Origem e evolução do direito do trabalho no Brasil

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas124-158

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I Introdução

As proposições de método colocadas no momento do exame da formação histórica do Direito do Trabalho nos países de capitalismo central (capítulo anterior) também auxiliam a compreensão do processo correlato ocorrido no Brasil. Nessa linha, a busca da categoria básica em torno da qual se construiu o ramo justrabalhista — a relação empregatícia — é o ponto fundamental a delimitar a pesquisa da evolução histórica desse ramo jurídico na realidade brasileira.

Em país de formação colonial, de economia essencialmente agrícola, com um sistema econômico construído em torno da relação escravista de trabalho — como o Brasil até fins do século XIX —, não cabe se pesquisar a existência desse novo ramo jurídico enquanto não consolidadas as premissas mínimas para a afirmação socioeconômica da categoria básica do ramo justrabalhista, a relação de emprego. Se a existência do trabalho livre (juridicamente livre) é pressuposto histórico-material para o surgimento do trabalho subordinado (e, consequentemente, da relação empregatícia), não há que se falar em ramo jurídico normatizador da relação de emprego sem que o próprio pressuposto dessa relação seja estruturalmente permitido na sociedade enfocada. Desse modo, apenas a contar da extinção da escravatura (1888) é que se pode iniciar uma pesquisa consistente sobre a formação e consolidação histórica do Direito do Trabalho no Brasil.

II Periodização histórica do direito do trabalho brasileiro

Embora a Lei Áurea não tenha, obviamente, qualquer caráter justrabalhista, ela pode ser tomada, em certo sentido, como o marco inicial de referência da História do Direito do Trabalho brasileiro. É que ela cumpriu papel relevante na reunião dos pressupostos à configuração desse novo ramo jurídico especializado. De fato, constituiu diploma que tanto eliminou da ordem sociojurídica relação de produção incompatível com o ramo justrabalhista (a escravidão), como, em consequência, estimulou a incorporação pela prática social da fórmula então revolucionária de utilização da força de

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trabalho: a relação de emprego. Nesse sentido, o mencionado diploma sintetiza um marco referencial mais significativo para a primeira fase do Direito do Trabalho no País do que qualquer outro diploma jurídico que se possa apontar nas quatro décadas que se seguiram a 1888.

Ressalte-se que não se trata de sustentar que inexistisse no Brasil, antes de 1888, qualquer experiência de relação de emprego, qualquer experiência de indústria ou qualquer traço de regras jurídicas que pudessem ter vínculo, ainda que tênue, com a matéria que, futuramente, seria objeto do Direito do Trabalho. Trata-se, apenas, de reconhecer que, nesse período anterior, marcado estruturalmente por uma economia do tipo rural e por relações de produção escravistas, não restava espaço significativo para o florescimento das condições viabilizadoras do ramo justrabalhista.

Não havia, à época, espaço sensível para o trabalho livre, como fórmula de contratação de labor de alguma importância social; para a industrialização, como processo diversificado, com tendência à concentração e centralização, inerentes ao capitalismo; para a formação de grupos proletários, cidades proletárias, regiões proletárias, que viabilizassem a geração de ideologias de ação e organização coletivas, aptas a produzirem regras jurídicas; não havia espaço, em consequência, para a própria sensibilidade do Estado, de absorver clamores vindos do plano térreo da sociedade, gerando regras regulatórias do trabalho humano.

Tais condições vão reunir-se, com maior riqueza e diversidade, apenas a contar do final da escravatura, em fins do século XIX.

1. Manifestações Incipientes ou Esparsas

O primeiro período significativo na evolução do Direito do Trabalho no Brasil estende-se de 1888 a 1930, identificando-se sob o epíteto de fase de manifestações incipientes ou esparsas.

Trata-se de período em que a relação empregatícia se apresenta, de modo relevante, apenas no segmento agrícola cafeeiro avançado de São Paulo e, principalmente, na emergente industrialização experimentada na capital paulista e no Distrito Federal (Rio de Janeiro), a par do setor de serviços desses dois mais importantes centros urbanos do País1.

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É característica desse período a presença de um movimento operário ainda sem profunda e constante capacidade de organização e pressão, quer pela incipiência de seu surgimento e dimensão no quadro econômico-social da época, quer pela forte influência anarquista hegemônica no segmento mais mobilizado de suas lideranças próprias. Nesse contexto, as manifestações autonomistas e de negociação privada vivenciadas no novo plano industrial não têm ainda a suficiente consistência para firmarem um conjunto diversificado e duradouro de práticas e resultados normativos, oscilando em ciclos esparsos de avanços e refluxos2.

Paralelamente a essa incipiência na atuação coletiva dos trabalhadores, também inexiste uma dinâmica legislativa intensa e contínua por parte do Estado em face da chamada questão social. É que prepondera no Estado brasileiro uma concepção liberal não intervencionista clássica, inibidora da atuação normativa heterônoma no mercado de trabalho. A esse liberalismo associa-se um férreo pacto de descentralização política regional — típico da República Velha —, que mais ainda iria restringir a possibilidade de surgimento de uma legislação heterônoma federal trabalhista significativa3.

Nesse quadro, o período se destaca pelo surgimento ainda assistemático e disperso de alguns diplomas ou normas justrabalhistas, associados a outros diplomas que tocam tangencialmente na chamada questão social. Ilustrativamente, pode-se citar a seguinte legislação: Decreto n. 439, de 31.5.1890, estabelecendo as “bases para organização da assistência à infância desvalida”; Decreto n. 843, de 11.10.1890, concedendo vantagens ao “Banco dos Operários”; Decreto n. 1.313, de 17.1.91, regulamentando o trabalho do menor4. Nesse primeiro conjunto destaca-se, ainda, o Decreto n. 1.162, de 12.12.1890, que derrogou a tipificação da greve como ilícito penal, mantendo como crime apenas os atos de violência praticados no desenrolar do movimento5. Luiz Werneck Vianna aponta ainda como determinações legais desse período a concessão de férias de 15 dias aos ferroviários da Estrada de Ferro Central do Brasil, acrescida, em seguida, de aposentadoria (Decreto n. 221, de 26.2.1890), que logo se estenderá a todos os ferroviários (Decreto n. 565, de 12.7.1890)6.

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Já transposto o século, surge o Decreto Legislativo n. 1.150, de 5.1.1904, concedendo facilidades para o pagamento de dívidas de trabalhadores rurais, benefício posteriormente estendido aos trabalhadores urbanos (Decreto Legislativo n. 1.607, de 29.12.1906). O Decreto Legislativo n. 1.637, de 5.1.1907, por sua vez, facultava a criação de sindicatos profissionais e sociedades cooperativas7. Em 1919, surge a legislação acidentária do trabalho (Lei n. 3.724, de 15.1.1919), acolhendo o princípio do risco profissional, embora com inúmeras limitações8. Em 1923, surge a Lei Elói Chaves (n. 4.682, de 24.1.1923), instituindo as Caixas de Aposentadorias e Pensões para os ferroviários. Tais benefícios foram estendidos, posteriormente, às empresas portuárias e marítimas pela Lei n. 5.109, de 20.12.19269. Ainda em 1923, institui-se o Conselho Nacional do Trabalho (Decreto n. 16.027, de 30.4.1923). Em 1925, concedem-se férias (15 dias anuais) aos empregados de estabelecimentos comerciais, industriais e bancários (Lei n. 4.982, de 24.12.1925). Em 12.10.1927, é promulgado o Código de Menores (Decreto n. 17.934-A), estabelecendo a idade mínima de 12 anos para o trabalho, a proibição do trabalho noturno e em minas aos menores, além de outros preceitos. Em 1928, o trabalho dos artistas é objeto de regulamentação (Decreto n. 5.492, de 16.7.1928). Finalmente, em 1929, altera-se a lei de falências, conferindo-se estatuto de privilegiados aos créditos de “prepostos, empregados e operários” (Decreto n. 5.746, de 9.12.1929)10.

Há ainda uma significativa legislação estadual de São Paulo sobre a área justrabalhista. Em 27.12.1911, promulga-se a Lei n. 1.299-A, instituidora do “patronato agrícola, com a incumbência específica de resolver, por meios suasórios, quaisquer dúvidas surgidas entre os operários agrícolas e seus patronos”11. Em 14.11.1911, pelo Decreto n. 2.141, tratando do Regulamento do Serviço Sanitário do Estado, lançaram-se “dispositivos sobre condições de higiene nas fábricas, proibindo-se também a atividade dos menores de 10 anos e o serviço noturno dos menores de 18; no mesmo ano, criou-se o Departamento Estadual do Trabalho (Decreto n. 2.071, de 5.7.1911), encarregado do estudo, informação e publicação das condições de trabalho no Estado”12. Em 10.10.1922, finalmente, a Lei n. 1.869 criou os tribunais rurais naquele Estado13.

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2. Institucionalização do Direito do Trabalho

O segundo período a se destacar nessa evolução histórica será a fase da institucionalização (ou oficialização) do...

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