Outros princípios especiais do Direito Individual do Trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas100-122

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I Introdução

O núcleo basilar de princípios especiais do direito do Trabalho (ou do direito Individual do Trabalho) concentra as diretrizes gerais que melhor expressam os objetivos teleológicos desse ramo jurídico especializado e que maior abrangência têm no interior de sua estrutura e dinâmica normativas e de relações jurídicas.

Esse núcleo basilar não esgota, porém, obviamente, todo o rol de princípios especiais característicos do direito do Trabalho. há, de fato, outros princípios especiais desse segmento particularizado do direito que são importantes, é claro, embora não tendo a essencialidade e abrangência típicas dos princípios integrantes do que chamamos núcleo basilar.

Esses princípios específicos adicionais do ramo justrabalhista são os seguintes: princípio da despersonalização do empregador, princípio da alteri-dade (ou da assunção dos riscos); princípio da irretroatividade das nulidades; princípio da aderência contratual (e seu corolário, princípio da ultratividade das normas trabalhistas).

Neste estudo dos demais princípios específicos do direito do Trabalho (ou direito individual, como visto), há que se destacar, por fim, a referência a duas diretrizes bastante controvertidas.

Trata-se, de um lado, da proposição enunciada pela expressão latina in dubio pro operario — altamente controvertida, pelo menos enquanto princípio supostamente aplicável à avaliação da prova no processo judicial (avaliação dos fatos, portanto). de outro lado, existe, ainda, a diretriz alcunhada de maior rendimento. esses dois princípios, como já sugerido, têm seu significado e conteúdo, sua abrangência e até mesmo sua própria validade enquanto princípios largamente debatidos no plano da doutrina e jurisprudência trabalhistas.

Após a análise dos demais princípios especiais acima indicados, será retomado, neste capítulo, o estudo dos dois princípios controvertidos aqui expostos.

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Registre-se que caberá também, ao final do presente capítulo (item iii.1 — “uso impróprio da noção de Princípios”), retomar-se uma curiosa dimensão de problemas referentes à controvérsia em análise: o uso indevido da noção de princípios no plano justrabalhista. de fato, não é incomum a apropriação da palavra e noção de princípios para se enquadrarem proposições, regras e práticas jurídicas que, do ponto de vista científico, não se ajustam a essa fundamental figura do direito. esse desgaste injustificável da expressão e seu conceito, já mencionados ao início do capítulo anterior, merecerão maiores referências ao final do presente texto.

II O utros princípios especiais justrabalhistas

Os dois primeiros princípios deste grupo adicional (da despersonalização da figura do empregador e da alteridade) dizem respeito ao sujeito empresarial da relação de emprego.

A outra diretriz é concernente à validade ou não do pacto contratual estabelecido entre as partes (princípio da irretroatividade das nulidades).

O princípio seguinte refere-se à duração no contrato das regras e cláusulas trabalhistas (princípio da aderência contratual — e seu corolário, princípio da ultratividade das normas trabalhistas).

1. Princípio da despersonalização do empregador

O presente princípio consagra o caráter impessoal da figura do empregador para fins de fixação de critérios e efeitos jurídicos pelo direito do Trabalho. a individualidade do sujeito passivo da relação de emprego (o empregador), suas características estritamente próprias e distintivas, não são, regra geral, relevantes à estruturação e dinâmica normativas operadas pelo ramo justrabalhista. o tomador de um serviço contratado com os elementos fático-jurídicos da relação de emprego torna-se empregador, independentemente de suas características individuais específicas.

Em face do princípio examinado, a pessoalidade, embora seja elemento fático-jurídico atávico à figura do empregado (elemento sem o qual não existirá o empregado, juridicamente), tenderá a ser irrelevante na tipificação da figura do empregador. na estruturação deste predomina a impessoalidade, acentuando a lei a despersonalização como marca distintiva do sujeito passivo da relação de emprego.

A clT realça o princípio da despersonalização do empregador ao designá-lo, reiteradas vezes, por meio da expressão impessoal empresa. É o que se passa, por exemplo, na definição legal de empregador (caput do art. 2º da clT) e na caracterização legal da sucessão trabalhista (arts. 10 e 448, clT).

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De fato, à medida que a ordem jurídica reporta-se à noção objetiva de empresa para designar empregador em vez da noção subjetiva e às vezes particularíssima de pessoa, ela obtém o efeito de acentuar o caráter impessoal e despersonalizado com que encara e rege tal sujeito do contrato de trabalho.

A despersonalização do empregador é um dos mecanismos principais que o direito do Trabalho possui para alcançar certos efeitos práticos relevantes. de um lado, permitir a viabilização concreta do princípio da continuidade da relação empregatícia, impedindo que ela se rompa em função da simples substituição do titular do empreendimento empresarial em que se encontra inserido o empregado. de outro lado, harmonizar a rigidez com que o direito individual do Trabalho trata as alterações objetivas do contrato empregatício (vedando alterações prejudiciais ao empregado) com o dinamismo próprio ao sistema econômico contemporâneo, em que se sobreleva um ritmo incessante de modificações empresariais e interempresariais.

O presente princípio tem crucial importância na estrutura e efeitos de relevante instituto do direito individual do Trabalho: a sucessão trabalhista (arts. 10 e 448, clT). efetivamente, apenas por ser a impessoalidade marca própria ao sujeito empresarial da relação de emprego, marca que autoriza sua modificação subjetiva ao longo da evolução do contrato, é que se compreende o sentido e extensão desse instituto justrabalhista. em face da despersonalização da figura do empregador, autoriza a ordem justrabalhista a plena modificação do sujeito passivo da relação de emprego (o empregador), em contexto de transferência do estabelecimento ou da empresa, sem prejuízo da preservação completa do contrato empregatício com o novo titular.

Atua também o mesmo princípio em outro instituto de grande importância neste ramo jurídico especializado: o grupo econômico para fins trabalhistas. Por esta figura, todas as empresas consideradas integrantes do grupo econômico serão tidas, ao mesmo tempo, como empregadoras, assumindo direitos e obrigações do correspondente contrato de trabalho com o obreiro, independentemente de ter este prestado ou não serviço a todas elas (Súmula
n. 129 do TST; art. 2º, § 2º, clT; art. 3º, § 2º, lei n. 5.889/73). Só a despersonalização empresarial é que permitiria semelhante construção jurídica — que se conhece também pelo epíteto de empregador único99.

O mencionado princípio teve influência, ainda, na construção de recente figura justrabalhista brasileira: o consórcio de empregadores. a circunstância de permitir esta fórmula jurídica a utilização da força de trabalho por distintos tomadores, com responsabilidade ativa e passiva destes em face da correspondente

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relação de emprego, somente se compreende a partir da impessoalidade de que se reveste o sujeito empresarial do contrato de trabalho100.

O princípio em referência atua também no que tange às infrações trabalhistas: é que a culpa do empregador, em suas irregulares condutas ou omissões, é examinada, regra geral, em abstrato, independentemente das particularidades individuais que caracterizam o sujeito passivo da relação de emprego (por exemplo, a falta relativa ao descumprimento do contrato não se justifica pela desorganização administrativa do pequeno empreendimento ou pelas dificuldades econômicas reais por ele vivenciadas). Ao reverso, a culpa obreira quanto a certa infração tem de ser examinada em concreto (isto é, tomando-se em conta a individualidade do infrator, seu nível educacional e cultural etc.)101.

Aponta-se, na doutrina, um vínculo jurídico em que o princípio da despersonalização empresarial não teria a mesma importância percebida nos demais segmentos empregatícios: a relação de caráter doméstico. De fato, na obra Introdução ao direito do trabalho já se escrevia:

O vínculo jurídico previsto na Lei n. 5.859/72 emerge como notável exceção ao princípio justrabalhista geral concernente à plena despersonalização do empregador no Direito do Trabalho. Na relação doméstica, essa despersonalização é significativamente afastada: de um lado, porque não pode, de modo algum, surgir como empregador doméstico pessoa jurídica ou entes despersonificados (como massa falida e condomínio) — embora se possa admitir, evidentemente, a responsabilidade do espólio da pessoa física empregadora (sem vínculo empregatício em vigor, é claro).

De outro lado, essa despersonalização também se reduz à medida que as vicissitudes pessoais do empregador (como ocorre com as do empregado em qualquer vínculo empregatício) podem afetar diretamente a relação justrabalhista pactuada. Desse modo, a morte do empregador doméstico extingue, automaticamente, a relação de emprego — a menos que a prestação de trabalho se mantenha, nos exatos mesmos moldes, em face da...

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