Oficialidade ou autonomia da vítima

AutorFabiana Kist
Ocupação do AutorAdvogada atuante. Professora em Direito Penal
Páginas81-112
O valor da vontade da vítima de violência conjugal para a punição do agressor 81
4 Oficialidade ou autonomia da vítima
4.1 Aproximações
Enfrenta-se, a partir de agora, uma das questões centrais
da presente investigação, que é, em síntese, a de saber se e até
que ponto deve respeitar-se a vontade da vítima de violência
doméstica e conjugal acerca da punição criminal do agressor.
Com efeito, é necessário de nir se a melhor forma de protegê-la é
respeitando essa vontade, o que pode implicar em empecilhos
para a punição, ou se é de se dar prevalência a esta, o que poderá,
concretamente, importar em desprestigiar os interesses diretos
e imediatos da vítima.
O exposto até o momento denuncia, na temática em estudo,
a existência de dois polos. Num deles transita a perspectiva publi-
cista do processo de punição do autor da violência conjugal, as-
sociada ao princípio da o cialidade e sedimentada na concepção
de um paternalismo moderado, que retira da vítima poderes de
decisão sobre a atuação punitiva. No outro polo ergue-se a ban-
deira da natureza semi-pública ou privada do crime e processo,
ligada ao princípio da oportunidade e informada pela concepção
ideológica de respeito e preservação da autonomia individual,
no caso, da vítima do crime, deferindo-lhe a possibilidade de
interferência no destino da prossecução criminal.
O passo seguinte, portanto, é elencar os argumentos as-
sociados a cada uma dessas perspectivas, discuti-los e concluir
pela prevalência de uma em detrimento da outra. Antes, porém,
esclarecemos que a o cialidade é aqui compreendida como um
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Fabiana Kist
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princípio do processo penal; é comum dividir tais princípios
como sendo: a) inerentes à estrutura do processo (presunção
de inocência, juiz natural, acusatório, isonomia processual, ampla
defesa e lealdade), b) relativos à promoção processual (ocia-
lidade, oportunidade e acusação), c) relativos à prossecução
processual (contraditório, investigação, suciência, celeridade e
economia processual), d) relativos à prova (presunção de ino-
cência, prova livre e verdade material) e e) relativos à forma
(publicidade, oralidade e concentração)103. Com a condição de
princípio, a ocialidade, ligada à promoção processual, signica
que a iniciativa e a prossecução processuais são titularizadas
pelo Estado: além de detentor da pretensão penal material de
punir os criminosos, exerce a atividade processual necessária
por si mesmo, sem consideração pela vontade dos ofendidos.
Como já visto, embora seja a regra, há exceções ao princípio
nos casos em que o procedimento punitivo depende de iniciativa
do ofendido (crimes semi-públicos e privados).
4.2 Elenco dos fundamentos
4.2.1 Em favor da perspectiva publicista do processo
Inicialmente, pondera-se que as características da violência
doméstica e as consequências que produz autorizam um dirigismo
estatal moderado voltado à proteção da vítima, que justica limi-
tações à autonomia individual dela.
Acentua-se também a regra geral, e aplicável à criminali-
dade doméstica, de que o Processo Penal tem caráter público e
indisponível, tanto para o Estado quanto para a vítima; o efeito
disso é o de que o interesse na punição do autor dessa violência,
103 Nesse sentido: SILVA, Germano Marques. Direito Processual Penal Português. Vol.
I, 7ª Ed. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, p. 44/102.
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como de qualquer crime, é titularizado pelo Estado, e não pela
vítima direta da ação criminosa e, por tal motivo, não há justi-
cativas para se exigir iniciativa ou manifestação dela nesse sentido.
A isso se acrescenta, e agora no campo especíco da violência
doméstica, que esta se constitui em problema que afeta toda a
sociedade, e não só a vítima, na medida em que há tempos foi
reconhecida como questão social.
O efeito simbólico e preventivo da punição do autor da
violência conjugal é outro elemento coadjuvante por conta da
possível prevenção de novas agressões contra a sua vítima ou
qualquer outra, além de projetar-se para além da relação entre
os dois, sinalizando para o ambiente social a postura do Estado
quanto a esta criminalidade. Ainda, e diante do que se disse
acima no sentido de o agressor ordinariamente fazer injunções
- represálias e chantagens - sobre a vítima que o denunciou para
que desista de prosseguir no processo, a ocialidade da atuação
estatal deixa-a imune ou menos exposta a essas ações. Ou seja,
ao perceber o agressor que a denúncia vai seguir seu curso, sem
que a vítima possa fazer algo quanto a isso, retira dela a susceti-
bilidade de ser agredida, ameaçada ou persuadida a desistir.
4.2.2 Argumentos em abono à perspectiva individualista
De outra parte, também há argumentos que sustentam a
necessidade de preservação da autonomia da vítima de violência
doméstica/conjugal relativamente ao processo. Em primeiro
lugar, que o paternalismo estatal nesse campo é indevido, pois
os agentes que atuam em nome dele não necessariamente têm
melhor solução ou visão mais acertada para o caso concreto.
Um segundo argumento assevera que, impedir a retirada
da denúncia tira da vítima um poder de que ela pode usar para
melhorar sua situação: quando ela recorre ao sistema penal,
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