On the extraeconomic grounds of racism in Brazil/ Dos fundamentos extraeconomicos do racismo no Brasil.

AutorBatista, Waleska Miguel

Introducao

A literatura atual sobre racismo no Brasil aponta para um consenso, majoritariamente aceito, segundo o qual a discriminacao racial tem fundamento economico, na estrutura do modo de producao capitalista. Ou seja, grande parte dos estudiosos sobre este tema afirma que o capitalismo se utiliza do racismo para se reproduzir e, para ocultar as condicoes de dominacao e exploracao racial, criam-se justificativas no sentido de naturalizar, normalizar ou mesmo considerar como positivas quaisquer situacoes de discriminacao racial.

Neste trabalho, ousamos respeitosamente discordar desse consenso teorico. Reconhecemos que as justificativas para manutencao e reproducao de relacoes sociais racistas (discriminatorias, de diminuicao das condicoes dos negros em relacao aos brancos) existem no capitalismo e sao fortemente utilizadas para organizar o modo de producao. No entanto, essas justificativas sao anteriores ao capitalismo, que se apropriou de uma violencia que estruturava as relacoes sociais no sistema anterior, o escravagista.

Naquele sistema, como o trabalho era desenvolvido fundamentalmente a partir da mao-de-obra escrava, impunha-se justificar a objetificacao dos negros e o uso de violencia fisica para manutencao da ordem economica e social. A sociedade escravagista era estruturada a partir dessa desigualdade fundamental: importava que os negros fossem identificados como objetos para que o sistema funcionasse. (1)

Por outro lado, no sistema capitalista, importa a existencia de um mercado consumidor das mercadorias produzidas, e importa, antes disso, que a producao seja realizada a partir do trabalho realizado em escala industrial, mediante pagamento de salario em contrapartida a forca de trabalho vendida pelo operario. No capitalismo, o industrial nao e e nem precisa ser proprietario do trabalhador. Em um primeiro momento, nao faz sentido discriminar racialmente o trabalhador, pois a hora de trabalho sera (mal) paga de qualquer maneira, seja o empregado branco ou negro, homem ou mulher. Em termos racionais e de eficiencia economica, com o fim do sistema escravagista, e no ambito do modo de producao capitalista, nao haveria motivos para a permanencia do racismo.

No entanto, houve dominacao racial no final do seculo XIX, houve discriminacao racial durante todo o seculo XX e ainda hoje se mantem relacoes racistas na sociedade brasileira (REITES, 2004: 117-118). Ou seja, os negros, que foram subalternados no sistema escravagista por forcas nao-economicas, tem sofrido, no ambito do modo de producao capitalista, uma exploracao dupla: o sistema economico se aproveita do sistema social racista para negociar a forca de trabalho do negro como uma mercadoria ainda mais barata que a forca de trabalho do branco. Na verdade, o racismo se mantem na sociedade contemporanea de varias formas. Neste artigo, nos interessa compreendelo como uma justificativa extraeconomica para a exploracao economica.

A discriminacao se mantem, seja com base em motivos de ordem religiosa, seja de natureza (pseudo)cientifica, ou ambas (SCHWARCZ, 1993: 144-146). O racismo impregna a dimensao cultural da sociedade brasileira e retroalimenta sua dimensao economica, autorizando que, na divisao social do trabalho, os servicos com remuneracao mais baixa sejam reservados majoritariamente aos negros; ou que negros ganhem menos que brancos no exercicio do mesmo tipo de servico; ou que negros tenham muito mais dificuldade para encontrar empregos que brancos etc. Mesmo quando "sobem na vida", os negros continuam a sofrer discriminacao por causa de sua cor. E em termos comparativos, as chances de negros "subirem na vida" sao bem menores que as de brancos, ainda que em condicoes economicas inferiores. (2)

A esse respeito, Johan Galtung (1990: 290) afirmou que existem tres dimensoes da violencia: direta, estrutural e cultural. As tres se retroalimentam, possuem reflexos convergentes e se manifestam conjuntamente. O autor define a violencia direta como a imposicao da vontade de um grupo (o dominante) sobre o outro (o dominado) pela forca fisica (1990: 291); a violencia estrutural como a marginalizacao e nao-formacao de consciencia dos dominantes para que nao haja reacoes contra as repressoes que os atingem (1990: 294). Alem disso, esta dimensao da violencia faz com que os constrangimentos direcionados a populacao negra sejam naturalizados ou normalizados; e a violencia cultural pode ser entendida como uma forma de legitimacao da violencia estrutural, estando embutida na linguagem, na arte, nos modos, na visao de mundo das pessoas e no seu senso de justica (1990: 294-295), de maneira que retroalimenta as desigualdades.

Pretendemos constatar, portanto, se o que fundamenta hoje o racismo no Brasil e, nos termos de Galtung, violencia cultural e, portanto, extraeconomica. A partir da revisao bibliografica de periodicos de revistas qualificadas e de livros sobre o tema, alem da analise de dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), Mapa da Violencia e Conselho Nacional de Justica (CNJ), procuramos identificar o que impede a realizacao da democracia racial material ou, em outras palavras, o que mantem a inferiorizacao da populacao negra, ainda que ja decorreram tantas decadas desde a abolicao da escravatura.

Buscamos, enfim, identificar o racismo como elemento fundante da violencia estrutural no periodo escravocrata, que se mantem no periodo capitalista na forma de violencia cultural, embora tambem retroalimentado fortemente pela violencia estrutural havida sobre as classes sociais mais pobres, em especial pela presenca marcante da populacao negra nessas classes.

Propusemo-nos a ilustrar que o racismo no Estado Brasileiro e uma questao que ultrapassa os limites do capitalismo, pois sua manifestacao atinge as pessoas negras independentemente de sua classe social. (3)

Assim, o racismo se perpetua. O grupo composto pela populacao negra ainda e dominado por outro, branco, mesmo diante de previsoes legais que comandam expressamente a protecao dos direitos fundamentais pactuados em 1948 pela Declaracao Universal dos Direitos Humanos, e a promulgacao de leis internas que positivam a igualdade racial.

Alias, o repudio (formal) a desigualdade racial no Brasil tomou forca com a promulgacao da Constituicao Federal de 1988 e com leis especificas, como a que criou a Secretaria de Politicas Publicas de Promocao da Igualdade Racial (Lei n. 10.678/03), Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/10), entre outras (4) que, embora validas e em vigor, nao funcionam para sua pretensa finalidade. Nao sao postas em pratica e, em vez de combaterem o racismo, o retroalimentam, pois a propria sociedade nao leva tais leis a serio.

O Brasil apenas passou a adotar medidas efetivas de combate as desigualdades raciais apos pressoes realizadas por diversos orgaos da Organizacao das Nacoes Unidas (ONU), que emitiram relatorios negativos, declarando a persistencia de profundas discriminacoes raciais contra os negros nos mais diversos ambitos da sociedade brasileira (IZSAK, 2015).

Apesar de os relatorios internacionais apontarem as desigualdades raciais no Brasil, assim como explicitado nos dados coletados pelo IBGE, mapas da violencia (WAISELFISZ, 2016), censo dos magistrados (BRASIL, 2014), verifica-se que o racismo permanece resistente em todo tecido social, impedindo o exercicio da cidadania pelos negros.

A tipificacao do racismo como crime (artigo 5[degrees], inciso XLII, da Constituicao Federal de 1988; artigo 20 da Lei n. 7.716/1989, e artigo 60 da Lei n. 12.228/2010) nao fez com que as praticas racistas fossem punidas, ja que esses dispositivos, assim como praticamente todas as leis antirracistas, sao em regra inaplicados (BERSANI, 2017: 9495). (5)

Ao longo deste estudo, averiguamos que a populacao negra continua sendo inferiorizada nos mais diversos campos das relacoes civis. O racismo se tornou ilegal, mas continua sendo francamente exercido, identificado como conduta normal ou norma de conduta nas mais diversas situacoes sociais, em que os autores desses atos de racismo talvez nao sejam aplaudidos, mas dificilmente (quase nunca) sao indiciados, quanto mais responsabilizados.

Desta forma, questionamos por que o racismo, embora ilegal, mantem-se nas mais diversas praticas sociais na realidade brasileira. Para comprovar nossa hipotese sobre a natureza extraeconomica do racismo, primeiramente, relatamos a dominacao das pessoas brancas sobre as pessoas negras, pelo fato destas terem uma cor de pele diferente da delas, fazendo com que se perpetuasse a classificacao das pessoas em racas (na verdade, etnias), independentemente da classe social.

A seguir, identificamos que a desigualdade racial se apresenta hoje na forma de violencia cultural, a tal ponto que a legislacao antirracista nao e suficiente para inibir os comportamentos discriminatorios e preconceituosos. E, por ultimo, apontamos que o racismo se reproduz culturalmente, subjugando os homens negros e as mulheres negras, de modo autonomo em relacao a quaisquer condicoes economicas.

Racismo: contexto da dominacao e da transformacao dessa condicao historica como um dado "natural"

A dominacao europeia ocorreu com o crescimento do comercio internacional por forca das expansoes maritimas e territoriais, tendo alcancado o territorio africano e as Americas, desenvolvendo a traficancia dos homens negros pelo Oceano Atlantico como uma forma de crescimento economico (WEDDERBURN, 2007: 156-157).

A escravidao-racial (6) foi praticada entre os seculos XV e XIX sob a egide da superioridade branca europeia, (7) de maneira que homens, mulheres e criancas africanas foram comercializados por quase quatro seculos (RIBEIRO, 1995: 161) para suprir a maode-obra do modo de producao escravagista que organizava a economia ocidental como um todo e a brasileira em particular.

Todas as relacoes sociais daquele periodo historico se estruturavam segundo um sistema racista, (8) determinando e legitimando a existencia...

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