O judiciário no Brasil oitocentista entre a lei e costume (caso da revolta de colonos no Pará, 1879)

AutorFrancivaldo Alves Nunes
Páginas323-343

Francivaldo Alves Nunes. Mestre em História Social da Amazônia e Professor na Universidade Federal do Pará; doutorando em História Social e pesquisador do Núcleo de Referência Agrária na Universidade Federal Fluminense. E-mail: francivaldonunes@yahoo.com.br.

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Condições para revolta

A redução de despesas parece ter sido a principal ordenação do governo provincial quando deu posse ao novo diretor da Colônia Agrícola Benevides em 24 de abril de 1879. Fundada em 1875, pelo então presidente Francisco Maria Correia de Sá e Benevides e distante aproximadamente 5 léguas de Belém, Benevides foi a princípio organizada para receber imigrantes europeus, sendo que a partir de 1877 passou a abrigar colonos nacionais, principalmente da província do Ceará, que migravam para Amazônia em função da escassez de chuva que atingiu as províncias do Nordeste do Brasil. No caso da nomeação do novo diretor, tratava-se de Antonio Bernardino Jorge Sobrinho, escriturário da tesouraria da fazenda provincial, muito acostumado com conta e gastos públicos. Essa experiência era tida por Gama e Abreu, presidente do Pará e responsável pela nomeação, como requisito principal para a escolha de Jorge Sobrinho. Nesse aspecto, o governo havia solicitado ao novo diretor que fosse diminuído o custo com as diárias concedidas aos colonos que trabalhavam na construção de estradas, limpezas de terrenos e outras obras públicas; não satisfeito, exigiu que Jorge Sobrinho tomasse a frente nos trabalho regularização de toda a contabilidade do núcleo, de forma a exercer maior economia nos gastos públicos com a manutenção da colônia.1

Em 16 de junho de 1879, o presidente Gama e Abreu fazia uma avaliação positiva do novo diretor. De acordo com administração provincial, Jorge Sobrinho teria correspondido fielmente às ordenações do governo, uma vez que, havia posto em dia os pagamentos atrasados, que já chegavam a cerca de 20:000$000 réis, além de ter conseguido a diminuição das despesas em quase cinco contos de réis por semana.2 O corte no fornecimento de vestuário, gêneros de alimentação e medicamentos era o fator responsável pela diminuição das despesas.

Mesmo considerando a possibilidade de que as insatisfações de alguns colonos pudessem tomar dimensões mais graves, Jorge Sobrinho estava disposto a continuar cortando asPage 325 despesas com os colonos, principalmente diminuindo os socorros públicos; no caso, um auxílio em dinheiro e alimentação que recebiam os colonos quando dos primeiros seis meses que permaneciam no núcleo agrícola; tempo em que o governo entendia como suficiente para as primeiras colheitas. Para complicar a situação, resolveu reduzir o número de trabalhadores que prestavam serviço para a direção do núcleo, principalmente nos trabalhos de limpeza e demarcação dos lotes, permanecendo apenas os que executavam os trabalhos de derrubadas, abertura de valas e aterramentos de estradas. No caso dos que permaneceram trabalhando, estes tiveram seus salários reduzidos. De acordo com a contabilidade da administração provincial, as despesas da colônia que giravam em torno de 14 contos por semana ou 56 por mês ficaram reduzidas a 20 contos mensais.3

As medidas tomadas pela diretoria da colônia eram acompanhadas por uma série de ameaças contra o diretor Jorge Sobrinho. Em maio de 1879, quando da demissão de alguns colonos que prestavam serviço à diretoria do núcleo, o cearense Alvino Vieira Santos, um dos milhares de retirantes que migraram para Amazônia a partir de 1877, não deixou por menos a dispensa de seus serviços. Na ocasião, agrediu um dos empregados da sede da diretoria, e quando chamado à repartição para prestar esclarecimentos, não apenas justificava a agressão como resultado de sua dispensa, mas também ameaçava o diretor da colônia com um revólver, prometendo dar cabo de sua vida, caso o seu trabalho não fosse restabelecido. Contido por alguns empregados da diretoria, o colono foi encaminhado para sub-delegacia de polícia da colônia; o que para direção do núcleo de nada adiantou, visto que no dia seguinte a prisão, “já estava solto e promovendo distúrbios de toda qualidade, assim como ameaçando os trabalhos da diretoria do núcleo”.4 A justificativa para a liberação de Alvino Vieira Santos era de que a atuação do colono não resultava de quem “agia por má índole”, mais de “um trabalhador, preocupado com o sustento da família”, pois, “qual era o criminoso que brigava para trabalhar?”; “um caso desse diz respeito apenas aqueles que querem viver honestamente do suor do seu rosto”, dizia o comunicado redigido pelo subdelegado de policia de Benevides, Antonio José de Freitas, à Chefatura de Polícia sediada em Belém.5 A ação do colono era interpretada pelo subdelegado como descontrole de quem havia perdido, usando a expressão do próprio chefe de polícia, “o seu ganha pão”; nesse caso, a manutenção da prisão não se justificaria, pois se entendia, que embora houvessem um desrespeito com a principalPage 326 autoridade da colônia, no caso o seu diretor, a ação do colono havia sido provocado pela insensatez das autoridades que havia privado o homem do que era considerado como valor precioso para o subdelegado Antonio José de Freitas, que era o trabalho; mantê-lo na cadeia era portanto ao mesmo tempo que privar o homem do seu ofício, deixá-lo de que provesse do seu próprio sustento e mantê-lo na dependência dos cofre públicos.

O parecer do subdelegado a Chefatura de Polícia causou certa animosidade, deste com o diretor da colônia; tanto que Jorge Sobrinho não só lamentava a decisão do chefe de policia, mas dizia que a decisão de manter o colono em liberdade atentava contra a manutenção da autoridade do diretor do núcleo.6 A preocupação de Jorge Sobrinho com o retorno do colono Alvino Vieira Santos era que pudessem estimular outros levantes. Situação bem provável de acontecer, afinal, eram muitos os colonos insatisfeitos com as decisões tomadas por Jorge Sobrinho que, além de reduzir salários, era responsável pela dispensa de vários operários; o que faziam com que os colonos que prestavam serviço para a diretoria do núcleo ficassem sem a principal verba necessária para a sua manutenção e da família. Nesse caso, o parecer do chefe de policia local e as divergências de entendimento entre as autoridades, de fato, criava condições para que novos levantes pudessem ocorrer.

As ameaças à atuação do diretor da colônia não se restringiram ao período de administração de Jorge Sobrinho. Em 03 de dezembro de 1878 o diretor da colônia Henrique Costard comunicava ao então presidente Joaquim do Carmo que havia expulsado os colonos Antonio Pedro de Almeida e Luciano Columbier, autores de provocações e ameaças, isto porque tinham deixado de receber os auxílios do governo.7 Nesse caso, Henrique Costard advertia as autoridades policiais para manterem os colonos distantes do núcleo, uma vez que poderiam realizar novas desordens.

Este cenário, um tanto quanto tumultuado, que demonstra que os espaços dos núcleos coloniais eram, quase sempre, marcados por conflitos entre os colonos e as autoridades, exigia um aparato policial capaz de garantir o controle sobre as ações de revoltas dos colonos; o que não era o caso da Colônia Benevides. Diante das ameaças, muito pouco podia fazer a administração da colônia, isto por que contava com o apoio de apenas quatro praças e um subdelegado e escrivão que deveriam atender uma população de mais de 8.000 colonos. NessePage 327 aspecto, lamentava a diretoria do núcleo que “para piorar a situação, do pouco número de praças disponíveis para manter a ordem, estes ainda se envolviam em rixas com os moradores do povoado”; como a que ocorreu em 08 de dezembro de 1878 às 10 horas da noite, quando a briga, resultado de embriaguez, foi responsável pelo espancamento e ferimentos de praças e colonos.8

Diante das ameaças ao diretor Jorge Sobrinho, e diante da impossibilidade de uma ação repressora, o governo passou a acusar os colonos de “turbulentos e díscolos”, atribuindo essas atitudes “a meia dúzia de cearenses”.9 A idéia era encontrar entre os colonos as possíveis lideranças das ações de contestação as medidas adotadas pelo diretor da colônia. O objetivo era como conseqüência dessa identificação garantir que fossem expulsos da colônia. O que se observa é que para desqualificar as ações dos colonos, os administradores da colônia utilizavam um discurso, um tanto quanto contraditório, pois, ao mesmo tempo em que afirmava que não haveria qualquer possibilidade de um levante, admitia que as ameaças tornavam-se cada vez mais constantes. Nesse caso, o comportamento do governo, ou refletia a atitude de quem tentava minimizar os problemas, ou demonstrava total desconhecimento das conseqüências provocadas com a redução dos auxílios aos colonos; que era a principal reivindicação dos revoltosos.

Assim, na manhã de 20 de julho de 1879 alguns colonos, insatisfeitos com as últimas decisões tomadas pelo governo provincial, principalmente a diminuição dos socorros encaminhados aos cearenses, resolveram ocupar a sede da diretoria da colônia. Conforme depoimento do capitão Alfredo Leopoldo Moura Ribeiro, que havia participado do movimento, um número grande de pessoas se juntaram desde as primeiras horas da manhã em diversos locais da colônia. Muitos se diziam prejudicados com o fim do auxílio concedido pela administração provincial e acreditavam que precisariam exigir do governo “o retorno imediato do pagamento”.10

Ao final da manhã já era grande o número de colonos que se encontravam em frente à diretoria do núcleo e mais colonos se dirigiam em marcha para falar com Jorge Sobrinho. Conforme publicou O Liberal do Pará em agosto de 1879, “armados de cassetes, terçados ePage 328 facas” os colonos “irromperam a sala pública da casa da diretoria” e “os aposentos particulares do diretor”. Em poucos minutos “a casa estava...

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