Otto Kirchheimer between past and present/ Otto Kirchheimer entre passado e presente.

AutorRibeiro, Douglas Carvalho
CargoResena de libro
  1. Introducao

    Otto Kirchheimer se notabilizou no Ambito do direito penal brasileiro pela publicacao, juntamente com Georg Rusche, da obra Pena e Estrutura Social, onde ambos defendem a tese de que as diversas formas de reacao punitiva do Estado ao longo da historia possuem sua razao de ser nas variacoes ocorridas na estrutura social--tese esta que se vincula fortemente ao paradigma produtivista marxiano (1), ou seja, que as formas de consciencia possuem estreita relacao com as condicoes materiais da sociedade (2).

    Pouco enfoque e dado, contudo, a obra de Kirchheimer como um todo, seja em relacao aos textos que se remetem a situacao do direito a epoca do nacional-socialismo ou a tematica mais ampla da justica politica, quando formas juridicas sao utilizadas no sentido da neutralizacao do dissenso politico. O presente trabalho tem como objetivo uma apresentacao panorAmica do pensamento de Otto Kirchheimer, abordando tanto as criticas que Kirchheimer faz contemporaneamente ao regime hitlerista quanto as possiveis contribuicoes que a teoria do jurista frankfurtiano poderia fornecer ao debate sobre os crimes politicos no Ambito do direito penal contemporAneo--em especial o direito penal contemporAneo brasileiro.

    O trabalho se divide, portanto em tres partes. Em um primeiro momento, buscase relacionar o pensamento de Otto Kirchheimer com a tradicao da Teoria Critica da Sociedade--conhecida tambem como "Escola de Frankfurt"--, cuja influencia e marcante ao longo de toda sua producao academica. Posteriormente, o foco residira na critica que Kirchheimer faz ao direito penal nacional-socialista. O direito penal foi um instrumento bastante utilizado pelo regime para fins persecutorios, o que ensejou por um lado, a construcao de um aparato teorico legitimador da pratica criminal dos nacionalsocialistas e, por outro, o surgimento diversas criticas, que, independentemente da censura e dos riscos de tal atividade, ousavam em denunciar o retrocesso do regime no que diz respeito as garantias juridicas tipicas do Estado de Direito. Dois textos desse periodo merecem destaque: "Estrutura Estatal e o Direito no Terceiro Reich", publicado sob o pseudonimo Dr. Hermann Seitz em 1935, e "Direito Penal na Alemanha nacionalsocialista", disponibilizado originalmente no ano de 1940 no periodico de lingua inglesa Studies in Philosophy and Soical Science. Em ambos os textos, Kirchheimer se vale dos pressupostos da teoria critica a fim de efetuar um diagnostico da situacao presente do direito penal da nova Alemanha que se constroi em torno da figura do Fuhrer. Por fim, a partir da tipologia construida por Kirchheimer no texto "Justica Politica", serao abordadas possiveis contribuicoes do pensamento do jurista alemao ao contexto juridico atual.

  2. Matrizes Fundamentais da Teoria Critica

    Com a expressao Teoria Critica denotamos aqui a tradicao filosofica que se inicia com a criacao do Institut fur Sozialforschung em 1922 e se estende ate os dias atuais, com Jurgen Habermas, Axel Honneth e Rainer Forst. A utilizacao de tal alcunha em detrimento da famosa expressao "Escola de Frankfurt" se da pelo fato de que tais autores possuem mais diferencas do que semelhancas entre si, nao havendo um intuito de continuidade entre eles no interior da tradicao. Contudo, duas caracteristicas sao marcantes no interior de tal corrente de pensamento. Vejamos detidamente cada um desses pontos:

    1. Capitalismo enquanto causa patologizante: desde a criacao do Institut fur Sozialforschung em 1922 e, consequentemente, a consolidacao daquilo que entendemos hoje como teoria critica, tem-se que os esforcos dos intelectuais que se filiaram a essa tradicao se dirigiram no sentido de repensar a sociedade capitalista, seja no sentido da busca dos motivos do fracasso da revolucao socialista em solo germAnico ou de pensar as alternativas emancipatorias perante a um contexto marcado pela vitoria do capitalismo pos-Guerra Fria e sua consequente transmutacao, a partir da apropriacao dos argumentos que se opunham a estes, para o chamado capitalismo em rede. Isso faz com que seja possivel vislumbrar um elo que se inicia em Hegel--para quem a eticidade concebidada enquanto expressao das relacoes burguesas e marcada pelo estado de necessidade [Wotstaat] (3), e vai ate Honneth, passando por Marx, Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas. Todos os autores mencionados tem em comum uma associacao entre capitalismo--ou um de seus aspectos, como o chamado direito burgues--e patologia social, que, de certo modo, afeta o proprio processo de subjetivizacao. Expressoes como "a busca da vida verdadeira no falso", "homem unidimensional" ou "colonizacao do mundo da vida" remetem, em ultima analise, a impossibilidade dos individuos alcancarem o ideal de vida boa como resultado de processos extrinsecos a propria consciencia (4).

    2. Conhecimento e emancipacao: a teoria critica opera segundo a realizacao de um diagnostico de epoca da sociedade presente, no sentido de apontar os deficits emancipatorios das praticas societarias atuais. Tal diagnostico nao se presta a uma analise meramente descritiva da sociedade, ja que esta caracteristica--a utilizacao de estrategias descontextualizadas de analise--seria o que diferenciaria, segundo Max Horkheimer, a teoria tradicional da chamada teoria critica (5). O projeto teorico no seio do pensamento critico se relacionaria, portanto, ao conceito marxiano de "praxis (6)".

    Remonta ao pensamento hegeliano o reconhecimento de que o mundo objetivo, e, consequentemente, a divisao naturalizada entre sujeito-objeto se remete, em ultima instAncia, a propria subjetividade, uma vez que o percurso do espirito se da no sentido do processo de formacao da consciencia em direcao a este ponto no qual pensar e ser podem reconciliar-se; contudo, o reconhecimento do mundo objetivo como produto humano, apesar de um passo necessario, nao e o suficiente para delegar um poder transformador a teoria. Foi gracas a Marx, a partir da cunhagem do conceito de praxis revolucionaria, que a teoria se empodera com a capacidade de transformar o mundo real, nao se livrando, contudo, das influencias conformativas oriundas da propria realidade que visa transformar (7). Caso o autor de O Capital buscasse apenas descrever o mundo como ele e, esta descricao consistiria apenas na narrativa acerca do funcionamento dos diversos processos que ocorrem no Ambito da sociedade civil. A teoria presume-se, entao, como detentora de um carater transformador e tal transformacao tem como finalidade fazer do mundo algo mais proximo daquilo que seria o seu conceito, buscando realizar a emancipacao possivel, a partir do diagnostico realizado em um primeiro momento, e se diferindo, nesse sentido, tanto do utopismo quanto do positivismo.

    O diagnostico e elaborado, o prognostico prescrito--mas a emancipacao nao se realiza. Isso torna a adocao de uma teoria do bloqueio um elemento central no Ambito da tradicao critica. A novidade do "bloqueio" na Teoria Critica remonta aos escritos de Friedrich Pollock, ocasionando uma ruptura brusca no seio do projeto do chamado primeiro modelo daquela tradicao. Pode-se dizer que tal empreendimento teorico, chamado de materialismo interdisciplinar, pretendia, em ultima instAncia, refletir acerca do fracasso da revolucao socialista em solo alemao, a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo marxista e multidisciplinar. A contribuicao de Pollock se da no sentido da apreensao da mudanca estrutural ocorrida no capitalismo no qual Marx se baseia para afirmar o colapso do sistema de trocas da livre-concorrencia: se, no Ambito da analise marxiana, o mercado exercia a funcao coordenativa da producao e distribuicao, i.e., da alocacao de bens de forma geral, na fase posterior--o capitalismo de Estado--a concorrencia e diminuida a niveis drasticos, por meio de instrumentos regulativos que proporcionam um controle efetivo da economia por parte do Estado (8). A mudanca estrutural do capitalismo exige o abandono do materialismo interdisciplinar e, nesse sentido, a estruturacao de um novo diagnostico de epoca. A teoria critica, nesse sentido, se utiliza de criterios criticos imanentes a sociedade na medida em que as proprias praticas sociais sao expressao de um processo de racionalizacao social e cultural. O sentido normativo deles e aberto e nao se reduz ao mero existente--mas pode haver situacoes de inercia, bloqueio e retrocesso. Todavia, se acredita na possibilidade de resgate discursivo, aprendizado e autocorrecao (9).

  3. Kirchheimer e o passado: nacional-socialismo e direito penal

    Sao as varias mudancas operadas no Ambito da tradicao critica que conformam o pensamento de Otto Kirchheimer na decada de 1930. Merece destaque o fato de que jurista deixa, ja no ano de 1935, algumas pistas acerca da influencia dos escritos de Pollock sobre a mudanca estrutural do capitalismo--de concorrencial para monopolista:

    Esse Estado Legiferante vazio [Dieser hohle Gesetzstaat], que reconhecia a existencia de obrigacoes reciprocas entre cidadaos e o Estado, foi superado pela versao nacional-socialista do Estado de Direito [...]. A transicao do capitalismo competitivo para a forma monopolista significa que a necessidade de tais regras juridicas desaparece. Grandes firmas capitalistas--como bancos ou monopolios--ja ha muito tempo nao dependem dos ritos dos tribunais no que diz respeito a conducao de seus negocios com os membros de outros estratos sociais. Estas conseguiram dominar o governo, uma vez que podem anunciar simplesmente uma proibicao no emprestimo ou argumentar que garantem o emprego de um exercito de lacaios. Os governos entao satisfazem as necessidades particulares dessas firmas por meio de regulamentacoes e decretos de emergencia (10). O proprio Kirchheimer ja havia notado, no ano de 1933, uma mudanca da funcao da lei, a ocasiao da discussao com Carl Schmitt sobre a questao da legalidade enquanto legitimidade. O que motivou o debate foi entrave criado por uma representacao parlamentar...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT