Ordem Econômica e Dumping Social: Possibilidades de Análise pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência

AutorHumberto Lima de Lucena Filho
Ocupação do AutorDoutor em Ciências Jurídicas (Universidade Federal da Paraíba)
Páginas155-198

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A atividade econômica, parcela da ação humana, é objeto de regulação e de regulamentação pelo Direito. A visão isolacionista da Economia, desprovida de uma noção ética, como um sistema que se ocupa meramente de transações voluntárias orientadas pela alocação de recursos em um ambiente de escassez sem a preocupação das consequências possivelmente acarretáveis não se sustenta na pós-modernidade.

As transações envolvem interesses concretos, distribuídos numa virtualidade e numa volatilidade patrimonial até então desconhecidas, para além dos tradicionalmente tidos como locais ou regionais, com um desenho institucional supranacional. O advento da transnacionalidade com todas as suas peculiaridades e as suas inluências sobre regimes políticos são capazes de determinar objetivamente a conformação jurídica, cultural e de convivência de grupos sociais.

A ideia de vontade contratual deve ser vista consoante o ângulo da ausência de vícios sociais, somada à ponderação dos critérios de desigualdade econômica que criam um desnível real, superado por uma distinção de tratamento jurídico ao hipossuiciente. As cláusulas seculares de rigidez negocial, e. g., pacta sunt servanda, são atualmente temperadas por parâmetros de contextualização e de adaptação às circunstâncias econômicas das partes.

No novo modelo, formatado desde o século XIX, o mercado global funciona como um sistema de múltiplas funções. A relação entre mercado e direito, a contar da visão das ciências sociais, funciona como constituinte de um processo de socialização, em razão dos valores de uso serem transformados em valores de troca, atendendo e sendo responsável por grande parte das necessidades individuais, coletivas e estatais. Esse resultado é obtido pela prática de uma função regulatória do capital e do trabalho, da função de crescimento e de desenvolvimento, que incentivam o progresso tecnológico, a distribuição e a repartição de renda e o nível de estabilidade dos preços e da inlação345.

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O mercado pressupõe uma atuação relexiva de subsistemas interdependentes: o mercado de trabalho, o mercado de capitais e o mercado de bens de consumo. Mesmo vistos em uma linha cartesiana, para o tema em análise, essas subdivisões interagem de maneira mais intensa por tangenciarem uma área que entrelaça o sujeito trabalhador, o produto e o serviço, o comércio e o sujeito consumidor.

A ideia da deinição de mercado como um fenômeno eminentemente privado é incompatível com o papel assumido pelo Estado interventor, atuante pela via do direito econômico, empresarial, inanceiro e concorrencial. O reconhecimento de que há uma ordem econômica internacional e nacional foi objeto do fenômeno da constitucionalização do Direito346, na sua perspectiva de iltragem ou de absorção constitucional do direito ordinário, disponibilizando regras econômicas àqueles que estão inseridos nos processos de mercados.

Há no sistema constitucional uma constituição econômica que não se devota unicamente aos institutos inanceiros ou à atividade econômica, mas dialoga com a ordem social que lhe informa. A constituição econômica engendra mecanismos de intervenção estatal, no mercado, por meio das políticas econômicas, aliado ao relexo do caráter pluralista, heterogêneo e expansivo das pretensões constitucionais para todas as relações sociais347.

A inalidade constitucional econômica é erigir um arcabouço jurídico, inserido no âmbito da Constituição Política, que constitua uma ponte de transição entre Direito, Economia e Política, e detenha sentido se analisado em conjunto com toda a organização do Estado, conferindo-lhe legitimidade de ação e de organização no aspecto econômico. O modelo privatista não foi suiciente para suprir as demandas escaladas pela histórica decadência social provocada, dentre outras razões, pela inacessibilidade aos bens econômicos. Os motivos contribuintes para essa situação são variados, contudo, segundo o ângulo econômico, tanto o excesso de atividade estatal quanto sua ausência em demasia são funcionalmente corresponsáveis pela utopia dos direitos sociais e econômicos.

A proteção e a tutela como política de inlação legislativa podem se revestir da indumentária das boas intenções de resguardo pelos mais frágeis, porém, é inolvidável que não há direitos sem obrigações e, quanto aos direitos sociais, essas obrigações recaem naturalmente nos agentes privados. No caso brasileiro, os atores econômicos (empregadores, nesse caso) são os responsáveis pela concretização dos direitos fundamentais, num ambiente precário de negociação e envolvido por superestruturas de exercício de poder.

Se a proteção excessiva asixia e desestimula a livre-iniciativa e a propriedade, a indiferença proativa do Estado, sonho libertário, não é a inscrição no livro da vida celestial. É nessa mediania aristotélica entre a livre-iniciativa e a função da propriedade que se enquadra a Ordem Econômica e Financeira da Constituição da República. Esta, no seu art. 170, moldura

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e direciona a Constituição Econômica para uma atividade de mercado liberal, passível de limitação apenas pela lei, condutora do bem-estar social e não apenas para um lucro empresarial desprovido dos valores mais caros à própria história do constitucionalismo348.

A teoria geral do Estado e as Revoluções Burguesas são frutos da constatação de que o acesso às oportunidades deve conviver com uma limitação da atividade estatal na vida privada. A boa convivência dessas duas vertentes desemboca no dever prestacional permissivo a todos terem a chance de subir no primeiro degrau da escada do desenvolvimento pessoal com a prudência dos sujeitos encarregados dessa função intervirem minimamente. Impossível cogitar qualquer possibilidade de se realizar um projeto de vida pessoal sem as liberdades políticas e econômicas e, por isso, advoga-se pela indivisibilidade dos direitos humanos, na arena pública e privada, horizontal e vertical, objetiva e subjetiva.

O marco inicial da elevação da vida econômica ao quilate constitucional coincide com o constitucionalismo social, inaugurado pela Constituição Mexicana de 1917 e pela Constituição de Weimar, de 1919. A correspondência de documentos não é à toa. Os direitos sociais estão vinculados aos ideais de paz e de justiça universal, conferindo dignidade aos seus titulares e oportunizando o exercício dos direitos econômicos. Ainda em 1919, o art. 151 da Constituição de Weimar, que inaugurava o capítulo “Da vida econômica” (Das Wirtschatsleben), assegurava que a vida econômica era pautada pela justiça e pela existência digna, unicamente, concebendo-se a aquiescência ao direito de propriedade, à liberdade contratual e à herança se imantados pelo dirigismo social da vida digna349. Desde então, todo o regramento do direito econômico atravessa o rio da dignidade, da igualdade e do mínimo existencial, corroborando com a constituição econômica para a fundamentação da viabilidade dos direitos sociais trabalhistas (que lhe conferem sustentáculo recíproco). Toda a ordem econômica constitucional é dialógica com a valorização do trabalho humano, que repercute não meramente no crescimento econômico calculado com base na junção da riqueza criada em um determinado espaço, todavia, na construção do conceito de desenvolvimento social sustentável que dispensa a função exclusivamente especulativa do mercado350.

O nível de importância dos assuntos econômicos não se resumiu ao constitucionalismo nacional. Remete a uma tendência que se incorporou às demais constituições nacionais, que deixaram de ser documentos mínimos de organização do Estado e inauguraram um constitucionalismo social. Posteriormente, alcançaram a ordem econômica internacional no primeiro quarto do século XIX.

Impulsionada pela percepção da cidadania global, a proteção aos direitos humanos pode ser vista pelo fenômeno da sua internacionalização e do nascimento de uma relação de interdependência entre o constitucionalismo e o direito internacional dos direitos humanos, formulando-se um espaço híbrido de permissividade da jurisdição protetiva denominado

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Direito Constitucional Internacional. Não concerne especiicamente à criação de uma superposição de instâncias judiciais (com a criação de Cortes Internacionais e Regionais) ou à prevalência de regras transnacionais de direitos humanos, antes de “(...) um direito de aplicação subsidiária”, que se respalda na “(...) interpenetração das normas constitucionais — ambiência natural dos direitos fundamentais — e das regras internacionais de proteção dos direitos humanos”351, materializado pelo art. 5º, § 2º, da Constituição da República de 1988.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no art. 17, consagra o direito à propriedade e à sua proteção, no art. 22, garante o direito à segurança social. Prevê, também, a exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, sustentado no esforço nacional e na cooperação internacional, harmônica com a organização e os recursos de cada país. A sistematização dos direitos e das liberdades preconizadas pela Declaração apenas é factível caso haja a primazia de uma ordem social e internacional capaz de efetivar os direitos nela conferidos. Daí ser plenamente aferível que a ordem adjudicada pela Declaração é uma ordem solidarizante, manifestada na seara internacional e nacional, de estética espiral.

O capítulo em curso sinaliza a contribuição do direito internacional do trabalho, dos instrumentos tradicionalmente não normativos situados no âmbito empresarial para a efetivação do direito à concorrência sadia, na esfera nacional e internacional, com enfoque particular na dupla acepção do dumping social.

4.1. Aspectos econômicos das relações trabalhistas...

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