O plano de organização do Direito como interpretação: Uma hermenêutica do juízo a partir de Ronald Dworkin e Robert Alexy

AutorMurilo Duarte Costa Corrêa
CargoMestrando em Filosofia e Teoria do Direito pela UFSC. Graduado em Direito pela UFPR. Advogado.
Páginas1-39

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Introdução

Uma tentativa de elaborar uma plano de organização do direito como interpretação não poderia passar-se do trabalho com dois autores fundamentais à teoria contemporânea do direito: Ronald Dworkin e Robert Alexy. Embora ambos partam de premissas relativamente diversas, é possível descobrir cuidadosamente pontos de contato entre suas obras – afinal, ambos constituem importantes peças do pós-positivismo, ou neoconstitucionalismo, com sólida influência entre os juristas e filósofos do direito brasileiros.1

Assim, tencionamos esboçar a problematização comum a tais autores, que passa, inegavelmente, pela decisão singular, seus critérios, seus limites, a admissão de valores no interior da norma e, sobretudo, a possibilidade de uma teoria do direito que o entende comoPage 2 produto de uma construção interpretativa. Seus pontos de partida colocam-se, igualmente, de perto, possibilitando falar em um plano de organização do direito como interpretação, na medida em que o que os move seria uma certa insatisfação com modelos do positivismo jurídico no que toca à teoria da norma, à teoria da discrição judiciária, ao afastamento de uma axiologia ou de uma teoria política etc.

Por vias assumidamente ideais, embora se trate da argumentação, da interpretação ou do discurso jurídico, Dworkin chega, ao final, a uma teoria do direito como integridade, a qual teremos a oportunidade de estudar brevemente, enquanto Alexy busca uma metodologia jurídico-interpretativa, recortada sob o fundo de uma argumentação prática em geral.

Contudo, não o fazem sem partilhar diversos pontos de partida: uma caminhada idealista, supondo valores universais, e um modelo jurídico que, embora se pretenda baseado na construção interpretativa, integrando em si norma, dados empíricos, políticas governamentais e uma teoria dos valores, apenas os integra ao passo em que constituem aquilo que, segundo Dworkin, faz do direito um conceito interpretativo; isto é, aquilo em que, não raro, o conceito de direito tem se convertido: “the law often becomes what judges say it is”.2

1. Uma teoria “do(s) direito(s)” em Ronald Dworkin

Dworkin faz diversas censuras ao positivismo jurídico, mas também as faz à corrente do realismo jurídico e ao utilitarismo de Jeremy Bentham.3 Tendo sucedido Herbert L. A. Hart na cátedra de Teoria do Direito da Oxford University, o problema de Ronald Dworkin é constituir uma teoria “do(s) direito(s)” que ao mesmo tempo reflita e limite a prática judiciária como essencialmente jurídica. Isso implica pensar a constituição do jurídico como espaço de entrelaçamento das normas com o político e dos direitos com a moral. Assim surge, em sua obra, o ideal de direito como integridade como sua teoria mais própria, que atinge sua mais acabada expressão em uma teoria do direito aproximada da teoria estética da literatura.

Contudo, para chegar a essa noção, afigura-se imprescindível debelar as noções positivistas e utilitaristas mais amplamente aceitas; explicitamente, as teses que preconizam a cesura distintiva entre o jurídico e o político, como entre os direitos e a moral; bem assim, a idéia de que não existiriam direitos para além dos textos legislativos, mas também a idéia de que diante de uma multiplicidade de normas aplicáveis ao caso concreto, ou diante da total inexistência de normas a regrá-lo, existiria discricionariedade judiciária; isto é, Dworkin negaPage 3 que o juiz seja, num caso como em outro, legislador, embora lhe seja atribuída uma criatividade intrínseca à função de julgar que se mostrará, como veremos, tipicamente relativa.

1.1. Bentham e Hart

Dworkin se autoproclama liberal, apesar de considerar-se um crítico da teoria jurídica dominante. Tal teoria poderia ser desdobrada em dois vetores que atravessam o positivismo e pelo utilitarismo jurídicos. De um lado, tem-se a teoria por meio da qual se puderam obter as condições necessárias ao juízo de validade de uma proposição jurídica – teoria do positivismo jurídico; de outro, a teoria do utilitarismo, que consistiria na disposição de como o direito deve ser, de como devem ser as instituições jurídicas. Nesse sentido, pode-se dizer que Dworkin não é apenas um crítico do positivismo, mas mede-se, também, com Jeremy Bentham. Contudo, Dworkin toma esses dois vetores no ponto em que se reúnem para conformar uma teoria dominante. Ambas as teorias, apresentadas como independentes, serão criticadas por Dworkin também em sua independência; para ele, em verdade, ambas partilhariam de uma mesma tradição.

Diante disso, sua teoria geral do direito coloca-se como conceptual e normativa, abarcando uma diversidade de temas, dentre os quais deveriam constar teorias da legislação, da jurisdição (adjudication) e da obediência ao direito, de modo a contemplar o legislador, o magistrado e o cidadão comum. Esse catálogo abre-se para problemas de legitimação política dos legisladores, do constitucionalismo e uma filosofia moral e política mais geral, no dizer de Dworkin, conectando-se com questões de filosofia da linguagem, da lógica e da metafísica, fazendo enredar a filosofia em problemas que já não são estritamente jurídicos.

Ambas as análises confluem na teoria dominante, perpetuando valores como o individualismo e o racionalismo teórico.4 A essas teses, opõem-se pretensões de muitos antagonistas; dentre elas, diversas formas de coletivismo que fariam crer que o direito não poderia limitar-se pelas decisões deliberadas que o constituiriam na visão positivista, mas que deveriam abranger seu objeto a moralidade consuetudinária e difusa que influi em tais decisões.

Contudo, nenhuma dessas correntes críticas sustenta, a exemplo de Dworkin, que a teoria dominante falha porque os indivíduos podem ter direitos contra o Estado que sejam prévios aos direitos criados pela legislação positiva. O grande leitmotiv de sua empresa éPage 4 constituir uma Teoria do Direito que considere os direitos que os particulares possam ter não apenas em face do Estado – o que já condiz com uma expressão liberal –, mas especificamente os direitos que surgem reconhecidos pela posição do juízo: aquele que busca, descobre e declara direitos no caso concreto, podendo declará-los contra o Estado, contra a opinião majoritária, e até mesmo contra a lei.

1.2. O político e o jurídico

Dworkin pergunta-se se os juízes devem decidir casos valendo-se de fundamentos políticos. Escreve ele que um juiz que decide com base em fundamentos políticos não o faz como parte de política partidária, mas sobre suas próprias crenças políticas, que podem alinhar-se mais a um partido que a outro. Diz-se, comumente, aliás, que não seria correto proceder dessa maneira; ao menos, esse é o senso comum teórico britânico. Alguns chegam a admitir que seus juízes, de fato, decidem politicamente, mas aqueles que o admitem, apenas o fazem para reprovar essa prática. Nos Estados Unidos, a opinião profissional divide-se: muitos professores e estudiosos, e alguns juízes, sustentariam que as decisões judiciais são inegavelmente e corretamente políticas. Muitos, dentre esses, pensam que os juízes atuam e, de fato, devem atuar como legisladores, ainda que apenas nos interstícios das decisões tomadas pelo legislativo. Porém, essa visão está muito longe de ser pacífica nos Estados Unidos. Para Dworkin, o correto seria que os juízes baseassem suas decisões sobre casos controvertidos em argumentos de princípio político, mas nunca em argumentos de procedimento político.

Outra questão colocada por Dworkin no âmbito da relação jurídico-política consiste em responder à questão “O que é o Estado de Direito?”. Os juristas pensam no Estado de Direito como ideal político, mas controvertem quanto à substância desse ideal. Haveria uma concepção centrada no texto legal e outra centrada nos direitos que, mais ambiciosa, na visão de Dworkin, insiste em pressupor que os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado como um todo, que são, ademais, apenas reconhecidos pelo direito positivo para que possam ser exigidos pelos cidadãos.

A questão capaz de unir as duas teses apresentadas sobre o Estado de Direito é aquela que pergunta se, num caso controvertido sobre o qual o “Livro de Regras” não se pronuncie, os juízes devem ou não tomar uma decisão política. A concepção centrada no repertório legal funciona positivamente perguntando-se o que, efetivamente, está no livro de regras; negativamente, argumenta que os juízes nunca devem decidir casos com sua própriaPage 5 concepção política. Muitos sugerem uma espécie de prática semântica, deveras apreciada na Grã-Bretanha, para buscar a resposta na proposição positiva centrada no livro de regras. Outros, no mesmo sentido, propõem questões psicológicas; contudo, Dworkin afirma que tais questões são antes históricas que políticas.

Para a concepção centrada nos direitos, a questão será deslocada: trata-se de saber se o queixoso tem o direito moral de receber no tribunal aquilo que exige. “O texto jurídico é relevante para essa questão final”;5 e continua: “Contudo, embora o modelo centrado nos direitos admita que o texto jurídico é, dessa maneira, uma fonte de direitos morais no tribunal, ele nega que o texto jurídico seja a fonte exclusiva de tais direitos”.6 Assim...

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