Origens Históricas do Concurso Público

AutorAlice Ribeiro de Sousa
Ocupação do AutorAdvogada
Páginas21-57

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Toda instituição jurídica apresenta uma origem, um modo de constituição inicial, um meio em que se estabeleceu a princípio. A atividade administrativa, da mesma forma, precisou de agentes quando de sua instituição. Seja na época dos Estados Nacionais absolutistas da Idade Média – em que o rei se fazia confundir com o Estado, como se o Estado fosse uma única pessoa –, seja na formação das Cidades-Estado da Idade Antiga, a Administração sempre demandou agentes para dar consecução às suas necessidades e para se impor como fonte de autoridade.

Se a presença de agentes administrativos era necessária, também se fazia preciso escolher tais agentes. E tais escolhas deveriam obedecer a algum critério. E, mesmo em épocas mais remotas, nunca foi recomendável a escolha de qualquer pessoa dentre aqueles componentes da massa popular para compor os quadros dos agentes públicos.

Dentre as várias razões que tornam absolutamente inconveniente tal opção, cabe ser citada a possibilidade de se colocar inimigos do detentor do poder em postos que deveriam ser ocupados por seus aliados, o que poderia acelerar a sua destituição, tanto em razão da perda do apoio dos aliados quanto em função da desobediência levada a cabo pelos escolhidos. A escolha de pessoa incapaz de exercer as atribuições cotidianamente praticadas pelo ocupante do posto para o qual foi escolhido também poderia facilmente implicar no insucesso da atividade executada. Imagine-se, por exemplo, na Idade Antiga, o guerreiro sem compleição física suficiente para se impor aos inimigos. Certamente não inspiraria ele a menor confiança geral e poderia pôr em risco a vitória do grupo.

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Em todo trabalho acadêmico com vistas a analisar detidamente as nuanças jurídicas do concurso público, o estudo histórico dos meios encontrados pelo administrador para escolher as pessoas que executarão os atos e determinações por ele enunciadas é curial para que sejam traçadas as tendências evolutivas desta instituição jurídica, assim como verificar se ela é realmente o meio mais eficaz para satisfazer a necessidade de selecionar tais pessoas.

Feitas tais considerações iniciais, passa-se ao estudo histórico das modalidades de escolha dos agentes públicos.

1. 1 Modos de recrutamento: apontamentos históricos

Márcio Barbosa Maia, acompanhando a lição de José Cretella Júnior, enuncia que desde a Antiguidade até os tempos atuais o administrador foi capaz de conceber diversas espécies de recrutamento, merecendo destaque o sorteio, a compra e venda, a herança, o arrendamento, a livre nomeação absoluta e relativa, a eleição e, finalmente, o concurso.1O sorteio consistia, como o próprio nome sugere, em uma escolha entre diversos nomes, amparada por critérios baseados exclusivamente no acaso. Assim, é possível identificar nele nuanças de inspiração divina, como uma modalidade de ordálias para a seleção para cargos públicos.

O sorteio poderia aplicar-se à seleção indistinta de membros de uma coletividade de pessoas, ou então ser precedido de uma seleção condicional, incidindo sobre um grupo cujos membros não se mostrem, em uma análise breve e superficial, incapazes de exercer as tarefas cometidas ao cargo em questão.2Como o sorteio não permitia avaliar previamente, de modo objetivo, as pessoas escolhidas por sua capacidade para ocupar o cargo, foi

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uma modalidade de aplicação restrita ao longo da história. Entretanto, ocupou lugar de destaque entre os modos de seleção empregados na Antiguidade, especialmente na Grécia, para a escolha daqueles que exerceriam cargos públicos de natureza política. Para os cargos públicos efetivos a sua aplicação foi bem limitada.3À medida que os meios de governo por inspiração divina foram sendo abandonados, também o foi o sorteio. Entretanto, na história contemporânea ainda é possível encontrar exemplos de sua aplicação, podendo ser citada a experiência brasileira com a ocupação de funções militares, propiciada pelo Decreto nº 1.860, de 1908 – que, além de escolher ocupantes de cargos efetivos via sorteio, também o fez em época relativamente recente.

O segundo sistema de seleção historicamente observado foi o de compra e venda de cargos públicos. Instituído pelo rei Carlos VII, na França, tornou-se definitivo em 1529. O resultado de sua adoção foi, obviamente, a restrição do exercício dos cargos públicos aos mais ricos, à revelia, inclusive, de sua capacidade intelectual ou administrativa para exercê-los.4Outra modalidade de distribuição de cargos, surgida em paralelo ou até mesmo antes do sistema de compra e venda, foi o de sucessão hereditária, em que as atribuições eram cedidas ou vendidas a uma pessoa, que as transmitia a seus herdeiros. A herança também se revelou um modo de seleção inadequado. Afinal, e como bem anotado por Agapito Machado Júnior, nem sempre o filho estava à altura do pai, apesar do vínculo sanguíneo.5Procurou-se superar esta limitação com a delegação da função a substitutos ou representantes, o que obviamente destacou a limitação do sistema, pois a delegação poderia ser feita sem nenhum problema

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pela própria Administração, sem participação do particular. Assim, pode-se considerar que o Poder Público, ao conferir um cargo por hereditariedade, permitia que o particular usurpasse a faculdade de a própria Administração escolher seus agentes.

O arrendamento consistia em a Administração ceder ao particular a prerrogativa do exercício do cargo público, por prazo determinado e em face de contraprestação pecuniária paga ao erário.6Tratava-se, pois, de uma espécie da modalidade de compra e venda de cargos, com as mesmas desvantagens, uma vez que o arrendamento só poderia ser feito por aqueles de maiores posses e as atribuições em questão seriam praticadas apenas para atender a seus próprios interesses.

No sistema de livre nomeação absoluta, o cargo público é atribuído a alguém por meio de uma autoridade, e sem a interferência de outro Poder. Já o sistema da livre nomeação relativa consiste na escolha realizada por ato complexo, ou seja, o ocupante do cargo é indicado por uma autoridade e aprovado por outra.7No Brasil, a livre nomeação absoluta tem sido largamente aplicada para a escolha de ocupantes de cargos públicos, desde os tempos do Império. Está atualmente agasalhada pelo inciso II, do art. 37 da Constituição Federal. Embora dependa ela basicamente do alvitre da autoridade com poderes para nomear, não se pode afirmar que inexista qualquer limitação.

De fato, como bem recorda Diógenes Gasparini, a escolha no sistema de livre nomeação absoluta encontra limites. Após o advento da Emenda Constitucional nº 19/98, parte dos cargos e funções de confiança deverão ser preenchidos por servidores de carreira, nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei. Ademais, as nomeações destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.8

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A aprovação pelo STF da Súmula Vinculante nº 13, em agosto de 2008, limitou ainda mais a liberdade de escolha, para evitar a prática do nepotismo. A livre nomeação relativa é também adotada no Brasil, porém em menor escala que a livre nomeação absoluta. É empregada para a nomeação de ocupantes de cargos como os de presidentes de agências reguladoras e o diretor do Banco Central do Brasil, que são indicados pelo Presidente da República e devem ser aprovados pelo Congresso Nacional.9A eleição, como meio de escolha dos agentes administrativos, não pode ser confundida com a eleição própria dos representantes demo-cráticos e membros de Poder, dada a diversidade das funções por eles praticadas. Enquanto o agente político detém o poder de escolha dos meios de exercício da vontade política, ao agente administrativo cabe apenas colocar em prática tais meios.

O sistema de eleições não tardou a revelar-se desaconselhável, notadamente por estender à seara administrativa os problemas que apresenta quando empregado em esfera política, tais como a corrupção e o lobby. Não bastasse, o voto não é um meio adequado de se avaliar as capacidades intelectuais para exercício de uma atribuição administrativa. Quando muito pode avaliar o carisma da pessoa. Assim, apesar de democrática, a escolha mediante eleições nenhuma garantia pode oferecer contra a possibilidade de os votantes não escolherem o mais capaz ou mesmo de serem as eleições conduzidas por grupos dominantes.10

A seleção mediante concurso público tem suas origens na França de Napoleão Bonaparte. Em comentários sobre o momento histórico então reinante, Canotilho pontuou que o Código Civil Napoleônico trazia consigo a semente do princípio da isonomia, posto que afirmava desde já o princípio da igualdade nas relações jurídicas civis e que

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essa tendência teria então influência fundamental sobre a legislação administrativa a ser produzida.11

O concurso público surgiu, na França, como meio de seleção de candidatos a cargos públicos, alguns anos após a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder. É, entre todos, o único sistema que tem o grande mérito de afastar, de imediato, os incapazes para exercício do cargo público, posto que o procedimento se consuma de acordo com princípios informativos de ordem científica.12

É verdade que o concurso público não está isento de falhas. A elaboração de provas com vícios de redação, privilegiando uma área do conhecimento em detrimento das outras previstas no...

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