Origens sociais da divisao sexual do trabalho. A busca pelas origens sob uma perspectiva feminista.

AutorMies, Maria
CargoTexto en portugues - Ensayo

Origens sociais da divisao sexual do trabalho * A busca pelas origens sob uma perspectiva feminista (1)

Desde a decada de 1920, quando o positivismo e o funcionalismo tornavam-se orientacoes dominantes nas ciencias sociais ocidentais, a questao sobre as origens das relacoes desiguais e hierarquicas entre os individuos, em geral, e entre homens e mulheres, em especial, e tratada como tabu.

Somente agora essa questao e trazida novamente a debate. Curiosamente, nao por academicos, mas por mulheres que participam ativamente do movimento feminista. Independentemente das diferencas entre os diversos grupos e correntes feministas, essas mulheres estao juntas em sua insurgencia contra a hierarquica relacao homem-mulher. Essa relacao nao e mais aceita como uma fatalidade biologica. Pelo contrario: e vista como algo a ser abolido. A busca pelas origens sociais dessa relacao de dominacao entre homens e mulheres e consequencia necessaria do levante feminista. Para o movimento de mulheres, porem, a questao sobre os primordios dessa relacao nao e academica, mas, antes, e parte da estrategia politica da emancipacao feminina. Ela foi formulada porque nos percebemos que, sem o entendimento das origens, do desenvolvimento e dos mecanismos da desigualdade entre homens e mulheres, nao estariamos em condicoes de aboli-los.

Essa motivacao politica e estrategica diferencia nossa pesquisa pelas origens da desigualdade social entre os generos de outros esforcos investigativos. Seu objetivo nao e dar nova interpretacao ou explicacao a um problema antigo: trata-se, ao contrario, de soluciona-lo.

Nosso problema com a terminologia

Quando as mulheres comecaram a se questionar sobre as origens da relacao hierarquica entre os generos, elas constataram rapidamente que nenhuma das antigas explicacoes apresentadas pela ciencia era suficiente. Pois todas as explicacoes veem a assimetria social e a hierarquia entre os generos como algo, em ultima analise, biologicamente determinado--e isso significa estar fora do alcance de processos de transformacao social.

Esse determinismo biologico velado ou explicito--resumido na declaracao de Freud de que anatomia e destino--e provavelmente o maior obstaculo no caminho do conhecimento das causas para a divisao desigual do trabalho entre homens e mulheres.

Esse determinismo biologico latente nao e encontrado somente nos evolucionistas, behavioristas, positivistas, funcionalistas e estruturalistas, mas tambem em parte nos marxistas--ao menos onde falam sobre mulheres. Esse e o caso de Engels, Lenin e mesmo de Marx. Tais conceitos biologistas distorcidos sao, entre outros, "natureza", "trabalho", "divisao sexual do trabalho", "produtividade", "familia".

Em particular, o termo "natureza" e recorrentemente utilizado para representar a desigualdade social ou relacoes de exploracao como algo natural. Especialmente as mulheres devem agir com desconfianca quando seu respectivo status social for explicado por meio de fatores "naturais" como: compulsoriedade biologica a maternidade, constituicao mais fragil que a dos homens etc. Sua participacao na producao da vida e frequentemente vista como uma funcao da sua fisiologia, da sua "natureza". O trabalho domestico e o cuidado dos filhos sao considerados consequencias "naturais" do fato de que mulheres tem um utero e podem dar a luz. O trabalho que as mulheres desempenham nessa producao da vida nao e interpretado como uma interacao consciente de uma pessoa com a natureza, mas como um ato da propria natureza, que gera plantas e animais sem ter autocontrole sobre esses processos. Essa definicao da interacao feminina com a natureza como ato da natureza possui vastas consequencias.

O que se esconde por tras deste conceito--distorcido biologisticamente de natureza e uma relacao de dominacao, o dominio dos seres humanos (masculino) sobre a natureza (feminina). Essa relacao de dominacao esta tambem implicitamente compreendida nos conceitos acima mencionados, como por exemplo no de trabalho. Devido a uma visao biologista da atividade feminina, o seu trabalho domestico nao e definido como trabalho. O conceito de trabalho e majoritariamente utilizado no sentido restrito ao chamado "trabalho produtivo" nas relacoes capitalistas, e isso significa trabalho que produz mais-valia.

Embora mulheres tambem desempenhem este trabalho que produz maisvalia, o conceito de trabalho e dotado de uma marca masculina, pois as mulheres sao definidas tipicamente no capitalismo como donas de casa, ou seja, como naotrabalhadoras. Os instrumentos de trabalho, os meios de producao corporais, compreendidos no distorcido conceito biologista e androcentrico de trabalho, sao sempre apenas a mao e a cabeca, mas nunca o utero e o seio da mulher. Percebemos assim, que nao apenas o homem e a mulher sao definidos de maneiras distintas na sua interacao com a natureza, mas tambem que o proprio corpo humano e dividido. De um lado, esta sua parte considerada verdadeiramente "humana" (cabeca e mao) e, de outro, a "natural", isto e, "animalesca", (genitalia, utero, seio). Essa divisao nao e exclusivamente atribuivel ao sexismo universal dos homens, ela e resultado do modo de producao capitalista. O modo de producao capitalista esta interessado somente nas partes do corpo humano que podem ser usadas diretamente na criacao de mais-valia ou que possam servir como um complemento da maquina.

O proprio conceito de divisao sexual do trabalho tambem e biologisticamente distorcido. Observado de maneira superficial, esse conceito sugere que homens e mulheres se dividem nas diferentes e indispensaveis tarefas na producao social. O conceito, porem, oculta o fato de que as atividades masculinas sao consideradas aquelas verdadeiramente humanas (isto e, conscientes, racionais, planejadas), enquanto as femininas, por sua vez, parecem determinadas principalmente por sua "natureza". Alem disso, esse termo oculta que, entre atividades masculinas ("humanas") e femininas ("naturais"), ha uma relacao de dominacao e, em ultima analise, uma relacao de exploracao. (2)

No entanto, quando nos perguntamos sobre as origens da divisao sexual do trabalho, e importante deixar claro que essa relacao hierarquica e exploratoria e intencional e nao meramente uma simples divisao de tarefas entre parceiros iguais.

Sobre o metodo

A investigacao sobre origem da divisao sexual desigual do trabalho nao deve ser restringida a busca pelo momento pre-historico ou historico em que ocorreu "a derrota historica mundial do sexo feminino" (Engels, 1969). Apesar de os estudos da primatologia, arqueologia e da pre-historia serem importantes para nossa pesquisa, eles so podem nos ajudar se desenvolvermos um novo conceito, nao biologista de mulheres e homens e suas relacoes com a natureza e a historia. Segundo Roswitha Leukert, "o inicio da historia da humanidade nao e (...) de forma alguma o problema da definicao de uma data concreta, mas primariamente o problema de um conceito materialista de homem [o ser humano, M.M.*] e de historia" (Leukert, 1976:18). Se adotarmos essa abordagem, podemos afirmar que o estabelecimento de relacoes desiguais entre homens e mulheres nao e uma questao meramente do passado, mas algo que se concretiza diante de nossos olhos. Podemos descobrir muito sobre a formacao assimetrica da divisao sexual do trabalho quando examinamos o que acontece com as mulheres do "terceiro mundo" sob a influencia da chamada nova divisao internacional do trabalho. Nao apenas trabalhadores, camponeses e marginalizados em geral trabalham para o mercado global sob os ditames da acumulacao global do capital, mas tambem no Ocidente, assim como no "terceiro mundo", se opera uma politica sexista especifica para submeter todos os povos e classes as relacoes capitalistas de producao.

Apropriacao da natureza por homens e mulheres

Buscar uma concepcao materialista de mulheres, homens e sua historia significa buscar sua natureza humana. A natureza humana, no entanto, nao e um dado meramente biologico, mas o resultado da historia da interacao das pessoas com a natureza e entre si. Porque as pessoas nao vivem simplesmente (diferente dos animais), as pessoas produzem suas vidas. Essa producao da vida tem, desde sempre, ao menos duas dimensoes: a producao de meios de subsistencia, comida, vestimentas etc. e a producao de novas pessoas (MEW vol. 3: 28 ss). Marx caracterizou posteriormente essa producao da vida como um processo de apropriacao da natureza atraves do trabalho humano:

O trabalho e, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua propria acao, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a materia natural como com uma potencia natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da materia natural de uma forma util para sua propria vida, ele poe em movimento as forcas naturais pertencentes a sua corporeidade: seus bracos e pernas, cabeca e maos. (Marx, O Capital, Livro I, trad. Rubens Enderle. Rio de Janeiro: Boitempo, 2015. 326-327).

Por meio da apropriacao de materia natural externa, ele, no entanto, altera sua propria natureza:

Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua propria natureza. Ele desenvolve as potencias que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forcas a seu proprio dominio. (Marx, 2015: 327)

Neste ponto, diversas questoes tornam-se claras: 1. "Apropriacao da natureza" e uma caracteristica de toda a historia humana, inclusive das primeiras fases primitivas. 2. Marx tinha em mente o humano masculino, que com "bracos, pernas, cabeca e mao", age sobre a natureza externa. 3. "Apropriacao da natureza" significa para Marx, ja neste ponto, dominio sobre a natureza. Com isso ele reduziu o conceito de apropriacao (que nos escritos de juventude era utilizado no sentido de "fazer-se seu", "antropomorfizar a natureza") a uma relacao de dominacao. Contudo, tal conceito revela-se problematico para as mulheres.

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