O olhar brasileiro de tocqueville sobre a composição política nacional

AutorAna Luiza Almeida e Silva
CargoBolsista de Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro
Páginas123-143

Page 123

I Introdução

Page 124

A partir1 de meados do século XIX, testemunhou-se no Brasil o início do debate teórico acerca da construção de um modelo genuinamente brasileiro de nação. Influenciados pela leitura de autores que atrelavam a análise política à investigação de leis e costumes, como Aléxis de Tocqueville, os teóricos brasileiros mudaram o foco dessa discussão, passando a fazer um o exame holístico da realidade do país. As considerações sobre a forma de Estado e regime de governo a serem adotados passaram a ser secundárias e direcionou-se o debate para a necessidade de se compatibilizar forma institucional e estrutura social. Dessa forma, tornou-se uma constante nas propostas políticas desse período a verificação de particularidades da formação histórico-social brasileira.

Diante desse quadro, nas investigações acadêmicas do século XX, identificaram-se nessa construção institucional diversos momentos que desqualificaram o caráter revolucionário dos artefatos legais progressistas implementados nessa transição para a modernidade política. A incongruência entre projetos de caráter público e o interesse privado culminou em uma série de revoluções passivas 3 que hoje voltam ao debate acadêmico na averiguação das causas do ―atraso brasileiro‖. No âmbito desse debate, retoma-se à temática do patrimonialismo, conceitualizado pelo jurista e sociólogo alemão Max Weber e suas diversas interpretações, aplicado ao contexto brasileiro.

A visão hegemônica nas ciências sociais que atribui a atrofia da máquina estatal à herança lusitana, agora, passa a ser interpretada como uma forma patológica de acesso ao moderno 4 . Transfere-se, portanto, o ponto central dessa avaliação para estruturação histórica da sociedade brasileira envolta pelo princípio da dominação pessoal, relações patriarcais, territorialismo, ordem escravocrata e, finalmente, o Estado como instrumento do exercício do poderio de elites dominantes. Essa composição, diante de uma proposta de Estado-Nação, pareceria desarrazoada, no entanto, foi utilizada como ferramenta para uma transição rigorosamente dirigida. 5

Page 125

Para compreensão dessa leitura contemporânea do fenômeno do patrimonialismo weberiano6 , é necessário que revisitemos os estudos de eminentes autores dos séculos XIX e XX, cujas obras tratam de temas que abrangem desde a eclosão da independência brasileira, até proposta de concentração de poder como forma de superação do atraso. Muito embora alguns deles estejam distantes no tempo ou díspares quanto ao posicionamento político, é possível e necessário o diálogo entre esses autores. Propõe-se, portanto, a historicização do fenômeno político-legislativo sob um prisma sociológico, considerando-se não somente os fatores de Estado até então patentes, mas também o resultado da conjuntura de elementos econômicos, políticos e populacionais dentro desse quadro. A correlação de teorias e avaliações de diversos períodos históricos torna-se profícua à medida que o encontro de conceitos é capaz de suplantar soluções para a realidade presente.

Logo, neste estudo, analisaremos a abordagem de três autores: Joaquim Nabuco, herdeiro político do império, harmonizou sua posição monarquista com a militância antiescravista; Oliveira Vianna, jurista e sociólogo, teve função determinante na elaboração da legislação sindical e trabalhista brasileira durante o governo Vargas; e, finalmente, Francisco Campos, articulador da Revolução de 1930, teórico da ditadura implementada no Estado Novo, assumiu o cargo de Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores, de 1937 a 1942.

Convém destacar que tanto Vianna quanto Campos foram fortemente influenciados pela obra de Joaquim Nabuco que, por sua vez, foi marcada pelo exame da produção bibliográfica de Aléxis de Tocqueville. Em todos os autores é uníssona a consideração de um fator que atrela a realidade liberal ao legado do passado colonial. Para todos esses teóricos, diante desse quadro, a implementação de qualquer artefato político progressista demandaria uma gradual conciliação com o passado.

II Tocqueville e o modelo norte-americano de democracia liberal

Page 126

Aléxis de Tocqueville, sociólogo francês da democracia moderna, foi enviado pelo governo da França para estudar o sistema prisional norte-americano em meados do século XIX. Deparou-se com um regime que, para ele, seria um caminho natural de todos os Estados. Debruçou-se então sobre os costumes e as leis daquela recém-criada nação, buscando compreender a lógica liberal norte-americana diante da democracia. Esse exame da sociedade norte-americana e de seu arranjo político resultou em um texto clássico das ciências sociais: ―A Democracia na América‖.

Sua análise não busca uma compreensão histórica da sociedade norte- americana, mas sim, um exame situacional e comparativo, já que sua experiência até aquele momento voltava-se para a efervescente nação francesa em vias de construção de um regime democrático pós-revolução. A análise do autor leva-nos a uma reflexão acerca do antagonismo entre o interesse privado liberal e a coisa pública democrática, pois, em um ambiente de igualdade hierárquica de condições sociais os direitos de liberdade tendem a corrigir falhas inerentes a esse meio homogêneo característico do regime democrático.

A consideração tocquevilliana acerca dessa incompatibilidade concilia-se com a vertente purista do liberalismo cujo argumento contrapõe o indivíduo à sociedade. Sob essa ótica, propõe-se um confronto: de um lado, o movimento liberal de derrubada do Estado Absolutista, em cuja proposta apresenta-se um Estado Mínimo, limitado por um arcabouço legal consolidado na forma de um Estado de Direito. Do outro, a concepção antiga de democracia grega, ligada ao poder de decisão da maioria.7 Tocqueville, embora considere a democracia uma conseqüência inevitável diante do liberalismo, a qualifica como um regime falho. Partindo desse posicionamento, ele justifica o fracasso revolucionário francês que culminou do Segundo Império. Segundo ele, não teria havido a consolidação dos direitos de liberdade previamente à reclamação por direitos de igualdade. A democracia a que ele se refere, portanto, emerge de um ideal social a ser perseguido, e não de seu sentido literal. 8

Page 127

Para o autor francês, o alcance de um status de Estado Social Igualitário9 seria permeado por uma atmosfera individualista, o que levaria os indivíduos ao abandono do interesse pelos negócios públicos. Nesse momento, a extinção das relações de proteção e dependência fragilizaria o indivíduo de tal forma que ele se tornaria condescendente com as ações estatais, permitindo inclusive deslizes morais e corrupção. Esta é apontada como uma das ameaças iminentes em um regime igualitário, o despotismo de natureza democrática 10 . Por outro lado, o alto teor de representatividade na sociedade norte-americana culminaria em decisões políticas voltadas para a vontade do maior número de cidadãos. A manifestação democrática ―escravizaria‖ os atores políticos e marginalizaria ainda mais os marginalizados, isto é, as minorias, provocando o que ele definiu como tirania da maioria 11 . Essas falhas do sistema democrático seriam combatidas por remédios de caráter liberal, como o associativismo e a liberdade de imprensa. A extensão da liberdade em uma dimensão em que o associativismo pudesse se manifestar amplamente na sociedade civil e as idéias pudessem ser difundidas por meio da imprensa aumentaria a fiscalização sobre as ações governamentais e estenderia a representatividade das minorias.

O reforço do regime federativo favoreceria então a atuação política representativa ao buscar a máxima efetivação das demandas sociais através da aproximação dos representantes e representados. A desburocratização do Estado em função da descentralização administrativa culminaria em maior participação dos cidadãos. Nesse aspecto, deve-se diferenciar a centralização governamental da centralização administrativa, pois, enquanto a primeira é uma constante na democracia norte-americana, identificada na figura do poder presidencial, cujo símbolo máximo de estabilidade é a constituição nacional; a segunda inexiste, sendo suprida por administrações locais munidas de ampla liberdade na tomada de decisões. Dessa forma, permite-se maior acessibilidade das associações civis organizadas, tanto na efetivação dos projetos públicos, quanto na fiscalização dessas ações.

Na visão do autor francês, à proporção em que os indivíduos voltam-se para seus próprios negócios, as associações ocupam essa lacuna no espaço público, enquanto que o

Estado passa a interferir em questões que antes tinham caráter meramente particular. Tocqueville identificou um empobrecimento intelectual em função da impotência do indivíduo sobre as questões sociais que o envolvem. A necessidade de condução desse cidadão, produto da democracia, permitiria não somente um maior controle social, como seria capaz de gerar uma confluência de interesses e firmar um sentimento nacional. Ainda que o indivíduo saiba que a democracia não favorece necessariamente a todos, ele consegue identificar esse ponto em comum com a sociedade. A identificação do interesse bem compreendido 12 culminaria forçosamente na reunião desses indivíduos e em uma maior representatividade diante das instituições políticas, levando a efeito a plena soberania popular, isto é, a eficaz participação do cidadão nas decisões governamentais.

Tocqueville admite que essa estruturação social não seria promissora em qualquer sociedade. Ele destaca aspectos que vão além daquele momento político...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT