Classificação ontológico-normativa dos animais

AutorMarcos Augusto Lopes de Castro
CargoMédico Veterinário formado pela Universidade Federal Fluminense
Páginas159-182

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1. Introdução

Ainda que não haja este tipo de classificação pelos autores cujas idéias iluminam este trabalho, podemos propor uma possível delimitação de um contorno em busca da evolução da tutela jurídica dedicada a cada grupo de Animais. Tais limites têm como base legislações, nacionais e estrangeiras, e apontamentos doutrinários. O manejo dedicado a cada Animal de acordo com sua classificação é uma tendência atual, vide o Projeto de Lei 215/07 que tramita no Congresso Nacional as legislações que tratam das tutelas internacionais, principalmente na Europa. Delas podemos destacar a Convenção Européia sobre Animais de Companhia, a Convenção sobre Animais de Experimentação, Convenção Européia sobre a proteção dos Animais em Transporte Internacional, Convenção Européia sobre a proteção dos Animais de Abate, Convenção Relativa a Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa e demais convenções européias relativas à proteção da Fauna (Costa, 1998).

Ao contextualizar uma classificação objetivamos facilitar a compreensão do assunto, bem como estimular a discussão social dos aspectos intrínsecos dessa classificação, orientando principalmente a produção intelectual e a normativa. Assim, não é exagero afirmar que o que se espera é a melhoria nas condições de vida dos Animais. Melhoria esta que depende de idéias que ajudem a desembolar o emaranhado conceitual que encontramos na literatura atual. Tentar inaugurar no ordenamento pátrio essa classificação tem o fulcro de explicitar os diferentes níveis de proteção que já existem, direcionando produções ideológiconormativas a alvos mais claros e delimitados, atentando-se às particularidades de cada um.

2. Animais Sencientes

Animal é um termo metajurídico, pois se refere a uma classificação biológica, da qual fazem parte indivíduos das mais

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variadas composições físicas. A simples denominação Animal ainda causa muita confusão pela variedade de espécies a que se refere e porque os próprios cientistas não conseguiram "até hoje, dar a necessária estabilidade à nomenclatura zoológica" (Ihering, 2002). Nosso objeto de estudo, entretanto, não é obter classificações minudentes, reservando-nos a tratar das menos controvertidas, como, por exemplo, a de vertebrados ou cordados, para que possamos chegar a uma classificação normativa mais objetiva.

Em que pese muitos autores falarem em Animais referindose somente aos vertebrados com neste trecho "Somente o fato de Animais serem criaturas sencientes já lhes deveria assegurar nossa consideração moral, impedindo a inflição de maus tratos ou a matança advinda de interesses humanos" (Levai, 2004) é

importante reforçar que o Reino Animal é vastíssimo em espécies, nele incluído desde criaturas microscópicas como os ácaros, passando por parasitas intestinais indo até criaturas dotadas de um complexo sistema nervoso como os mamíferos.

Quanto ao conceito normativo de "Animal", sabemos que o primeiro diploma legislativo a trazê-lo para o ordenamento pá-trio foi o decreto 24.645/34:

"Art. 17 A palavra "Animal", da presente lei, compreende todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos".

Castro (2006) chama atenção para a palavra "daninho". Hoje para que um Animal seja assim considerado é necessária, conforme art. 37, IV da lei 9.605/98, a autorização do órgão competente, mediante processo prévio, com provas plenas e acabadas.

Outra observação importante a respeito deste conceito, está na referência à irracionalidade. Este conceito deriva do uso da razão no direcionamento das condutas, mas Araújo (2003) discutindo sobre critérios que sirvam como fundamento para uma demarcação, entre os seres que merecem ou não, consideração ética plena diz de forma crua que:

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...se fossemos assentar a discriminação em ‘capacidades racionais’ e aceitássemos qualquer grau de sofrimento nos seres discriminados, seríamos levados a conclusão de que as crianças, os deficientes profundos e os irreversivelmente incapacitados entre os humanos poderiam justificadamente ficar mais expostos ao sofrimento do que os demais membros da sua espécie e até do que muitos não humanos.

Destacamos desde já, que conforme a ratio envolvida no conceito de Animal podemos perceber que ora ele apresenta-se amplo, ora restrito. Quando se restringe o termo Animal, é por que normalmente estão sendo feitas considerações em torno do objetivo de evitar que um grupo de Animais seja submetido a condições que provoquem o que hoje detectamos como dor ou sofrimento. Por outro lado se Animal está sendo utilizado em sentido amplo denota-se uma maior preocupação deste Animal como parte de um sistema, como o responsável pela manutenção do equilíbrio dinâmico das relações naturais, ou não-antró-picas. Portanto nesta segunda acepção a garantia de sua existência é mais valiosa que a garantia de seu bem-estar. Parece-nos que desta ponderação é possível concluir que caso determinado Animal esteja diretamente sob a responsabilidade humana, de forma intrínseca ou extrínseca, justifica-se uma tutela voltada para o bem-estar dos Animais que estariam aptos a tê-lo, e caso ele esteja em um habitat não-humano reger-se-ia pelas "leis da natureza", visando-se proteger este ambiente de quaisquer ações antrópicas, pouco importando se este Animal tem ou não capacidade de sentir (pois seria impossível, por exemplo, regular a relação entre um animal não-humano predador e sua presa).

Ainda podemos fazer um esclarecimento, diferenciando dor e sofrimento, não obstante ambos sejam sentimentos comuns a todos os vertebrados. Dor segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor é uma "experiência sensorial ou emocional desagradável associada à lesão tissular real ou potencial, descrita em termos de tal lesão". Esta "descrição" impossibilitaria a aplicação deste termo quando nos referimos a Animais pela ausência de uma linguagem inteiramente articulável para nós,

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apesar de métodos subjetivos serem capazes de nos indicar estímulos relacionados a dor. Para Animais a melhor terminologia seria estímulo nociceptivo (Hellebrekers, 2002), embora no presente trabalho ele venha como sinônimo de dor. Já o sofrimento é uma expressão utilizada para definir no ser humano adulto "a capacidade de ‘meta-representação’ intelectual das experiências que transforma as emoções em angústias - e faz da própria representação um motivo de penosidade, independentemente da dor que se experimenta" (Dennett, 1991).

Para as ciências biológicas contemporâneas alguns Animais reúnem, como característica comum, um grupamento de células capazes de decodificar de forma complexa os impulsos nervosos provenientes dos mais diversos estímulos ambientais. Este grupamento de células está presente nos chamados Animais pertencentes ao filo Chordata (Ferri, 1974), ou simplesmente Cordados (Fortes, 1997). Este nome é originário de uma estrutura chamada Notocorda, que tem o papel de induzir a formação da "placa neural" no embrião, e esta, por sua vez, dará origem ao sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal) (Sadler, 2001). Dependendo da espécie a notocorda estará presente em indivíduos adultos ou somente na formação embrionária. Nos mamíferos, conseqüentemente também no ser humano, ela dará origem ao núcleo pulposo dos discos intervertebrais (Sadler, 2001). Esses Animais Cordados, ainda se subdividem em um grupo com poucas espécies, chamado Acraniata e um grupo muito maior chamado Vertebrata, Craniata ou Vertebrados, que se diferencia por apresentar indivíduos com "encéfalo, crânio e vértebras" (Ferri, 1974)1. A lei 11.794/08 trouxe estes novos conceitos para o ordenamento jurídico no seu artigo 3°, que assim dispôs:

Art. 3 Para as finalidades desta Lei entende-se por:

I - filo Chordata: animais que possuem, como características exclusivas, ao menos na fase embrionária, a presença de notocorda, fendas branquiais na faringe e tubo nervoso dorsal único;

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II - subfilo Vertebrata: animais cordados que têm, como características exclusivas, um encéfalo grande encerrado numa caixa craniana e uma coluna vertebral;

Um dos argumentos que justificam a ampliação dos direitos relativos aos Animais está na questão da senciência. Este termo foi cunhado por Andrew Linzey em 1980 denotando uma atitude de favorecimento dos seres sencientes em relação aos nãosencientes (Bekoff, 1998). Apesar desta escala de moralidade trazer mais um critério, como a razão, a linguagem, a cultura ou a amizade, que imponha barreiras para a expansão da sensibilidade moral, ela é hoje a mais utilizada em todo o mundo para justificar a ampliação da proteção aos Animais.

Não só nos animais a questão da proteção conferida com base na existência ou não de sistema nervoso central complexo é importante. Não podemos esquecer a lei 9.434 de 04 de fevereiro de 1997, que regulamenta os transplantes de órgãos no Brasil, em seu artigo art. 3º condiciona a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano ao pretérito diagnóstico de morte encefálica. Também é analisada a relevância de ter ou não sistema nervoso formado nas questões que envolvam o aborto de feto anencéfalo, e o uso de embriões humanos em pesquisas estabelecido no artigo 5° da lei 11.105 de 24 de março de 20052. Velasco (2007) citando Luís Roberto Barroso, em seu trabalho sobre este assunto assim ilustra:

Se a vida humana se extingue, para a legislação vigente, quando o sistema nervoso pára de funcionar, o início da vida teria lugar apenas quando este se formasse, ou, pelo menos, começasse a se formar. E isso ocorre por volta do 14º dia após a fecundação, com a formação da chamada ‘placa neural.

Adotando o que chamamos de Princípio da Senciência temos tanto a lei 11.794 / 2008, como a diretiva 86/609/EEC da União Européia, de 24 de novembro...

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