pode ser "pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetue a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno", objetivando a vinculação destas unidades autônomas em edificações a serem construídas, o "que não afasta da noção de fornecedor contida no art. 3º do CDC"10.

Portanto, de acordo com o conceito do art. 3º do CDC, conclui-se que para ser considerado fornecedor devem ser observadas duas características indispensáveis: atividade e remuneração, ou melhor dizendo, fornecedor será a pessoa física ou jurídica que desenvolve no mercado de consumo uma atividade econômica.

O Código de Defesa do Consumidor elenca no artigo 6º os direitos básicos do consumidor, ou seja, "aqueles que irão servir de base na orientação e instrumentalização das relações de consumo", na lição de Leonardo Garcia11.

Destaca-se ainda que o CDC considera como direitos básicos do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, bem como a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços (art. 6º, III e IV).

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Com o Código de Defesa do Consumidor, passou o promitente comprador na aquisição de imóveis a ter os seus direitos básicos assegurados por um regramento de proteção a favor da parte frágil no mercado imobiliário, uma lei de ordem pública reconhecendo a vulnerabilidade do comprador em face das práticas comerciais e publicidades usuais dos negociadores imobiliários, antes assegurada pelo código civil e leis esparsas.

Por fim, registra-se que a própria jurisprudência vem reconhecendo a aplicação do CDC nos negócios mobiliários, conforme o aresto do STJ da relatoria da ministra Nancy Andrighi, envolvendo interpretação favorável ao consumidor12:

"Ementa Civil. Recurso especial. Contrato de compra e venda de imóvel regido pelo Código de Defesa do Consumidor. Referência à área do imóvel. Diferença entre a área referida e a área real do bem inferior a um vigésimo (5%) da extensão total enunciada. Caracterização como venda por corpo certo. Isenção da responsabilidade do vendedor. Impossibilidade. Interpretação favorável ao consumidor. Venda por medida. Má-fé. Abuso do poder econômico. Equilíbrio contratual. Boa-fé objetiva. - A referência à área do imóvel nos contratos de compra e venda de imóvel adquiridos na planta regidos pelo CDC não pode ser considerada simplesmente enunciativa, ainda que a diferença encontrada entre a área mencionada no contrato e a área real não exceda um vigésimo (5%) da extensão total anunciada, devendo a venda, nessa hipótese, ser caracterizada sempre como por medida, de modo a possibilitar ao consumidor o complemento da área, o abatimento proporcional do preço ou a rescisão do contrato. - A disparidade entre a descrição do imóvel objeto de contrato de compra e venda e o que fisicamente existe sob titularidade do vendedor provoca instabilidade na relação contratual."

3. Práticas abusivas no mercado imobiliário

As práticas abusivas, nas palavras do professor Herman Benjamin, "nem sempre se mostram enganosas, mas às vezes corriam alta dose de imoralidade econômica e opressão"13. As práticas inseridas no mercado de consumo de produtos ou serviços afetam o consumidor, já considerado pelo código parte vulnerável14e hipossuficiente.

Maria Zanardo expõe que práticas abusivas são técnicas, meios, de que o fornecedor se utiliza para comercializar, vender, oferecer o seu produto ao consumidor potencial, atingindo a quem se pretende transformar em

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destinatário final: o consumidor-adquirente. Pela sistemática adotada pelo CDC, a expressão práticas comerciais abrange desde a oferta do...

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